"Tribunal Surdo", Violins
por
Marcelo Costa Email
04/06/2007
Você gosta de ler livros de auto-ajuda? Acredita no jeito Pollyana de ser? Evita ver as manchetes sangrentas dos jornais? Tenta não olhar para os mendigos na rua? Tem estômago frágil? Ouve Jota Quest e Skank? Assiste apenas a filmes românticos com finais felizes? Então fique muito distante de "Tribunal Surdo", terceiro – e definitivo – álbum do quarteto goiano Violins, um retrato em preto e branco movido a guitarradas do mundo que vivemos (e que muitos fazem questão de não enxergar). Alguns flashs:
"Cada um é um assassino sem coração / esperando pra rir dentro de um camburão / com sangue nas mãos / nós somos delinqüentes belos em mundos possíveis";
"Tranque a porta que eu já ouvi barulho lá fora / e pode ser que queiram roubar a minha moto nova / (...) e de repente eu pensei: que puta morte bela / se eu morrer pra defender os meus bens / que eu comprei a prazo e a prestação";
"Eles se amontoam para ver o espetáculo / e vão eleger você pra ser o novo astro / da arte de roubar carteira na praça do centro / alunos sentam calmos pra prestigiar o evento";
"Tá faltando soco inglês / o estoque de extintor não chega ao fim do mês / não tô pedindo aqui fortuna pra vocês / a gente quer limpar o mundo de uma vez / e eu garanto que seus filhos agradecem por crescer / sem ter que conviver com bichas e michês, discípulos de Che e pretos na TV"
"E eu quero mais é te bater em paz / sem ouvir um choro, sem ouvir: socorro"
"Porque eu já me iludi tanto nesse bar / que nem sei pra onde ir se você me acordar"
"É que eu comprei uma 22 pra mim / e eu nem treinei, não sei como te acertei daqui"
"Veja os corpos pulando no ar / então atire no primeiro que olhar"
"Eu pensei na minha mãe quando a seringa beijou meu braço esquerdo"
Para você que ainda está lendo, algumas peças do quebra-cabeças chamado Violins. A banda surgiu em 2001, em Goiânia, e lançou um álbum com o nome Violins and Old Books, mas só começou a chamar a atenção quando passou a compor em português, reduziu o nome apenas para Violins, e apresentou "Aurora Prisma" (o dito álbum de estréia) ao público. O disco chamou a atenção de uma parcela da crítica, que caiu de queixo no chão com o álbum seguinte, "Grandes Infiéis", uma porrada conceitual que versava sobre mentiras e infidelidades.
Entre "Grandes Infiéis" e "Tribunal Surdo" algumas coisas interessantes aconteceram. "Grandes Infiéis" foi eleito o melhor disco de rock de 2005 no Prêmio London Burning de Música Independente, e ficou com o sexto lugar na categoria disco nacional do Prêmio Scream & Yell 2005. Léo Alcanfor, guitarrista da banda, anunciou que estava deixando o grupo em fevereiro de 2006. A banda anunciou que estava encerrando as atividades em maio. Na seqüência, uma comoção digna de grandes bandas tomou a internet (e principalmente as comunidades do orkut que falam sobre o Violins). Em poucos dias, a repercussão do anúncio do fim fez com que o quarteto repensasse a história toda, e decidisse se reerguer. Nascia um novo Violins.
"Tribunal Surdo" começou a ser apresentado ao público em novembro do ano passado, quando a banda postou quatro músicas (antes da fase de mixagem) em seu site oficial. "O Anti-Herói", "Campeão Mundial de Bater Carteira" e, principalmente, "Grupo de Extermínio de Aberrações" serviram para antecipar a porrada que o álbum todo despeja na boca do estômago do ouvinte agora, mas mesmo com a previsão de um álbum difícil, barulhento e tematicamente pesado pela frente, poucos poderiam aguardar um disco tão perto da perfeição quanto este.
Irmão direto de "Grandes Infiéis", este "Tribunal Surdo" radiografa um mundo que esqueceu de si mesmo, e cuja violência virou moeda de troca. Assaltos, assassinatos, bebedeira, drogas, racismo, guerra, violência doméstica, acidentes de carro e religião são os pratos sujos que você encontrará no cardápio indigesto das 14 faixas de "Tribunal Surdo". Você pode até virar o rosto, mas não pode negar que esse é o mundo em que você vive. Não tente ignorar os fatos. A virtude do álbum é exatamente jogar sobre o colo do público questões que frequentemente são varridas para debaixo do tapete.
O design gráfico e o som do álbum seguem a risca a temática das letras. Preto, cinza e guitarras barulhentas dão o tom. Musicalmente, a saída do guitarrista original diminui o alcance instrumental proposto por "Grandes Infiéis". Beto Cupertino assumiu as guitarras, aumentou os volumes e fez com que a banda deixasse o Radiohead de lado (mas só um pouco) e se aproximasse definitivamente do Muse. Paradas bruscas, quebras de andamento, pratos de bateria na cara, vocais e teclados fazendo a cama melodiosa enquanto o mundo desaba em forma de distorção e desilusão.
A reflexão proposta por "Tribunal Surdo" se aproxima em alguns momentos das telas de cinema e dos grandes livros da literatura universal. "Campeão Mundial de Bater Carteira" é puro Oliver Twist, de Charles Dickens. "Saltos Ornamentais Árabes Para Treinamento de Atiradores Americanos" atualiza as mensagens dos filmes de guerra (e traz à mente a dobradinha de Clint Eastwood sobre a invasão norte-americana em Iwo Jima). A influência maior, porém, são os noticiários da televisão. Jovens que atiram em outros, homens que espancam mulheres, racismo contra gays, negros e prostitutas. Está tudo aqui em forma de relato, sem pré-julgamento, sem crítica social. Funciona como trilha sonora de foto jornalismo.
"Tribunal Surdo" é denso, tenso, difícil e dolorido. Chegou as lojas sem nenhum alarde, e não precisava mesmo: não vai vender muito (se nem Lobão, com jabá, vende), não vai tocar nas rádios, não vai levar o Violins ao Faustão, nem ao Silvio Santos e nem ao Tim Festival (ops, neste último, quem sabe). Mas é o grande disco do rock nacional nos anos 00. Enquanto as "grandes bandas" do mainstream brasileiro fazem música como se estivessem batendo cartão de ponto (o rock como profissão, grande farsa), a cena independente nacional exibe mais um exemplo de inteligência, coragem e qualidade. "Tribunal Surdo", como toda grande arte, propõe uma nova forma de olhar (e ouvir) o mundo. Sem máscaras, sem falsidade, sem meias-palavras. Quando aceitarmos o mundo que vivemos, poderemos dar o próximo passo. Por enquanto, vivemos em um tribunal surdo. Sinta-se em casa.
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