Diário de Bordo - Terminal Guadalupe em Brasília
por
Dary Jr.
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Fotos: Laura Benevides
08/03/2006
Antes de jogar meus 89 quilos pelo portão de embarque , ouço
o que ela diz: "A Band News acaba de anunciar que vocês
vão tocar em Brasília". É minha mulher, pelo telefone celular,
toda orgulhosa. Debaixo do braço, jornal amassado, carrego a
nota que O Estado do Paraná publicou sobre a nossa viagem.
É, parece que não vamos viajar na surdina. Seria o fim da invisibilidade
autofágica? Bênção, mãe.
Quase uma da tarde de sexta-feira (13) e o avião aterrissa bruscamente
na pista do JK. Normal. Bagagens recolhidas, uma loirinha risonha
e de cachos curtos nos reconhece e se apresenta. É Laura Benevides,
assessora de imprensa da produtora KB2, que organizou a coletânea
Armazém Rolla Pedra - Música do Brasil, motivo da nossa
ida à capital federal.
O porta-malas do Corsa tem coração de mãe e comporta todas as
nossas coisas. Ele rasga o infinito da avenida e descortina
a arquitetura retangular da cidade rumo ao Eron, no setor hoteleiro
Norte. Também sorridente, o tiozinho da recepção mira os estojos
dos instrumentos e diz que teremos sorte, pois artistas famosos
já se hospedaram ali. Confiro. De fato, há uma grande foto de
Frank Aguiar no restaurante panorâmico.
Empilhamos tudo nos quartos e vamos almoçar no shopping mais
próximo. Sou clássico: bifão com arroz. A digestão é feita no
hotel, com cerveja e tevê a cabo. Revejo A Testemunha,
de Peter Weir. Quase cochilo, mas não durmo. É a excitação.
Estou em Brasília, onde tudo começou. "Capital da esperança,
asas e eixos do Brasil". Estou em casa.
À noite, falo de minha paixão pelo rock brasiliense para Abelardo
Jr., apresentador do programa de rádio Cult 22, transmitido
pela Cultura FM. Enumero grupos obscuros para quem não conhece
a história da cena local - Escola de Escândalos, Arte no Escuro,
Detrito Federal, Elite Sofisticada - e arranco um discreto sorriso
de aprovação do locutor. Sim, Brasília teve mais que Legião
Urbana, Capital Inicial, Plebe Rude e Finis Africae.
O papo segue e tento desmistificar a imagem europeizada e jacu
que moradores de outras regiões do País têm de Curitiba. Antes
que fique chato de tanto falar no assunto, anuncio O Bêbado
de Ullysses e Esquimó por Acidente, as duas faixas
que abrem o nosso disco, selecionadas para a coletânea candanga.
O SMD não roda. Maldita cola. Eu e Abelardo rimos juntos.
Seria uma saia justa não estivesse o clima tão agradável. O
SMD volta a funcionar, mas só com outras canções: Por Trás
do Fator Gallagher, Lorena Foi Embora... e Bons
Meninos Vão Para o Inferno. Pano rápido. Dali, seguimos
para o bar Beirute - ou Gayrute, lotado pelo mundinho GLBT.
Na mesa, os camaradas da banda paulistana Fuga e o produtor
Kennedy Bittencourt, o Sr. Rolla Pedra. Bom papo, comida idem.
O sábado começa preguiçoso, mas temos entrevista ao vivo na
TV Brasília, emissora afiliada da Rede 21. Todos sentados no
gramado, uma deusa que o acaso fez repórter me avisa: "Vou fazer
uma pergunta diferente, sobre o motivo do nome da banda". Do
alto de sua franqueza quase ingênua, Allan (Yokohama - guitarra
e voz), ouve e intervém: "Na verdade, essa é uma pergunta bem
comum". Riso coletivo preso, a deusa não perde a santidade por
pouco.
A entrevista dura menos de um minuto, mas o Japa consegue dar
o mosh sobre Rubens K (baixo) e Fabiano (Ferronato - bateria)
antes que o diretor de tevê corte para o clipe migué de O
Bêbado de Ulysses, que encerra o telejornal. Hum, fominha.
Ora, ora, temos traíra sem espinha no almoço. A delícia é apresentada
por José Fernandez, o homem que produziu os shows das principais
bandas locais dos anos 80. Ele continua no ramo. Eu já disse
que amo Brasília?
Sem o menor pudor, exploramos a boa vontade de Laura Benevides
depois do rango de altíssimo nível. É ela quem clica as poses
da banda em pontos turísticos artificiais - ah, saudade de Curitiba
- e escolhidos de forma aleatória. Assim, fazemos cara de conteúdo
no gramado em frente ao Congresso; escalamos a parede cubista
do Teatro Nacional; e gargalhamos à sombra de uma igrejinha.
Que beleza, temos material fotográfico novo. Grazie, Laura.
Corre tudo bem na passagem de som do Gate's Pub. Logo depois,
aproveito para ver Soldado Anônimo - a seqüência com
Something in The Way, do Nirvana, é ótima - no cinema
perto do hotel e ainda checar e-mails no cibercafé. Ligo para
a patroa, digo que está chegando a hora e peço que ela me deseje
sorte. Ué, mas não é exatamente o contrário que a gente pede
antes do show? Sei não...
A casa está com lotação média e a programação, uma hora e meia
atrasada. Virgem Again abre a noite e faz bonito. Rock gaúcho
até no nome, mas com muito mais potencial que os grupos de terninho
dos Pampas. Cromonato é mais soturno, grunge bem executado.
Gosto de ambos. Agora, cá entre nós, Fuga é foda. No melhor
show da noite, os caras dão aula de timbres, arranjos e vocal.
Não dá para definir, mas seria um new metal "para adultos".
Sensacional.
E o Terminal Guadalupe? Para começo de conversa, o cubo reservado
a mim só apita. Em seguida, a guitarra do Allan some. Rubens
se queixa: "A caixa do baixo está indo embora...". Não, isso
não nos derruba. Inflamado, faço um discurso sobre a imprensa,
o PSDB e o PT, com acidez para todos, em As Cinco Horas da
Jornada, e a redenção vem com O Segundo Passo, música
nova e emblemática. Clap-clap-clap-clap-clap.
Show terminado, ajudo a carregar as tralhas para o carro. No
corredor, um segurança me aborda. É João Lopes, mineiro de 40
e poucos anos. "Eu nunca vou esquecer o que vocês fizeram aqui
hoje", promete. "Prestei muita atenção nas letras e vi que amam
o que fazem. Continuem assim". Sinto que é sincero. Agradeço
e dou dois discos a ele. "Um para o senhor, outro para quem
o senhor ama", recomendo.
No dia seguinte, conforme combinado dias antes, reencontro o
engenheiro Sérgio Daroz, um amigo de infância cujo contato perdi
há mais de 20 anos. Falamos sem parar, lembramos dos nomes de
quase todos os nossos colegas de escola, tiramos do baú a paixão
que tínhamos pela mesma menina, marejamos os olhos pelos bons
tempos. Conheço sua mulher e o casal de filhos. Família linda.
Sérgio foi abençoado.
É fim de tarde quando meu melhor amigo dos anos de Joaquim Murtinho,
lá em Campo Grande (MS), me devolve à banda. No restaurante,
à beira do Lago Paranoá, Rubens e Fabiano trocam gargalhadas
etílicas com Kennedy e Laura. Allan vai ao píer, pensa no seu
novo amor, cogita um mergulho, desiste. "Eu deveria ter pulado",
se arrependeria depois.
Já no avião da volta, observo meu trio de bêbados dormindo.
São bebês-marmanjos. Nem parece que há pouco ameaçavam sair
na porrada entre si pelo direito de sentar à janela, alvo de
cobiça hiperbólica por onde o centro do poder se apequena e
vira apenas a capital de uma república federativa cheia de gente
nos dizendo "até logo". Eu aceno com sobrancelhas que suspiram.
Até logo, Brasília.
Dary Jr. já foi feirante, office-boy , repórter da Globo
e professor universitário. Hoje, é rapaz direito e foi escolhido
pela menina mais bonita. Arranha guitarra, canta com esforço
e faz as letras das canções da banda curitibana Terminal Guadalupe.
Leia também:
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"Girassóis
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"Burocracia Romântica" - Entrevista para Marcelo Costa
Site
Oficial do Terminal Guadalupe
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