'Bom Futuro', de Simone Capeto
por Marcelo Costa
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20/11/2005

Nei Lisboa é, seguramente, o grande compositor gaúcho dos últimos vinte e tantos anos. Porém, apesar de uma fina discografia de oito excelentes álbuns, Nei é um cantor cult fora da fronteira do Rio Grande do Sul, que consegue apaixonar quem conhece sua obra, mas ainda está distante do reconhecimento que merece. A carioca Simone Capeto, uma das apaixonadas pelo repertório do compositor, levou adiante a paixão e o resultado é o simplesmente tocante Bom Futuro, álbum que marca o belo debute oficial da cantora e pesca quinze canções da história de Nei Lisboa.

Simone Capeto é cantora e compositora e faz apresentações regulares em diversos teatros e casas noturnas do Rio de Janeiro. Além de composições próprias, Simone sempre encaixava uma canção de Nei Lisboa no set list dos shows. Desse costume nasceu Bom Futuro, um álbum independente de encarte luxuoso (em formato livro de bolso), com a primeira edição numerada, produção impecável e uma seleção de canções bastante pessoal do repertório de Nei Lisboa, que Simone faz questão de explicar, uma a uma, no encarte, justificando cada escolha.

"Por que gravar Nei Lisboa? Ouvi essa pergunta tantas vezes que perdi a conta.(...) Nunca tive sombra de dúvida. Seu jeito de cantar, as melodias, sua poesia sem obviedades e sem concessões, a ironia, o olhar terno e crítico sobre si mesmo me cativaram imediata e definitivamente", conta Simone Capeto no texto de abertura do encarte. "Foi um caminho natural, uma idéia amadurecida ao longo dos anos", completa, ressaltando a dificuldade da escolha do repertório, que no fim se resumiu a 15 canções, sendo que a recente e lindíssima Por Ai (2001) surge em duas versões, uma mais encorpada, e outra deliciosa em voz, violão e gaita. "Seremos sempre quem teve coragem / De errar pelo caminho e de encontrar saída / No céu do labirinto que é pensar a vida", diz a letra.

O formato "voz, violão de aço e gaita" (esta última a cargo de Flávio Guimarães) ainda abriga a arrepiante faixa que abre o CD, uma das grandes canções de Nei, Telhados de Paris (1988), cujo refrão poético diz: "Eu tenho os olhos doidos, doidos, doidos / Meus olhos doidos são doidos por ti". Ainda do álbum Hein?, de 1988, Simone regravou Baladas e Rima Rica/Frase Feita. A primeira é um dueto com o próprio Nei Lisboa e traz alguns dos versos mais fortes do compositor: "Só / E apesar de tudo estranho / Tenho inimigos que me amam" ou "Vivemos de paixão e alguma grana" ou ainda "Mas sei que ela diria ao acordar: Tudo bem. Você me arrasou, meu bem / E qualquer dia desses como as tuas bolas / Mas por hora esqueça o drama na sacola / Não puxe o cobertor / Não tape o sol que resta nessa dor / Foi bom, não durou". O refrão é mágico: Nei coloca a frase forte no fim da batida de violão: "Eu quero morrer". E completa em seguida: "Bem velhinho, assim sozinho, ali bebendo vinho e olhando a bunda de alguém".

Rima Rica/Frase Feita começa com gaita criando clima. A letra: "Desculpe, meu bem / Se ontem te fiz chorar / Mas a vida é assim mesmo / Não se pode exigir / Pouco dá pra esperar // Muito obrigado por tudo / Pelo teu suor, pelos teus gemidos / Espero que a minha estupidez / Cicatrize teus sentimentos feridos". A canção segue, e o arranjo de Simone aumenta ainda mais o drama da letra primorosa de Nei Lisboa.

De Pra Viajar No Cosmos Não Precisa Gasolina (1983), primeiro disco do gaúcho, Simone resgatou a urgente faixa título, a forte Não Me Pergunte a Hora (em arranjo "nervos quase à flor da pele", segundo Simone) e a bonita Doody II, com um belo arranjo de cordas que mantém o clima de cantiga da versão original. Do álbum Noves Fora (1984) escolheu a balada Verdes Anos, em uma forte interpretação voz e piano. Carecas da Jamaica (1987), um dos álbuns mais populares de Nei Lisboa, cedeu para o tributo de Simone a boa Junky. Já de Amém, de 1993, foram resgatadas as belas Romance ("Todas as bobagens que eu já disse / Dariam pra encher um caminhão / Mesmo assim encontro no caminho / Milhares mais otários do que eu", diz a letra) e Dio. Na primeira, Simone troca o piano pelo violão. Na segunda, um violoncelo dá charme ao arranjo.

O disco Cena Beatnik (2001) é representado por três canções: Produção Urgente (com Rick Ferreira destilando lirismo no pedal steel), Particípio (em versão forte, percussiva) e Por Ai enquanto Relógios de Sol (2003) completa o repertório de Simone Capeto com Pra Te Lembrar (já regravada por Caetano Veloso para a trilha sonora do filme Meu Tio Matou Um Cara) e Bom Futuro. "A escolha das canções foi outra tarefa dificílima", escreve Simone no encarte. "Como deixar de fora jóias como a singela Sinal Azul, Á Fabula dos Três Poréns, Cena Beatnik, ou ainda a personalíssima Teletransporte N° 4? Cheguei a pensar em um CD duplo - e haveria material de sobra pra isso - mas os limites que uma produção independente impõe falaram mais alto. Talvez, quem sabe, um volume 2 venha para preencher as lacunas", deixa em aberto a interprete.

O homenageado se derrete em elogios por Simone. "(Ela) fez uma clara opção bluezy, reservando acertos de lirismo e intimidade. (...) Simone emprestou técnica, elegância, sensibilidade, brilhantismo. Perguntei a ela, quando nos conhecemos, porque não gravava em seu primeiro disco interpretando Gershwin ou Tom Jobim. Agora, pensando bem, sei não, acho que ela acertou em cheio", escreve Nei Lisboa. Porém, mais do que um disco de interprete, Bom Futuro é um disco de redescoberta. Ao escolher o repertório de Nei como guia para seu primeiro álbum, Simone demonstra coragem e conhecimento de causa, uma opção acertada pela magia do intocado, e, sobretudo, a paixão pela música, a boa música, aquela que nos acompanha por toda a vida. Seria simples, até mesmo óbvio, gravar Chico Buarque, Renato Russo ou Caetano Veloso, por exemplo. Bom Futuro nada tem de óbvio. É um belo disco para se ouvir, ouvir e ouvir.

Bom Futuro pode ser comprado diretamente com a cantora, no e-mail simonecapeto@globo.com ao preço de R$ 25,00.


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Site Oficial de Nei Lisboa