"O Exercício das Pequenas Coisa", do Ludov
por
Drex drex2004@bol.com.br
Foto: Elcio Kudo / Divulgação
01/04/2005
No
best-seller O Erro de Descartes, o neurologista Antonio
Damásio enfrenta impiedosamente as idéias racionalistas daquele
célebre filósofo francês. Damásio, com base em anos de experiência
médica e científica, afirma sem meias palavras: o cérebro e
o corpo trabalham juntos e, com o objetivo de buscar nossa própria
sobrevivência, a mente nunca toma decisões ou realiza julgamentos
baseada exclusivamente em elementos racionais. Sendo a realidade
muitíssimo complexa, se utilizássemos somente a razão pura,
teríamos enorme dificuldade para obter as soluções necessárias,
com rapidez e eficiência, para os problemas mais corriqueiros
do dia-a-dia.. Diante da necessidade de tomar uma decisão, ficaríamos
eternamente calculando as probabilidades. Ao contrário do que
possa parecer, se fôssemos completamente racionais, as nossas
idéias e opiniões seriam sempre ocas, volúveis e descomprometidas
- estaríamos eternamente à espera de mais uma variável para
completar a análise. Sem a ajuda das emoções, dos instintos
e da intuição, não seríamos apenas frios e calculistas. Seríamos
frios, calculistas, idiotas e indecisos.
Livros de divulgação científica sempre me assustaram um pouco.
Entretanto, depois de quebrar essa barreira, pude descobrir
neles coisas extremamente interessantes. Algumas idéias que,
por mais teóricas que pareçam, acabam sempre dando uma mão quando
me meto a matutar sobre as trivialidades da vida. Aconteceu
isso hoje. Numa daquelas correlações que só a mais profunda
das sinapses pode explicar, pensei no livro do Damásio enquanto
escutava o último disco do Ludov, O Exercício das Pequenas
Coisas.
Razão e emoção se misturaram na minha mente. E haja turbulência.
Acabei, então, angustiado por um dilema. Foi impossível não
adorar o disco do Ludov, mas, ao mesmo tempo, sei que minha
opinião não se deve exclusivamente ao conteúdo daquelas 15 faixas.
E agora, na hora de emitir alguma opinião, de fazer algum tipo
de julgamento, o que raios devo fazer com a claríssima consciência
de que, para mim, é impossível escutar Ludov com ouvidos isentos?
Explico melhor. Não se trata de ter na banda algum amigo ou
parente. Nem mesmo conhecidos. Meu caso é pior que esse - trata-se
de uma relação platônica. Um vínculo que se fortalece há tempos,
simplesmente porque o Ludov esteve insistentemente presente
na minha vida nestes últimos anos. Nos dias bons e nos dias
ruins. Como um bom e velho amigo.
Portanto, se alguém quiser ler uma crítica, propriamente dita,
de O Exercício das Pequenas Coisas, por favor, siga direto
até os últimos quatro parágrafos deste texto. Até lá, talvez
eu já tenha conseguido destrinchar os fatos dos sentimentos.
Agora, no entanto, com toda a sua licença, vou abrir aqui um
grande parêntese para tentar entender como essa banda, sem pedir
licença nenhuma, se intrometeu inexoravelmente no meu caminho.
Lá pelos idos dias do ano 2000, meu cunhado me contava uma novidade:
comprara um CD de uma banda independente, uma tal de Maybees.
Pouco tempo depois ele faria as malas, partiria para os EUA
e levaria o tal CD na bagagem. Cunhados, ora, às vezes podem
ser ingratos. Fiquei sem poder ouvir o CD, mas o nome daquela
banda ficara gravado em minha cabeça.
Pouco mais tarde, fui descobrir que o tal Maybees era, naquela
altura, uma das bandas independentes mais consagradas da "cena"
paulista. Através do saudoso Napster, consegui encontrar algumas
canções. Eram tempos, porém, em que fazer o download de uma
música exigia uma longa jornada noite adentro. Fui baixando,
trabalhosamente, uma a uma - Érika, You're Back, Mary and
The Moon e outras várias. Eu passava então por tempos bastante
turbulentos, meu coração estava carente de prumo. Foi inevitável
que aquelas canções, pequenas pérolas coletadas com tanto cuidado,
acabassem se tornando meu pequeno tesouro digital.
Era um momento pessoal de renovação e o Maybees significou para
mim o ressurgimento do interesse por música nova. Isso parece
pouco, mas não é. Junto com outras bandas, naquele momento eles
ajudaram a reabrir a minha lojinha, tirar o pó dos meus arquivos,
receber novos convidados. Se não fosse por isso, talvez hoje
eu seria mais um dos fãs ardorosos da Kiss FM.
Infelizmente, logo descobri que eu havia chegado tarde aos Maybees.
Em meados de 2002, soube por alguma mail-list sobre um show
no Sesc Pompéia, lançamento de um revista. Uma das apresentações
seria a estréia da Supertrunfo, a nova banda dos ex-Maybees,
agora cantando em português. Não hesitei em ir ao SESC. Também
eu estava estreando um novo amor e fazia questão de testemunhar
a banda responsável pela trilha sonora de alguns dos meus novos
suspiros. Mesmo que agora eles estivessem com outro nome e cantando
no idioma nacional.
O show foi antológico. Dizem que a viagem é o viajante e, portanto,
até hoje não sei se a apresentação do Supertrunfo foi mesmo
apoteótica ou se se tratava apenas da minha catarse pessoal.
No palco criou-se um clima performático, teatral, com todos
os músicos vestidos de negro. A banda já estava no meio de uma
longa introdução quando a vocalista, que agora eu sabia chamar-se
Vanessa, fez sua entrada. Era a diva que subia ao palco, e o
público gritava. No microfone, aquela voz fazia tudo obter sentido.
Ainda me lembro de ouvir, pela primeira vez, canções como Trânsito
e Dois a Rodar. Esta última, aliás, já entoada de cor
por algumas meninas da platéia. Provavelmente gente do fã clube
da banda.
Uma pergunta, no entanto, ficava solta no ar. As músicas em
português tinham agradado, tudo bem, mas ainda era muito difícil
entender por que o Maybees havia acabado. Quem já conhecia o
passado daquela banda de negro em cima do palco, não conseguia
esconder a perplexidade. Ora, se os integrantes continuavam
os mesmos, porque deixar para trás um nome e um repertório já
consagrados? Aquela escolha, optar por um recomeço radical e
arriscado, talvez não fosse mesmo racionalmente explicável.
De fora, parecia um lance de ousadia. De dentro, talvez fosse
o caminho simplesmente necessário. No fim, foi uma opção que,
a parte de todas as opiniões, viria a dar frutos e se justificar
algum tempo depois. O tempo seria, tal como no clichê, o senhor
da razão.
Depois do Sesc, o Supertrufo sumiu por uns tempos, pelo menos
dos meus ouvidos. Pelo site oficial, descobri que o nome da
banda mudaria de novo, por problemas de direitos autorais. O
novo nome me soava um tanto estranho - Ludov.
Tudo ficara por isso mesmo até que, certa noite de sábado, decidimos
sair para ouvir rock. As festas da Sound, na DJ Club, em São
Paulo, já tinham enjoado um pouco, e a Funhouse era então a
novidade no menu paulistano. Aliás, assim como a noite "indie"
de São Paulo, a trajetória do meu novo amor também evoluía e
o que antes era apenas início, agora já tinha se transformado
em namoro firme e oficial.
Ao entrar no sobradinho apertado da Bela Cintra, pude ler, no
quadro branco colocado ao lado da porta, o nome da banda da
noite - Ludov. Surpresa boa. Seriam eles mesmos? Eram. Outra
apresentação ótima. Desta vez, cedendo aos pedidos insistentes,
encerraram o show com o hit maior do extinto Maybees, a poderosa
Érika. Era um show de transição, e ainda restava alguma
tolerância com o passado.
Se naquela noite o encontro foi ao acaso, ele se repetiria outra
vez premeditadamente. Voltei ao Funhouse, algum tempo depois,
para ver novamente a banda. Desta vez, eles já se recusavam
a tocar Érika ou remexer no baú do Maybees. Pouco a pouco,
ninguém mais se importaria com isso. Parecia que todos haviam
superado o passado.
Neste dia na Funhouse, um fato inusitado. Durante o show, na
pista minúscula e cheia de gente, com o braço da guitarra de
Habacuque roçando minha cabeça, eu e minha menina seguíamos
os mandamentos da banda e nos beijávamos a "(...) rodar e a
rodar". Mais tarde, no bar, o Eduardo, baixista do Ludov, veio
falar com a gente. Tinha nos visto na pista, naquela cena de
videoclipe romântico, e tinha achado tudo muito bonito. Apenas
agradeci, com timidez. Mas percebi ali que aquelas canções,
ou na verdade aquelas pessoas, iam pouco a pouco se sedimentando
como companheiros importantes daquele meu pedaço de vida, como
verdadeiras testemunhas de uma etapa da minha trajetória.
Comprei o EP Dois a Rodar naquele mesma noite. A partir
dali, acompanhei o Ludov, eventualmente ou sempre que possível,
por diversos outros lugares. Ou, talvez, tenham sido eles que
me acompanharam. Em 2004 vieram o Curitiba Pop Festival, depois
um show na Outs, outro no Centro Cultural São Paulo. As músicas
do EP já eram definitivamente íntimas e músicas novas iam sendo
inseridas pouco a pouco no repertório. Depois foi Princesa
tocando discretamente no rádio, clipes freqüentes na MTV, prêmio
no VMB. A consagração dentro do "mundinho" e um ciúme besta
da minha parte, inconfessável e inevitável. Ciúme que seria
curado definitivamente por outro show memorável no final do
ano passado, na sala de cinema da Galeria Olido, no centro de
São Paulo. Quem esteve lá sabe: apresentação intimista e irretocável.
A estória vai se fechando. Mês passado houve outro show no Centro
Cultural São Paulo, agora já como o repertório totalmente renovado
pelo lançamento deste primeiro CD "cheio" do Ludov - O Exercício
das Pequenas Coisas. O CCSP estava tomado e o público, como
de costume, já sabia todas as letras das músicas recém lançadas.
Comprei o Exercício das Pequenas Coisas somente depois
desse último show. Ouví-lo, para mim, é um exercício dúbio.
Em certa medida, através de algumas músicas já ouvidas, é sentir
a consolidação de tudo que se passou nestes últimos anos. Por
um outro lado, porém, é também descobrir novas pérolas, novas
canções que vão provavelmente calçar meus passos daqui para
frente.
Após tudo isso pode dizer que O Exercício das Pequenas Coisas
oferece um excelente retrato de todas as qualidades do Ludov
- um pop-rock de braços abertos, com recheio sólido e consistente.
O CD começa com Sério, uma gostosa levada pop que, dissimulando
simplicidade, esconde uma intrincada construção rítmica bastante
interessante. Estrelas vem em seguida, outra com grande
apelo, violão e ótima melodia, lembrando Lulu Santos e surf
music.
As preferidas da casa, porém, são aquelas em que Vanessa despeja
seu potencial dramático, ajudada por alguns versos que colam
no ouvido - Dorme Agora e Kriptonita são verdadeiramente
poderosas, para cantar de peito aberto e desobstruir os pulmões.
Em Elastano e Sete Anos temos duas experimentações
vocais. Na primeira, o guitarrista Habacuque Lima experimenta
sua voz num rock mais duro, com uma linha de guitarra bem marcante.
Na segunda, o multi-homem Mauro Matoki, já mais experiente com
o microfone, manda uma deliciosa fantasia de infância, uma mistura
de marchinha dixieland a la New Orleans com vaudeville circense.
Outro destaque é a instrumental Supertrunfo que, ironicamente,
tem uma das melodias mais marcantes do disco. Supertrunfo
exorciza e faz as pazes com o passado, a um só tempo. Além de
possuir o nome que marcou a virada da banda, é a música que
mais remete à "velha" sonoridade do Maybees.
Mas o que importa é a sonoridade nova. E eles seguem confirmando,
como em outros tempos, que são capazes de conciliar, com esmero,
a cor e a alegria dos arranjos com a emoção densa dos vocais
de Vanessa. Sobre uma "cozinha" pesada, com baixo e bateria
calcados em elementos nitidamente rock, o Ludov ainda despeja
uma montanha de informação musical das mais variadas. O lado
melódico do rock nacional anos 80, o capricho e a inventividade
dos arranjos da Tropicália, ecos de emotividade da MPB mais
tradicional, os vocais femininos remetendo às toda a tradição
das cantoras de rock internacional, da new-wave até o Garbage.
Mais do que isso, o Ludov vem ajudar a consolidar um novo caminho
na tradição da canção popular brasileira. Sem nenhum exagero,
junto com bandas como Pato Fu, Los Hermanos e outros cantadores
mais "MPB" (Lenine, por exemplo), eles se inserem num espaço
pouco afeito a rótulos ou definições, onde não se destaca pelo
estilo, postura ou segmentação, apenas pela competência de criar
belas canções.
É claro que o Ludov possui suas fraquezas e defeitos. Qualquer
crítica imparcial deveria logicamente citá-los. Mas, como já
falei, depois de tudo que contei até aqui, me abstenho de fazer
isso. Deixo a cada um essa tarefa. Ouçam o disco, façam sua
própria análise, procurem os defeitos que quiserem. No meu julgamento,
impregnado de estória e emoção, só posso garantir que essa busca
vai valer a pena.
No fim, porém, ainda fica a dúvida - minha opinião tem aqui
algum valor? Devo ter pensado em Damásio, lá atrás, por conta
disso. Ele talvez me isente dessa questão e me libere de maiores
culpas. Posso sim, falar sobre o que bem entender. Aliás, creio
que posso até adaptar as suas idéias e afirmar: não existe crítica
ou opinião que sejam absolutamente racionais. Ou melhor, talvez
até existam. Mas certamente não são as melhores. Como Damásio
afirma, os melhores julgamentos são aqueles feitos sob o calor
das emoções, e não os que são isentos dela.
Leia também:
Entrevista Ludov - 2003, por Marcelo
Costa
Site Oficial do Ludov
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