Entrevista com La Carne
por
Leonardo Vinhas Fotos: Site Oficial
lvinhas1@yahoo.com.br
04/06/2005
É duro para um resenhista evitar a repetição textual e argumentativa
quando escreve sobre alguma banda independente brasileira. Não
que as bandas sejam iguais (longe disso!), mas a maioria insiste
num discurso de "maldito" ou "coitado",
sendo freqüentemente acometida da "síndrome do gênio injustiçado"
ou do "coitado trabalhador", a essas caracterizações
seguindo-se um enorme e confuso discurso sobre a "indústria
da música".
Com o La Carne (e outras boas bandas também), esse mal não passa
perto. Na verdade, Jorge (guitarra), Carlos (baixo), Junior
(bateria) e Linari (vocal) não falam sobre isso nem mesmo entre
si, quanto mais com outras bandas. E o fato de não compactuarem
dessa conversa de menino mimado já valeu a eles o rótulo de
"arrogantes", conferido por muitas bandas e promotores
de shows que gostam de freqüentar a si próprios e trocar elogios
e favores num sistema de conveniências que de “alternativo”
tem só o nome, tal qual uma série de grifes e "atitudes"
que se apresentam sob o mesmo título.
Na ativa desde 1997, a carreira deles acumula "muitas risadas,
algumas lágrimas e muita história pra contar", como eles
mesmos dizem no encarte de seu terceiro disco, Desconhece
o Rumo Mas Se Vai (2003), um disco que, como os outros dois
– La Carne (1997) e Bom Dia, Barbárie (2002) –
foi gravado e lançado em sistema totalmente independente: bancado,
gravado e distribuído pelos próprios integrantes, sem apoio
de nenhum selo ou patrocinador.
E todos esses três foram relançados em maio, e foi a propósito
desse relançamento que o S&Y se encontrou com a banda, poucas
horas antes de um show que eles fariam no Teatro do Departamento
de Comunicação Social da Universidade de Taubaté. Não num camarim
ou em um bar classudo, mas numa padaria meio mal-freqüentada
da cidade, com vários amigos deste repórter e da banda ao lado,
entre várias rodadas das mais variadas bebidas. Informal e sem
rodeios, como convém ao quarteto.
Depurar essa entrevista não foi fácil. Conversar com eles rende
muita história, muitos pontos de vista tão simples quanto desconcertantes.
Impressiona também a simpatia e a simplicidade dos quatro, raros
em qualquer círculo de convivência hoje em dia. O que segue
abaixo é um resumo bastante retalhado de uma das entrevistas
mais ricas e marcantes que já pude participar. Confira.
Vocês estão relançando os três discos de uma vez só. Como
é que surgiu esse relançamento?
Linari - Olha, cara, o nosso último disco (Desconhece O Rumo
Mas Se Vai) teve um problema na prensagem, o cara que fez
o disco nos deixou com 150 cópias bichadas (Nota: que simplesmente
paravam de tocar na sétima faixa), a gente procurou ele para
trocar os CDs, não conseguimos e nesse vai-e-vem a gente decidiu
pegar o master do disco e relançá-lo, e já que a gente ia fazer
isso, já botava os outros dois na praça também. Nesse hiato,
aconteceu uma coisa muito legal, que era o pessoal que chegava
nos shows ou nos ensaios com um CD-R com nossas músicas.
Junior - É, o cara gravava de um amigo, ou, a maioria baixava
lá da Trama Virtual...
Linari - E a gente tem uma referência muito clara, uma percepção
do nosso som que é dividida pelos discos, tipo "essas músicas
são do primeiro disco; essas, do segundo; essas, do terceiro".
E o cara que gravou esse CD-R não tem essa percepção, entende
o nosso som de uma maneira totalmente diferente e que para nós
é... louca! Então, esse relançamento vem disso também, porque
as pessoas que se interessam por nossa música, se interessam
por ela como um todo!
E é legal ver isso acontecer, porque os discos são todos
bem diferentes um do outro. Todos têm a personalidade da banda,
mas há diferenças claras: o primeiro é bem suingado, quase pop;
o Bom Dia, Barbárie é mais cru e tosco, quase uma transição,
e o Desconhece o Rumo... é bem lento. Queria aproveitar
e perguntar se essa mudança é uma coisa planejada, intencional.
Linari - Não. Nunca é, até porque compomos tudo em jam sessions.
Jorge - Nós temos um quinto elemento na banda que é muito importante,
que é um gravador. Antes de plugar a guitarra no amplificador,
eu ligo o gravador e deixo registrando tudo. Compomos de forma
espontânea, na hora, e se não gravarmos, perdemos tudo.
Junior - Até aconteceu um lance engraçado esses dias. A gente
gostou de uma levada que a gente criou e quando fomos tocá-la
de novo, o Carlinhos falou "volta a gravação aí, porque
eu não lembro o que eu toquei". (risos)
Linari - É bem isso, a gente enche a cara e começa a tocar.
Carlos - Até tá escrito em algum lugar (nota: no próprio site
da banda) uma coisa que define perfeitamente a banda: quatro
caras que se reuniram para uma jam session que ainda não terminou.
E é isso que faz a banda ser o que é. Na hora em que isso mudar,
que alguém começar a trazer material que compôs em casa, a gente
vai se pôr a perder, vamos perder nossa identidade, nossa vontade
de tocar.
Vocês também não ficam dizendo que é difícil, posando de
sacaneados pela indústria musical nem são vistos nas rodinhas
do mundinho de bandas e jornalistas...
Carlos - É que o nosso público cativo é de quatro ou cinco pessoas!
(risos) Esse papo de indústria não tem razão de ser. Quando
alguém começa a falar isso, a gente já vai saindo...
Junior - Até porque, entre nós, a gente nunca conversou ou conversa
sobre isso.
Vocês se mantêm distantes das panelas, dá para perceber...
Jorge - Temos amigos em Curitiba e é incrível ver como as bandas
de lá tem uma identidade própria, para ser aceita parece que
a banda tem que criar algo novo. Em São Paulo é o contrário:
você tem que se parecer com alguma coisa para ser aceito, as
bandas que se freqüentam todas se parecem entre si e também
com alguma coisa de fora.
Junior - Ou parecem Jon Spencer, ou White Stripes, ou Placebo...
ou parecem com alguma outra coisa, mas sempre têm uma referência
clara.
Jorge - E nós não. Já fomos tachados de arrogantes por isso!
Arrogantes? É uma coisa estranha. Mas aí fica naquela: com que
banda vamos tocar? Nosso som não se identifica assim.
Carlos - Fora as piadinhas e gozações por sermos mais velhos...
E o lance das letras, Linari? É uma coisa que marca bastante
a banda, são bastante anti-convencionais. E você já disse que
você joga as palavras na hora, nunca escreve nada antes.
Linari - Olha, para não dizer que não escrevo nada, antes da
gente gravar eu vou e ponho alguma coisa no papel. As letras
são todas jogadas de improviso em cima do som que é levado na
jam, os caras estão criando um som e eu penso "o que que
eu posso cantar agora?", "que vocal eu vou pôr nessa
porra?" (risos) e é assim que acontece. Elas não são poemas,
eu canto o cotidiano, na linguagem coloquial. Nós nos propomos
a ser uma banda que canta e usa essa linguagem.
E cada um cria uma visão, uma interpretação diferente, a
partir das letras.
Linari - É isso, tento fazer as letras assim, para não ter uma
interpretação definitiva.
Jorge - Cada um vai ter sua visão da letra, mesmo que não seja
aquela que foi nossa intenção original.
E é essa viagem que empolga e marca tanto. Mas aproveitem
para esclarecer a ignorância do menino aqui: o que é a "Quitaúna"
que aparece no refrão de Jukebox?
Linari - Quitaúna é um bairro de Osasco. Eu me lembro bem de
quando eu fiz essa música, tinha acabado de perder minha véia
e tinha acabado de sair de casa. Morávamos eu, ela e meu pai,
e estar saindo de casa, indo morar nesse bairro, que tem uma
história que é muito importante na minha vida... A música é
quase um telefonema, contando como as coisas estão.
Sobre essa coisa do cotidiano: isso me faz ter uma definição
do som de vocês, que seria o equivalente sonoro aos textos do
Mário Bortolotto
Linari - Você acha isso mesmo? É legal ouvir isso, até porque
tenho certeza que ele não pensa assim. O Mário é um cara que
em música gosta das coisas certinhas, blues de doze compassos,
Stones, e isso não é algo com o qual a gente se identifica.
Jorge - É, ele tem um gosto bem tradicional...
Ele gosta de Velhas Virgens... (gargalhadas)
Junior - É, acho que isso define tudo.
Linari - Mas, pô, ele é um cara que tem um texto foda. Aliás,
a gente voltou a tocar Jukebox nos shows por causa dele,
que usou a música numa peça e ficou uma coisa muito forte. Era
uma música para a qual a gente nunca deu muita atenção. Pô,
é uma balada!
Jorge - Uma balada bêbada! (risos)
Linari - Uma balada bêbada, isso mesmo! Mas depois dessa peça,
a gente viu quantas pessoas gostam dessa música e voltamos a
incluí-la nos shows. E o Marião tem uma banda de blues chamada
Tempo Instável, que toca Jukebox numa versão ainda mais
bêbada!
Agora voltando à banda: o que faz quatro caras passarem oito
anos nesse esquema? Quero dizer, ninguém aqui é criança, a banda
não é uma atividade das mais rentáveis, rolam uns tombos como
esse prejuízo das cópias defeituosas...
Linari - Como assim?
Jorge - O que faz a gente ser quem é? Ou o que nos faz continuarmos
tocando?
É. O que faz vocês continuarem nessa estrada?
Jorge - Eu toco há muito tempo. Desde os quatorze anos eu tenho
banda, e nunca fiquei sem ter uma guitarra pendurada no ombro.
A gente tem tanta coisa no dia-a-dia, o mundo exige tanta coisa
atualmente para você manter casa, família...
Carlos - ...filho pequeno, escola pras crianças...
Jorge - ... trabalho, cansaço. Então, se reunir e tocar no fim
de semana, é quase uma volta ao primitivo, é uma descarga do
stress, é um momento onde você pode ser você mesmo sem se preocupar
com todas essas coisas que acontecem na semana. E a gente pode
ser mais velho, mas a gente é supercriança, rola muita palhaçada
nos ensaios, e é uma coisa que faz tanto bem pra gente. A amizade,
o som, são coisas muito fortes para você não querer ter uma
banda, não querer cultivar isso.
E acaba resultando numa longevidade que dá para projetar
em vocês. Eu não consigo imaginar o La Carne saindo dos palcos,
vocês parando de tocar. Quem vê vocês ao vivo não consegue imaginar
isso.
Linari - A gente não depende da música para viver. A gente pode
fazer o que quiser, sem se prender a nada. A espontaneidade
está em tudo o que a gente faz.
Relançamentos
La Carne (1997)
Bom Dia, Barbárie (2002)
Desconhece o Rumo Mas Se Vai (2003)
por
Leonardo Vinhas
Os três discos do La Carne têm cada qual vida própria. La
Carne (1997) é uma das melhores estréias do rock brasileiro
de todos os tempos. Ainda que tenha sido (à época) mais comentado
que ouvido, dá para dizer que quem ouviu não só o comprou como
colocou-o em lugar de destaque na prateleira e na memória auditiva
afetiva. Baixos ribombantes que golpeiam o estômago enquanto
a guitarra vaza sangue e suingue acompanhada pela bateria, com
a interpretação única de Linari se fundindo a essa massa fluida.
Arrebatador, com um caráter quase pop, traz na abertura o mais
perfeito cartão-postal de São Paulo, Viaduto do Sol ("Pra
sombra gelada do Mappin / Pra bosta verde da polícia / Quero
ficar / Dançando até meu dia chegar / (...) Olha lá os astecas
tocando / soprando aquela porra de bambu / me cago en la madre
/ estos chicos deben ser hijos del sol").
Demônio Triste e Quem Aqui têm refrões perfeitos,
grooves no talo e Linari usando todo o alcance de sua voz. Sobre
a Revolução é um molde único e inimitável para uma canção
perfeita, cuja letra ainda antecipava "a treta no Afeganistão".
Por Onde Anda Você e Um Brinde ao Iggy Pop! são
canções frenéticas, um pogo de mais de três acordes e mais intenso
que qualquer punk rock. Canções como Marimbondo, Sim, É Um
Mundo Sujo e Riso de Ninguém pagam tributo velado
ao underground paulistano dos anos 80, influência assumida da
banda.
Apesar disso tudo, duas canções se sobressaem como verdadeiros
atropelamentos emocionais. De Uma Lembrança Estranha
é um homem vomitando suas próprias entranhas entre fracassos
e frustrações: "Vem cá cheirar minha boca / Hoje eu não
passei no bar / Tava jogando pedra na janela de Deus / (sobre
todas as coisas) / Não consegui dinheiro hoje, não / Não consegui
aquele emprego hoje não / Eu não pedi pra você me esperar".
Numa melodia tão pop quanto intensa, ela gruda num aspecto incômodo
do seu ser à primeira audição e para sempre estará lá, recalcitrando
contra sua arrogância e autocomiseração. Já Jukebox,
só ouvindo para crer. Digo apenas que o refrão é: "fala
pro pai que eu tô legal". E o que acontece para Linari
cantar isso? Descubra ouvindo.
Embora as faixas de Bom Dia, Barbárie (2002) tenham sido
compostas quase todas no período 1997-1998, elas já diferem
bastante da estréia. Tava Aqui Pensando poderia constar
no antecessor, mas as outras canções são muito mais cruas e
toscas, com um peso rítmico bem bruto remendado de fuleiragem
explícita e sentimento de urgência. Mais enxuto (sete músicas
em cerca de 25 minutos), transformando o suingue em uma espécie
de rockabilly pós-punk, onde a guitarra de Jorge (que não usa
nenhum pedal) domina tudo e conclama a velocidade como valor
maior. Os versos de Linari estão mais esparsos e enigmáticos.
A faixa-título é uma das melhores composições da banda, e This
Is Not Real, Son tornou-se uma das preferidas dos fãs. A
letra, enigmática, conclui: "agora que fodeu, ninguém quer
mais você / então valha-se! / escuta a farsa medonha no ar /
a piada que quer te matar / e a lembrança do que foi bom pra
você".
Desconhece o Rumo Mas Se Vai (2003) abandona qualquer
espectro pop e investe fundo na experimentação dos recursos
da guitarra (ainda sem pedais), nos grooves jazzísticos de baixo
e bateria e no conceito que é expresso pelo nome do disco. Ainda
assim, produz dois clássicos de aderência instantânea: a frenética
É Baderna!, cantada com um megafone e dotada de uma trama
instrumental de desmembrar um corpo; e a faixa-título, um épico
de nove (!) minutos, pesado e belo, que vai da simplicidade
à perturbação sem pedir licença e com um capricho harmônico
sem parâmetros. O encerramento é igualmente portentoso, com
a apropriada Canção do Mar Revolto. Café Amargo
é quase uma canção de cabaré, enquanto Figurinha Difícil
brinca com pequenas notas e desencosta exus urbanos. Apesar
do contraste com a anfetamina do anterior, um disco com muitas
virtudes. Talvez a única banda na qual se aplique com justiça
a surrada expressão "visceral", La Carne é uma banda
sem meias-palavras, na qual inventividade e sinceridade andam
juntas e são apenas o ponto de partida para o nascimento de
música em forma de socos. Com os três CDs relançados a preços
muito acessíveis, não há desculpa para você não conhecer o som
desses caras. A distribuição é feita pelo site da banda.
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La Carne
La Carne no
Trama Virtual
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