Esse Você Precisa Ouvir: "Vapen Och Ammunition", Kent
por
Eduardo Palandi
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11/10/2005
Tenho minhas teorias sobre música. Algumas até foram publicadas aqui no
Scream & Yell, quatro anos atrás. Outras eu só conto para alguns amigos
próximos. Uma delas é a de que a Suécia é, por excelência, o país do
refrão, numa tradição que tem trinta anos de vida internacional - vem
pelo menos desde Waterloo, do Abba. Nos anos seguintes, Roxette,
Cardigans e Hellacopters encarregaram-se de fazer o mundo cantar junto e
de trazer ainda mais divisas para esse rico país.
O Kent é uma banda pouco conhecida fora da Escandinávia, apesar
de algumas tentativas de sua gravadora para que a banda emplacasse
nos EUA e no Reino Unido - que fez com que lançassem
dois discos de duas versões cada, em sueco e em inglês. Quando
a BMG sueca percebeu que a missão era difícil, o Kent decidiu
voltar a dar atenção total a seu amado país, onde são astros
de primeira grandeza. Vapen Och Ammunition (Arma e
Munição), de 2002, é seu quinto trabalho, lançado apenas
em sueco. Em suas dez canções a banda faz um tratado pop, uma
obra-prima composta de refrões, guitarras, teclados estrategicamente
posicionados e backing vocals. Nada original, mas minha mãe
já ensinava que o que importa não é "o que" você faz, mas "como"
faz. E você precisa ouvir "o que" e "como" o Kent fez esse disco.
O disco abre com Sundance Kid, onde uma base meio shoegazer faz a cama
para Joakim Berg, o vocalista, cantar "há muito tempo atrás / brigávamos
contra a estupidez / chegamos até a cidade dos sonhos / sabendo de tudo
e cheios de arrogância / tendo a fé como arma mortífera / eram outros
inimigos contra outros de nós". O título faz referência ao personagem do
mestre Steve McQueen em Butch Cassidy, um assaltante de bancos do
velho Oeste que decide fugir para a Bolívia. Desde o começo da canção,
você já percebe quais são as armas e munição do Kent: guitarras
primorosas, refrões cuidadosamente estudados pra ficar na sua cabeça,
aulas de backing vocals.
Em Pärlor (Pérolas), cada verso do backing vocal completa um verso
do vocal principal, até que a explosão do refrão acaba com isso deixando você
com os versos "så snurra min jord igen / radion spelar vår sång /
Stockholm ligger öde och världen håller andan / snurra min jord igen /
för allt vi drömde en gång / allt som du gör blir till pärlor på min
panna". Algumas palavras do sueco têm parentesco bem próximo com o
inglês, mas experimente pronunciá-las. Depois de dez vezes, continua
dificíl - mas a cada tentativa você fica com mais vontade de aprender a
cantar.
Num disco em que as dez canções poderiam ser singles, é impossível saber
como eles decidiram escolher os hits. O primeiro deles, Dom Andra (Os
Outros), venceu do Grammy sueco em 2003, e retrata a busca por amor e
reconhecimento. Tem uns recados primorosos a quem muda por causa dos
outros, do tipo "coma gordura e açúcar até vomitar / ou tornar-se um
mártir de quatro toneladas / só não se venda barato". Sob os versos,
sintetizadores cortados por uma guitarra mais baixa.
Logo depois, Duett (Dueto) coloca a cantora Titiyo ao lado de Berg,
e os dois constróem juntos uma canção de amor. "Recebi uma mensagem /
uma carta de verdade e com um selo / um postal de muito tempo atrás /
quando o futuro era nosso". O refrão é embasado na frase "att långsamt,
långsamt, åh så långsamt" (lentamente, lentamente, oh, tão lentamente),
mas a velocidade com que você vai cantar algo como "atlongsa, longsa, ah
solongsaaaaaaa" será espantosa.
Hur Jag Fick Dig Att Älska Mig (Como Eu Fiz Você Me Amar) parte de
uma batidinha que, com o perdão do trocadilho, é bem batida, para que
Joakim Berg conte à amada o que ele precisou fazer para que ela se
interessasse por ele. Dela, vale mencionar os versos "você nunca se
importou / com aqueles que me chamavam / de 'um estrago já feito'". É
loser, é verdade. Mas se a musa da canção tivesse ouvido as cinco
canções que abrem o disco, seria paixão à primeira vista. Metais
sintetizados fecham suavemente a música, abrindo caminho para Kärleken
Väntar (O Amor Espera - sim, não é só o Radiohead que diz isso).
Kärleken..., outro single, flerta novamente com o shoegazer e tem um solo de
guitarras que me deixa maravilhado. Não toco nenhum instrumento e só
tenho simpatia pelo piano, mas, quando ouço o solo dessa música, sou
tomado pela vontade de aprender a tocar guitarra. Fora isso, mais uma
aula de backing vocals, que faz o Kent superar até o Teenage Fanclub,
ícone do assunto. O clipe da canção mostra um casal de adolescentes
perdendo a virgindade - debaixo dos lençóis: e antes que alguém aí
reclame; é a coisa mais bonitinha do mundo, apesar da comemoração do
goiabão, na frente da menina, depois de consumar o ato.
Em Söcker (Açúcar), o pianinho da introdução disfarça bem a letra, uma
metralhadora giratória contra a apelação na tevê e as celebridades
instantâneas (sim, a Suécia também tem disso). Em tom de deboche, Joakim emula um apresentador anunciando a atração do dia em seu programa:
"E o convidado dessa noite é Jesus / ele se viciou em heroína / ele
tomou um gole em seu copo / e a água Évian virou vinho / ele vai falar
de suas armas / de seus tempos em Saint-Tropez / sobre se dar uma chance
/ e sua nova BMW Z3 / em um mundo de idiotas / ele é o primeiro da fila
/ vai falar em frente às câmeras / sobre como foi trocar de sexo / ou
qualquer coisa do tipo / que deveria ser íntimo / sobre todos aqueles
que amou / e aqueles para quem pagou um boquete / mas ele sempre disse
'não'". Artilharia pesada, sem dúvida, mas coberta por um pop perfeito,
impecável, incontornável.
Na faixa oito, FF, o Kent convida a cantora francesa Nancy Danino para
um dueto bilíngue: Berg em sueco, ela em francês. Impossível descrever
com palavras essa canção, mas aí vão umas tentativas: ela é pulsante.
Vibrante. Poética. Você precisa ouvir isso, juro. Foi a terceira música
de trabalho do disco e ganhou um clipe sem graça, mas nada que estrague
o belo arranjo e a linda melodia.
Pro final, Elite começa como se fosse um blues lo-fi, mas basta uma
pandeirola e o clima muda. Na letra, uma certa decepção do protagonista,
que diz ter uma família cheia de heróis, corações partidos, alianças
cansadas e um orgulho entediante - e que o caminho de tudo isso
desembocou nele. Um coro de lalalas garante a aula de pop, entrando no
último quarto da canção. E Sverige (Suécia) fecha o disco, com um
violão dedilhado e uma declaração de amor ao próprio país:
Suécia, Suécia, amada amiga
Uma tigresa envergonhada
Eu sei como se sentes
Quando a realidade vira piada
Quando o silêncio assusta -
O quê aconteceu?
Bem-vinda, bem-vinda aqui
Quem quer que seja, onde quer que esteja
Prepare sua varanda para uma festa
Para um convidado que vem de longe
Numa terra onde o suficiente é o melhor
E nós bebemos até o sol da meia-noite
Com batatas frescas e peixe
Como se estivéssemos parados no tempo
A chuva bate contra as vidraças agora
Mas as noites brilham numa terra sem som
E os copos brilham quietos sobre a mesa
Vazios como as palavras
E com certeza o amor é grande
O mínimo que se poderia dizer é que a Suécia do Kent é melhor que
Brasil do Cazuza - em termos de canção, saneamento básico e indústria
automotiva, pelo menos. Mas, mais do que me dar uma vontade enorme de
aprender a tocar guitarra, a falar sueco e a conhecer o país, em Vapen
Och Ammunition o Kent tem armas e munição pra dizer que a Suécia é o
país do refrão. E ainda tem gente que vota a favor do desarmamento...
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Links
Site Oficial do Kent
Eduardo Palandi é o único brasileiro a escrever sobre música
no blog português Drowners
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