Irmão Rock - A Pré-História da Walverdes

Por André Takeda

Reza a lenda que Gustavo Berwanger Bittencourt era um pré-adolescente tão pequeno, mas tão pequeno, que na quinta ou sexta série do primeiro grau era capaz de entrar dentro de sua mochila e, acredite, ficar apenas com a cabeça para fora. "Olha", diziam seus colegas do Colégio de Aplicação, "é uma mini-pessoa!".

Foi assim, de um jeito meio circense, que aquele menino tímido ganhou o apelido que acabaria substituindo seu próprio nome.

Nos anos 80 o Colégio de Aplicação era considerado a melhor escola de Porto Alegre. Ter um filho estudando lá era o sonho de todos os pais da cidade. Afinal, o Aplicação possuía um método de ensino diferenciado e professores da própria UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E ainda era quase de graça. Você só precisava pagar uma taxa por semestre e pronto. Mas, por outro lado, não era nada fácil entrar no Aplicação. Era preciso sorte, muita sorte. Para entrar em uma de suas turmas, era necessário passar por um sorteio disputadíssimo.

Eu fui o último dos trinta sorteados para compor a nova turma do segundo grau (a outra já estava formada desde a primeira série do primeiro grau). Apesar de estar deixando para trás muitos amigos do Colégio Santa Inês, minha felicidade foi às alturas. Se para os pais o Aplicação era sinônimo de ensino nota dez, para os alunos ele sempre foi conhecido como uma escola liberal. E para quem estava traumatizado com o rigor de um colégio de freiras, qualquer espacinho já era o suficiente.

E realmente não havia como negar. O Aplicação era um colégio diferente. Para começar, ficava em três andares do prédio da Faculdade de Educação da UFRGS, entre as Faculdades de Filosofia e a de Arquitetura. Ou seja, éramos um bando de pirralhos no meio dos universitários. Mas o que mais impressionava era a falta de um portão ou coisa parecida. Você simplesmente poderia entrar e sair do colégio sem dar explicação a ninguém. Agora, imagine toda esta liberdade nas mãos de um grupo de alunos que só queria saber de fumar maconha e beber cerveja.

É, hoje parece difícil de acreditar, mas eu fazia parte da turma barra pesada do Aplicação. Ou como dizia nosso genial professor de Geografia, o uruguaio Fructuoso Rivera, "drograditos". O fato é que nós "drogaditos" costumávamos sair no intervalo de trinta minutos para ir até o Bar do Mário, que ficava do outro lado da UFRGS (na famosa Avenida Oswaldo Aranha, por muitos anos reduto dos alternativos de plantão de Porto Alegre). Ali, enchíamos a cara, fumávamos cigarros, conversávamos sobre rock’n’roll e voltávamos para a sala de aula caindo de bêbados. Tinha o Santana, praticamente um marginal que ouvia bandas como GBH, Cólera e afins; o Rafael, ou Mongolão, um alemão sósia do Jim Morrison quando magro, e que, anos depois, se tornaria um verdadeiro junkie; a Vivi, uma grega andrógina e fã dos Beatles; o Barata, nosso fornecedor de maconha; a Bullê, uma patricinha de corpo perfeito; o Juca, um cabeludo que vivia tomando bolas; e eu, um japonês metido a escritor e fã de Stone Roses, Echo & The Bunnymen e Pixies.

Todos – menos o Mongolão e eu, que já estudávamos na segunda série – estavam no primeiro ano. Acho que naquela turma encontrei o espírito rocker que sempre quis na vida. A Vivi assinava Vivienne Westwood, o Santana usava um corte moicano (se bem que depois seu pai mandou raspar toda cabeça), a Bullê era a groupie que todo mundo pediu a Deus. Foi nessa época também que comecei a montar uma banda junto com meu primo Flávio. Eu era o vocalista, ele o guitarrista, um amigo dele chamado Fred era o baixista e, bem, faltava um baterista. Então um dia a turma toda estava voltando do Bar do Mário e, enquanto atravessámos a quadra de futebol de salão, eu perguntei "Alguém conhece um baterista?". A Vivi logo respondeu "O Mini toca bateria". "O Mini?", pensei comigo mesmo, "aquele cara magrinho e baixinho?". "E toca bem pra caralho", ela acrescentou. Já que o Mini era o único baterista que conhecia, não custava nada tentar. No final daquele mesmo intervalo fui falar com ele e logo marcamos um ensaio para o sábado.

Era o começo de uma banda que nunca deu certo. E de uma amizade que, tenho certeza, jamais vai acabar.

"Ah, André, vai dizer que este baixinho é o baterista", meu primo Flávio resmungou quando viu o Mini sentado nas escadas que levavam ao estúdio. Falei que todos no Aplicação diziam que ele era foda nas baquetas. E, com uma certa desconfiança, entramos no estúdio.

O estúdio era uma das maiores espeluncas que já havia visto na vida. A dona mais parecia uma cafetina e nada funcionava direito. Mas, você sabe, tudo pelo rock'n'roll. Eu, o Flávio e o Fred víamos o Mini desaparecer enquanto arrumava a bateria. Nossa desconfiança crescia a cada minuto. Até que ele começou a tocar.

Quando o Mini diz que é influenciado por The Who acho que está falando da época em que seu instrumento principal era a bateria. O guri era a própria reencarnação do Keith Moon. Foda. Muito foda. Em menos de dez minutos já havia nos convencido que tinha que ser nosso baterista. E, talvez por não ter outra banda para tocar, ele acabou ficando.

E enquanto a banda já tinha até ensaios semanais, minha amizade com o Mini foi crescendo. Ele sempre fora amigo dos "drogaditos", mas nunca havia sido oficializado como um. Até porque naquela época ele era bem careta. De qualquer forma, como éramos amigos ele começou a freqüentar também o Bar do Mário.

Mas não foi apenas o rock que nos aproximou nos tempos do Aplicação. Ele adorava quadrinhos, como eu. E também gostava de escrever. Logo, fazíamos parte do Laboratório de Literatura do colégio, onde escrevíamos e discutíamos nossos textos. Pode parecer pretensão de minha parte, mas acredito que no segundo grau eu era uma espécie de agitador cultural. Apresentava bandas novas para os colegas, abria os olhos para livros que não fossem do currículo, escrevia peças de teatro e manifestos cheios de revolta juvenil. Digo isso sem me preocupar com humildade porque penso que esta minha atitude despertou o talento de muita gente. O Mini, por exemplo, sempre teve este talento inegável para a música e a literatura, mas, de alguma forma, nossa amizade contribuiu para ele revelar sua arte. Nunca disse isso para ele, mas acho que isso é verdade. Por isso, sinto muito orgulho cada vez que vejo o cara no palco ou leio uma de suas linhas. É como se eu soubesse que ele seria este cara talentoso que hoje é antes de todo mundo.

E, assim, eu e o Mini nos tornamos colegas de colégio, banda, literatura. Mesmo quando eu saí do Aplicação, um ano antes dele, nós continuamos a nos encontrar uma vez por semana para os ensaios. A banda até que era ok, uma espécie de Stone Roses-encontra-Jesus & Mary Chain com sotaque gaúcho. Nunca nos preocupamos em produzir uma demo ou sair atrás de shows. Nem nome a gente tinha. Ou seja, era pura diversão. Mas o meu primo Flávio se mudou para o Japão em 1991, e Júlio Porto entrou na banda para assumir a guitarra. Acredito que a partir daí o Mini começou a sua grande virada musical. Afinal, um ano mais tarde o Júlio formaria a Ultramen, influência assumida dos Walverdes. E, claro, em 1991 foi lançado um dos discos prediletos do Mini: Nevermind do Nirvana.

Em 1999, quando uma versão caseira do meu livro Clube dos Corações Solitários começou a circular pelo circuito da música independente do País, lembro que, em uma lista de discussão da Internet, teve uma pessoa que escreveu que a passagem onde uma das personagens diz "o Nevermind mudou a minha vida" é fora da realidade. Talvez pareça, admito. Mas não é. Depois de ouvir o Nevermind, o Mini nunca mais foi o mesmo. Muito menos os nossos ensaios.

Tente imaginar a cena: o Júlio tentando colocar sua recente paixão por Red Hot Chilli Peppers nas guitarras, o Mini destruindo a bateria como o Dave Grohl, o Fred entrando numas de Van Halen e eu ainda pensando que era o Ian Brown. Lógico que nunca iria dar certo. A questão é que o elo de ligação da banda era o Flávio. Afinal, era com ele que eu dividia as influências inglesas. E, aos poucos, a gente foi se separando. Até porque o Mini estava estudando para o vestibular e já não tinha muito tempo para os ensaios.

Por coincidência, o Mini decidiu fazer o mesmo curso que eu. Bom, na verdade minha primeira opção era jornalismo, mas sei lá por que diabos acabei entrando na faculdade de publicidade. Em 1992, quando o Mini passou no vestibular, eu já estava estagiando em uma emissora de televisão. Mesmo com o final da banda, ainda mantínhamos contato e era claro como o som de Seattle havia capturado o menino, principalmente o rock cru do Mudhoney. E havia também a Ultramen, que, na minha opinião, é desde o início dos 90 a melhor banda gaúcha. Eu e o Mini costumávamos ir aos primeiros shows da nova banda do Júlio e lembro que ficávamos loucos. Nossa. O que era aquilo? Foram nos shows da Ultramen que o Mini realizou os seus mais memoráveis stage-divings, tão memoráveis que chegou até a quebrar seus óculos. Pois bem, em 1993 eu fui trabalhar em uma minúscula agência de propaganda, onde, além de redator, era telefonista, boy, produtor eletrônico, atendimento e o escambau. No final daquele ano, o Mini apareceu e pediu um estágio. O cara foi tão simpático – aliás, simpatia sempre foi uma de suas principais qualidades – que conquistou todas as seis pessoas que trabalhavam lá: as duas sócias, o cara do dinheiro, a diretora de arte, o boy oficial e a recepcionista. Acho que começou a trabalhar na mesma hora, dividindo comigo a parte de redação.

Agora, olhando para trás, vejo que, mesmo ganhando pouco, trabalhando feito um louco e agüentando clientes sem um tostão sequer, eu era muito, muito feliz. A gente chamava aquela agência de nosso pequeno parque de diversões. Hoje, tanto eu quanto o Mini temos empregos muito melhores, mas tenho certeza que aquele clima de colégio – afinal, era isso que estávamos fazendo: aprendendo – é quase impossível de encontrar de novo. Mas algumas coisas nunca mudaram: a amizade, o rock e a literatura.

Eu já tinha esquecido desta história de ser roqueiro quando o Mini me falou que estava tocando em uma nova banda. E eles queriam que as letras fossem em inglês. E eles precisavam de alguém que cantasse em inglês. E eles achavam que eu tinha um bom inglês. Como estava em um período de entressafra, sem namorada nem nada, resolvi aceitar o convite. Pelo menos eu teria algo para fazer aos sábados.

O nome da banda era simplesmente horrível: Green Peanuts. Mas, tudo bem, logo eu era mais um dos amendoins verdes. A banda era formada por amigos do bairro onde o Mini vivia, o Menino Deus. Não lembro do nome de todo mundo. Só do guitarrista Luiz Fernando e do baixista Felipe. Além dos dois, tinha um tecladista que mais parecia uma criança e um outro guitarrista muito, mas muito certinho mesmo. E o som? Bem, o som era uma imitação das mais ruins de Pearl Jam. Só que, para piorar, o tecladista conseguia destruir qualquer tentativa de tornar nossas músicas mais... grunges. E, claro, o meu vocal sempre foi dos mais limitados.

Ah, mas nós tivemos nosso grande momento. Alguém conseguiu que a Green Peanuts fosse a banda convidada para um festival de um colégio de Porto Alegre. Um show de verdade. Nossa chance. Tudo bem que a gente queria expulsar o tecladista, o que foi impossível devido a sua amizade com um dos guitarristas, mas tivemos a genial idéia de pedir para ele tocar com o volume mais baixo. Ou seja, nada poderia impedir o sucesso do Green Peanuts. Mas as coisas começaram mal logo na passagem de som. Estávamos todos lá no palco, posando de roqueiros, quando, do nada, surge a mãe do tecladista trazendo lanche. Isso mesmo, lanche! Foi um mico daqueles. Eu e o Mini fizemos que não conhecíamos o tecladista, muito menos a mãe dele. Pensando bem, acho que saímos perdendo. Até que os sanduíches pareciam gostosos.

O show em si foi mais trágico ainda. A Green Peanuts, que já nasceu headliner, iria tocar depois da primeira banda convidada. Mas, enquanto esperávamos nossa vez de entrar no palco, vimos que a coisa tinha ficado feia de vez. A banda era de heavy metal, com seus instrumentistas virtuosos e tudo, e a platéia estava delirando. Falei para os caras “Nós vamos ser apedrejados”. Mas era tarde demais. E, tremendo de medo, entramos no palco.

O plano era começar só depois de eu dizer "um, dois, três, quatro". Só que fiquei paralisado, olhando para aquele bando de adolescentes loucos por mais rock pesado. Toda a banda ficou me olhando, até que cheguei perto do microfone e perguntei "Vocês gostam de heavy metal?". Todo auditório gritou "Siiiiimmmm!!!!!". E eu "Vocês querem heavy metal?". E a galera "Siiiiimmmm!!!!!". Aí eu agarrei o pedestal e, com a maior calma do mundo, falei "Então vocês se foderam porque a gente não toca heavy metal", e logo depois emendei "um, dois, três, quatro". E, assim, tocamos nosso grunge de terceira categoria como se fôssemos músicos profissionais. Mas, quando terminamos de tocar nossas três músicas, não havia mais como fugir da realidade: a Green Peanuts era ruim demais.

Só que meus companheiros de banda eram persistentes. E continuamos a ensaiar. Logo, trocamos o quarto de empregada da casa do guitarrista certinho por um estúdio decente. Foi nessa época que o Marcos, outro amigo de infância do Mini, começou a aparecer em nossos ensaios. Ele tocava bateria e muitas vezes assumia as baquetas quando nosso horário já estava no final. E o Mini pegava a guitarra e começava a tocar Nirvana. Estava surgindo, então, o embrião de uma das melhores e mais honestas bandas de rock do circuito alternativo do Brasil.

Eu já estava de saco cheio da Green Peanuts. Minha segunda experiência como roqueiro me deu certeza de que eu era um vocalista muito, muito, mas muito ruim mesmo. E, além do mais, não agüentava mais aqueles malditos teclados. Então, em um ataque ridículo de estrelismo, xinguei todo mundo da banda e larguei a Green Peanuts no meio de um ensaio.

Ninguém sentiu minha falta, mas a banda terminou alguns dias depois. Mas aí o Mini resolveu seguir os passos do som garageiro que ouvia cada vez mais e teve a idéia de fazer barulho com outra banda. Para isso, chamou dois Green Peanuts: o Luiz Fernando e Felipe. Como ele queria cantar e tocar guitarra, quem acabou assumindo a bateria foi, naturalmente, o Marcos. Os quatro também se reuniam todas as sextas para encher a cara com Velho Barreiro e comer macarrão. Em um desses coquetéis gastronômicos, batizaram a banda de Walverdes (se não me engano, o nome é uma homenagem ao Município de Walverde, perto do litoral gaúcho).

Daquela época para cá, muita coisa aconteceu com a Walverdes e o Mini. A história da banda, pelo próprio Mini, você pode ler aqui mesmo no Scream & Yell. Quanto ao meu amigo e irmão Gustavo Berwanger Bittencourt, tudo o que posso dizer é que continua o mesmo. Ok. Hoje ele gosta também de drum’n’bass. Hoje ele é fã de Bob Marley. Hoje ele é um grande escritor quando se propõe a escrever. Hoje ele é um redator publicitário bem sucedido e premiado. Hoje ele é um dos principais nomes da cena musical gaúcha. Mas a essência é a mesma. Ele é, sobretudo, aquele mesmo cara simpático, inteligente, talentoso e carismático que conheci há mais de dez anos.

Pensando bem, a história do Mini poderia se resumir assim: era uma vez um guri que saiu da sua mochila para conquistar o mundo. O meu ele conquistou. E o seu?

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