'Busca o Meu Rosto',
de John Updike
por
Jonas Lopes
Yer Blues
16/11/2005
Entrevista, biografia, ensaio, crítica de arte e, é claro, ficção. Esse amálgama de gêneros compõe Busca o Meu Rosto (314 páginas, tradução do sempre excelente Paulo Henriques Britto), romance de John Updike que a Companhia das Letras acaba de lançar no Brasil. Não é seu último livro: originalmente intitulado Seek My Face, foi lançado lá fora em 2002; ano passado Updike lançou um novo romance, Villages, que deve ganhar edição nacional em breve.
Busca o Meu Rosto é entrevista porque se trata de uma conversação entre uma repórter, Kathryn, e uma pintora de 79 anos, Hope, viúva três vezes - duas delas de artistas geniais, e a terceira de um ricaço colecionador de arte. É biografia, pois aborda toda a vida de Hope, de sua infância quacre aos casamentos, sua relação com seus filhos, a convivência com os maridos famosos e a condição de "artista menor", mera coadjuvante de um fértil período. É ensaio por traçar um panorama de muito do que se fez no cenário artístico norte-americano da segunda metade do século 20, e é crítica por analisar tal cenário.
Ainda assim, Updike faz questão de frisar na introdução que é uma obra de ficção, mesmo que romanceie fatos e personagens que existiram. Zack McCoy, primeiro marido de Hope, é uma versão nada disfarçada de Jackson Pollock (1912-56), ícone do expressionismo abstrato. O segundo marido, Guy Holloway, é uma mistura de Andy Warhol, Roy Lichtenstein e outros artífices da pop art. A própria Hope é baseada em Lee Krasner, esposa de Pollock, falecida em 1984.
A história se passa em um único dia, como no romance de estréia de Updike, The Poorhouse Fair, de 1959. E como naquele primeiro livro e em vários outros, a epígrafe é bíblica (e deu origem ao título): "Quando tu disseste: Busca o meu rosto, o meu coração disse a ti: O teu rosto, Senhor, buscarei". O autor, que escreve elogiados artigos sobre arte para o semanário New York Review Of Books há anos e estudou belas-artes na Inglaterra quando jovem, não tem medo de parecer polêmico ao questionar a atualidade da arte performática. Debate também a relevância - defeitos e qualidades - do expressionismo abstrato e da pop art, os movimentos que fizeram da América o centro artístico do pós-guerra.
Updike estabelece um interessante jogo de gato e rato entre entrevistadora e entrevistada. Hope tenta agradar desde o início ("Sempre teve esse defeito, falar, dar, flertar, se esforçar demais para agradar os outros, tentar seduzir"), porém muitas vezes percebe a intenção de Kathryn com determinada pergunta, principalmente aquelas sobre sua vida sexual, e foge da resposta. Uma tenta manipular a outra. E Kathryn, apesar de toda a admiração que sente por Hope, é de outra geração, mais moderna e independente, distante da quase machista pintora, que acredita que o meio artístico é lugar para homens, o que provoca um conflito silencioso, que se atenua conforme as páginas se vão.
McCoy/Pollock, embora morto, é presença constante e poderosa na conversa, uma personalidade fascinante. Hope o descreve como alguém egoísta, mas apaixonado por crianças e animais; pouco intelectualizado e sem conhecimento técnico, mas com grande poder instintivo; divertido e apaixonante, mas violento, alcoólatra e anti-social. E com todo aquele teor autodestrutivo que acompanha os gênios. Guy, que organiza happenings e dirige filmes longos e experimentais, como os de Warhol, é bem-sucedido, cerebral, sistemático e frio. E o yuppie Jerry, último marido, não é brilhante como os outros dois, mas é o que faz Hope mais feliz.
Em meio a digressões sobre arte, Updike exercita o que mais sabe: penetrar as filigranas dos relacionamentos entre casais, o vazio dos pequenos detalhes do cotidiano, da vida comum. Não são muitos autores que conseguem transformar o preparo de um almoço em algo tão perspícuo, tão tocante, um retrato tão afiado da decadência e do peso da idade de Hope. O livro, aliás, tem muito de ensaio sobre a velhice ("Você devia parar de pensar o tempo todo na sua idade", diz Kathryn a Hope) e viagem através da memória.
Não há nada para se dizer de sua perfeição textual que já não tenha sido dito. A prosa de Updike é pictória, visual, abundante, como se ele pintasse, ao invés de escrever, as longas e requintadas sentenças. É possível sentir o cheiro dos cômodos da casa e das plantas do quintal, tal o detalhamento (o que irrita alguns de seus detratores, que o consideram arrastado). Para não falar de sua habilidade jamesiana de vasculhar cada canto, cada esquina da personalidade de suas personagens.
Busca o Meu Rosto não se equipara à excelência de Na Beleza dos Lírios e Coelho Cai, para ficar com apenas dois outros livros - e nem precisaria; aos 73 anos, Updike não tem mais nada a provar. Mas alguns de seus momentos são luminosos. As últimas vinte páginas do livro, quando Kathryn vai embora e Hope fica a colher os cacos do dia e mergulhar em uma cena de sua infância, são primorosas. Não há uma vírgula fora do lugar. Ali se vê que o talento de John Updike transcende a literatura; é arte. Simples assim.
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