Tio Patinhas
40 anos de revista, muitos anos
de vida
por
Leonardo Vinhas
leonardo.vinhas@bol.com.br
14/07/2003
A sensação de ter nas
mãos um tesouro é algo raro, e é lamentavel que ao
nos depararmos com um, possamos incorrer no erro de não saber o
que temos em mãos. Isso aconteceu bastante na juventude de um jovem
imigrante escocês que foi à América em busca de fortuna
para si e glória para sua família. Custou a ele perceber
qual o real valor dos tesouros que ele conquistou, mas posteriormente ele
passou a ter um reconhecimento mais rápido das grandes riquezas
que lhe passariam pelas mãos. E quando o percebia, abria um largo
sorriso de empolgação juvenil e exibia um olhar de um brilho
aparentemente inabalável. E não há de ser diferente
o rosto do leitor que tiver a chance de ler "A Saga do Tio Patinhas",
publicada em dois volumes (o primeiro já está nas bancas
e o segundo sairá no final de julho) pela Editora Abril. Ah, sim!
O jovem a quem me refiro é o próprio Patinhas McPatinhas.
"The Life And Times Of Scrooge McDuck"
foi publicada originalmente em 1992 na revista Anders & Co. n.º
33, regida pelo grupo editorial dinamarquês Egmont, que distribui
os personagens Disney na Dinamarca, Suécia, Noruega e Finlândia
- países onde os personagens tem altíssima popularidade,
bem mais que no Brasil. Foi resultado de um projeto de pouco mais de dois
anos desenvolvido pelo argumentista e desenhista americano Keno Hugo Don
Rosa, ou simplesmente Don Rosa.
Desde sua primeira publicação,
"The Life And Times Of Scrooge McDuck" vinha sendo ansiosamente aguardada
por leitores brasileiros, que esperavam contemplar a saga do menino pobre
que abandonou Glasgow para percorrer o mundo em busca de fortuna e acabou
se tornando o pato mais rico do mundo. A espera acabou, e fica plenamente
recompensada. Impressa em comemoração aos 40 anos da revista
Tio Patinhas, a edição nacional é bem cuidada, apesar
de não trazer luxos em seu acabamento e de ter reduzido alguns balões
de texto. É verdade que Rosa escreve bastante e que a história
não é prejudicada, mas perdem-se umas frases de efeito. É
o único senão em uma obra para se ter, ler e reler.
Don Rosa passou os dois anos do projeto
debruçado sobre a obra completa de Barks, colhendo dados sobre a
biografia e história dos integrantes da família Pato. Feito
isso, ainda examinou o trabalho de outros artistas de renome, como o americano
Tony Strobl e o italiano Abramo Barosso, e pesquisou dados históricos
reais referentes às datas citadas. Dessa forma, traçou a
árvore genealógica dos patos e cuidou de garantir a interação
com figuras notórias da história dos Estados Unidos, como
os irmãos fora-da-lei Frank e Jesse James, o grande criador de gado
Murdo McKenzie e o presidente da nação Theodore Roosevelt.
O resultado enche de êxtase e mareja os olhos de quem já se
sentiu feliz, em qualquer idade, por ler uma revista do Tio Patinhas.
A personalidade do menino ingênuo
e ambicioso vai sendo transformada pelas aventuras e privações
de sua dura jornada. Da resistência ao vilipêndio cometido
pelo desonesto clã MacWhisker até seu encontro com uma ainda
infante (e arrogante) John D. Patacôncio, Patinhas faria muitos inimigos
e tornaria-se um homem desconfiado. Todavia também encontraria muitos
amigos e pessoas de grande importância, desde o engenhoso Mestre
Pardal, cujo neto (o professor Pardal) lhe ajudaria muito no futuro até
o amor de sua vida, a corista Dora Cintilante, que o impediriam de tornar-se
um pato rabugento e amargurado (o que até aconteceria por um curto
período).
O
primeiro volume é totalmente focado na juventude de Patinhas, e
em seu amadurecimento residem as telas para o talento de Rosa ser emoldurado.
Seu encontro no Céu com seus antepassados concilia humor infantil
e arte plácida para que várias gerações da
família McPatinhas antecipem o futuro do último de seus descendentes.
Uma cena inominável no terceiro capítulo envolve cavalos
em fuga, búfalos carregando ossos de dinossauros, um urso furioso,
um touro escocês, criminosos e índios apavorados, tudo sobre
o olhar atônito de Roosevelt - tudo em um único quadrinho!
Em outra ocasião, aos 20 anos de idade (nascera em 1867 e faleceria
em 1967), ele busca vingança contra um andarilho desonesto que o
deixara à morte no coração da savana africana. A seqüência
do acerto de contas vem com tanta fúria e sentimento justiceiro
que não há como ocultar murmúrios (e até uns
brados) de êxtase pela vitória. (Não se conta mais
sobre esse episódio para não estragar outra boa surpresa.
Basta dizer que é o sexto capítulo).
No segundo volume, cai por terra o
mais estúpido e preguiçoso argumento dos detratores de quadrinhos:
o que reza que os personagens não têm pai nem mãe,
literalmente. Pois ao se estabelecer definitivamente na América,
o já milionário Patinhas, em companhia de suas irmãs
Matilda e Hortência, conhece o casal Tomás Reco e Donalda
Patus, e seus três filhos: Patolfo, Patrícia e Patoso. O último
se casaria com Hortência e eles teriam dois filhos: o Pato Donald
e a Pata Dumbela. Dumbela, por sua vez, teria filhos trigêmeos com
um pato desconhecido (leia e confira!), meninos que viriam a ser cuidados
por seu irmão. Claro que estamos falando de Huguinho, Zezinho e
Luisinho. Patolfo se casaria com Ana Dora e seria o pai de Peninha e Zeca
Pato, enquanto Patrícia, casada com o escroque Gustavo Ganso, teria
o Ganso Gastão, herdeiro da sorte da mãe e do pedantismo
do pai. A completíssima árvore genealógica concebida
por Rosa ainda contempla antepassados de outros personagens, praticamente
todos interligados ao trabalho do mestre Barks. Só para se ter uma
idéia, até Bicudo, um sobrinho da Vovó Donalda que
aparecera em uma única história de Barks, ganha aqui sua
justificativa de existência.
O visual é notável:
o traço de Don Rosa combina o padrão estabelecido por Barks
para os patos com detalhismo cínico (sempre tem uma piada subliminar
em cada página - pode procurar) e ainda recebe uma certa dose de
realismo. Patópolis nunca pareceu tão real e verossímil
quanto aqui, uma cidade com história e arquitetura próprias
e muito peculiares. Claro que isso ficaria melhor em uma revista de formato
americano, mas o formatinho tradicional da Editora Abril não chega
a comprometer.
O mais belo disso tudo é que,
apesar dos exageros inerentes a esse tipo de HQ, Patinhas McPatinhas é
um personagem absolutamente cativante, deixando de ser o capitalista superficial
que costuma ser na mão de roteiristas obtusos. E parte desse carisma
brota na eterna busca por felicidade plena empreendida pelo pato, busca
a qual todos nós nos dedicamos com maior ou menor afinco. Como muitos
de nós, Patinhas percebe que a os momentos felizes são transitórios
e que a plenitude nunca se faz presente em todas as áreas de sua
vida. Entretanto, há riquezas nada fugazes que passam velozmente
pelas nossas mãos, e se soubermos reconhece-las e aproveitá-las,
não nos faltará alegria e esperança ao longo da vida.
O personagem, mesmo apegado aos seus bilhões, descobre isso no segundo
volume dessa saga. Acredite: a diversão e a beleza dessa bela epopéia,
ainda que seja "uma simples histórias em quadrinhos", é uma
preciosidade desse tipo. Agarre-a e a tenha para toda a sua vida. Para
sempre ter onde recorrer em busca de sorrisos e renovação
de esperanças, para não viver apenas acordando um dia após
o outro.
Obrigado, Patinhas, por ceder sua
vida ao Don como um palco para o que a vida tem de mais simples e grandioso,
sombrio e divertido!
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