Carl
Barks, o gênio que reinventou o pato
por
Leonardo Vinhas
leonardo.vinhas@bol.com.br
Se
você perguntar a diversos fãs de histórias em quadrinhos
quem eles consideram o maior gênio da arte seqüencial de todos
os tempos, você terá respostas acaloradas e divergentes: Will
Eisner, Charles Schulz, Frank Miller, muitos outros, até mesmo o
marginal Robert
Crumb. E poucos provavelmente lembrarão de Carl Barks, mas mencione
seu nome e ouça um suspiro seguido de um comentário como
"ah! Esse é hors-concours!".
Carl Barks (1901-2000) é possivelmente
o único quadrinista a ser considerado perfeito. Exagero? Roteirista,
desenhista e arte-finalista de várias histórias da Família
Pato dos Estúdios Disney, e pintor extraordinário, Barks
foi responsável por fazer mais que definir a personalidade de seus
personagens e alçá-los ao estrelato. Pode se dizer que ele
humanizou o Pato. A biografia de Carl é rica e repleta de trabalhos
gloriosos nos quadrinhos e na animação. Esse texto, todavia,
detém-se "apenas" ao seu talento nas páginas impressas, pois
essas davam espaço à totalidade do seu poder criativo. Poder
vindo de um homem que tinha concluído seus estudos até o
equivalente americano ao primeiro grau e que viveu a maior parte de sua
vida recluso num sítio, do qual saía apenas duas vezes por
mês para levar seus trabalhos ao editor.
A maior parte da reclusão de
Carl era passada em sua biblioteca, já que os livros eram uma paixão
que o acompanhava desde a infância. E graças a eles o desenhista
pode praticamente recriar civilizações antigas que eram pano
de fundo para as viagens do Tio Patinhas. O artista costumava dizer que
viajara o mundo inteiro graças a seus livros, e tinha boas recordações
de todos os lugares que "visitara". Seu detalhismo ao retratar templos
ou monumentos criava paisagens tão verossímeis e belas que
pareciam ser a transposição de uma foto acrescida da emoção
da arte. Em outras ocasiões, essa profundidade decorria exclusivamente
de sua imaginação, pois lugares nunca descobertos pelo homem
moderno como as minas do rei Salomão ou a sala do tesouro do rei
Minos I da Grécia - ou até paisagens mitológicas como
Asgard ou Cólquida e paragens de sua criação, como
a fantástica Quadradópolis - sugeriam uma notável
impressão de realidade e familiaridade. Entretanto, essa captação
das imagens que pareciam vívidas apenas em nosso inconsciente não
era o único destaque no traço do artista. Os patos ganharam
em suas mãos, um visual mais simpático e carismático,
ficando mais gordinhos e dotando-se de expressões mais maleáveis
e humanas, com o exagero sendo usado de maneira precisa.
Trabalhar as emoções e
características dos personagens era algo também muito caro
a Barks, o que era facilitado pelo fato de ele haver criado a maioria dos
patos importantes que circulam por Patópolis (Duckburg, no original)
e suas redondezas. De sua criatividade emanaram as formas e as características
do sortudo Gastão (Gladstone Gander, criado em 1948), da namorada
Margarida (Daisy Duck, 1940), do inventor maluco e bem-intencionado Professor
Pardal (Gyro Gearloose) e de seu simpático assistente Lampadinha
(Little Helper, ambos em 1952), dos empertigados Escoteiros-Mirins (Junior
Woodchucks, 1950), dos sardônicos Irmãos Metralha (Beagle
Boys, 1951), da sinistra e charmosa bruxa italiana Maga Patalójika
(Magica de Spell, 1961), do ardiloso e obstinado bilionário sul-africano
Pão-Duro Mac Mônei (Flintheart Glomgold) e de vários
coadjuvantes. Mas a maior de suas criações, em termos artístico
e comercial, foi o Tio Patinhas (Uncle Scrooge McDuck, 1947).
Inicialmente um coadjuvante nas histórias
de Donald, o velho sovina foi ganhando cada vez mais espaço e projeção
até ter sua revista própria em 1952. Esse crescimento de
popularidade foi proporcionalmente acompanhado de um ganho de profundidade
na personalidade do personagem, que teve sua história definida,
da primeira moedinha (que guardaria como talismã para o resto da
vida, sendo alvo de cobiça da feiticeira Patalójika) aos
incontáveis bilhões que o levariam a possuir uma caixa-forte
para guardar seu dinheiro. Desprezo pelo sistema bancário? Nada
disso, apenas um meio de garantir a perpetuação de seu hobby
preferido: mergulhar nas moedas e chafurdar entre elas como uma toupeira
(hábito mostrado pela primeira vez na história Only a Poor
Old Man, no Brasil intitulada "Nadando em Dinheiro", que também
traz a primeira aparição dos irmãos Metralha). Um
detalhe curioso: a Caixa-Forte abrigava, segundo seu proprietário,
"três acres cúbicos" de dinheiro - medida que não existe.
Porém, o matemático texano Flash Kellam se deu ao trabalho
de imaginar e calcular como essa unidade seria se realmente existisse:
a Caixa teria as dimensões de três campos de futebol "em pé",
o que mudaria seu desenho original.
Contudo, brincar em dinheiro não
era o único traço saliente na personalidade do pato que saíra
da Escócia para a América em busca de fortuna. Patinhas era
inacreditavelmente avarento e agressivamente ganancioso, mas nunca cedera
a princípios baixos para obter suas conquistas (embora a tentação
batesse à sua porta repetidas vezes, levando-o a vacilar mas nunca
ceder). Também se dispunha a arriscar a vida para salvar um cão
que o salvara anteriormente, mesmo que isso pudesse vir a custar toda a
sua fortuna (conforme mostrado na história "De Volta ao Alasca").
A afeição por sua família era grande e invejável,
o que não o impedia de arrastá-la para terríveis enrascadas
sob o miserável pagamento de trinta centavos a hora. Patinhas não
era a caricatura que se costuma definir, embora na mão de roteiristas
menos talentosos ele chegasse perto disso. Mas Carl sabia lidar com suas
crias como ninguém.
Aliás, o Tio Patinhas servia
de pretexto para muitas histórias que criticavam o supercapitalismo
- isso em plenos anos 50! O melhor exemplo está na história
"O Grande Operador": a trama começa com os três sobrinhos
de Donald observando com inveja e humildade a grandiosidade das operações
comandadas por seu tio-avô. Esse, por sua vez, se vê despojado
de suas riquezas ao ficar isolado em um vulcão extinto habitado
por mini-patos que desconheciam o papel moeda. Entre eles, Patinhas é
apenas um homem de grande estatura - e só. Suas posses nada significam,
e na hora em que o perigo surge, não é seu dinheiro que o
salva, e sim sua mudança de conduta. Nas suas palavras, somente
com uma atitude que veio a lhe causar prejuízo pode provar-se digno
do adjetivo "grande", e não é sem amargura e vergonha que
ele admite isso. O consumismo também ganhava críticas mordazes
em várias histórias, principalmente nos belos especiais de
Natal que Barks produziu.
A futilidade de Margarida também
era utilizada por Barks para ironizar os radicalismos machismo/feminismo,
além de render clássicas tiradas sobre relacionamentos. A
mais antológica delas está na história "O Fazedor
de Chuva" (The Rainmaker, link no fim da página). Quando Donald
liga para Margarida convidando-a para um passeio e ela recusa por já
estar comprometida em sair com o primo do próprio namorado (honesta
a pata, não?), ele é abordado pelo "Monstro de Olhos Verdes",
que lhe atira um vaso de "essência de fúria" para que ele
tome uma atitude drástica. A cena toda é uma citação
ao acesso de fúria de Otelo na peça epônima de Shakespeare,
quando o mouro veneziano se diz atormentado por um "monstro de olhos verdes
chamado Ciúme". Espetacular!
O melhor no texto de Barks era seu
humor imprevisível. Apesar das intrincadas sagas envolvendo tramas
históricas e do cinismo irônico que era empregado contra o
materialismo rutilante dos americanos, nada era tão soberbo quanto
sua finesse e mordacidade para criar frases de efeito ou finais fascinantes.
Dentre as frases, é impossível listar todas ou mesmo algumas,
visto o volume de texto que seria necessário para contextualizá-las.
Mas vale citar uma, quando Donald, descrente quanto ao funcionamento de
uma forquilha mágica que já se provara eficiente, resmunga:
"se essa porcaria achou água, só pode ser o esgoto do inferno".
Já os finais, esses eram a especialidade de Carl. Podiam ser ridículos,
mas de uma lógica incontestável; óbvios, mas de uma
forma na qual jamais pensaríamos; ou mesmo (e muito comumente) inesperados,
os finais imaginados por Barks sempre subvertiam as expectativas
do leitor e tornavam cada uma de suas histórias uma experiência
única como um livro, mesmo que às vezes de poucas páginas.
Por essas e por muitas outras razões
(cada fã tem a sua específica, essas são apenas as
mais habitualmente citadas), Carl Barks habita a mente e o coração
de muitos leitores, que tiveram acesso a um mundo de cultura, surpresa
e diversão a partir de suas páginas. E seus muitos discípulos
- os americanos Don Rosa, Tony Strobl e William Van Horn, o holandês
Daan Jipes, o chileno Victor Arriagada Rios, os italianos Romano Scarpa,
Giorgio Cavazzano e Marco Rota, para ficar nos principais - trataram de
dar continuidade a sua obra com dignidade (Jipes chegou a ilustrar vários
roteiros do mestre produzidos nos anos 70). Cada um deles merece também
análises e muitas homenagens, para não falar nos brasileiros
Euclides Miyaura e Irineu Soares (esses, certamente merecedores de muitos
capítulos à parte). Mas o maior nome, o princípio
e até o fim de tudo (já que todos - leitores e artistas -
sempre recorrem a ele quando querem o supra-sumo dos patos) será
sempre o velho Carl Barks. Descanse em paz, "tio" Carl! Seus muitos sobrinhos
espalhados pelo mundo agradecem e zelam por sua obra inesquecível.
Leonardo Vinhas
acredita no Céu. Caso consiga chegar lá. Ele espera poder
encontrar com Carl Barks.
VOCÊ SABIA QUE...
§ ... apesar de privilegiar as
aparições de Pão-Duro Mac Mônei, Carl Barks
criou também o rival Patacôncio (John D. Rockerduck) para
uma aparição na história "Gasolina Superzum", de 1952?
Patacôncio seria melhor aproveitado pelos italianos Cavazzano e Rota.
§ .. foi Barks quem definiu o
endereço (Rua das Flores, nº 13) e placa de carro do Pato Donald
(313)?
§ ... a "pose clássica"
do Donald correndo atrás dos seus sobrinhos com expressão
demoníaca e vara de marmelo em punho foi criada e celebrizada pelo
mesmo velhinho?
§ ... que a Margarida é
uma versão mais simpática (graficamente falando) da fogosa
Donna, a primeira namorada do Donald? Adivinhe quem operou a transformação...
Quadrinhos
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