"Querido Scott, Querida Zelda
As cartas de amor de Scott e Zelda Fitzgerald"

por Jonas Lopes
Yer Blues
30/08/2005


Livros com a correspondência de escritores são um empreendimento duvidoso. Valor artístico e literário, a rigor, não há. Mesmo assim eles têm se firmado cada vez mais no mercado. Inclusive no Brasil, onde a correspondência de autores como Clarice Lispector, Fernando Sabino, Mário de Andrade, Caio Fernando Abreu e outros já foi devassada. Lá fora então, nem se fala. O samba do crioulo doido já engloba de Proust a Nabokov, de Flaubert a Virginia Woolf.

Como explicar o sucesso? O fator fetichista é inegável. Quem não quer vasculhar as intimidades - sejam pessoais, sejam profissionais - de seus autores favoritos? E aqui entra o verdadeiro valor dos livros de cartas: servir como obra periférica, como fonte de informação para o leitor entender um pouco mais o que cercou a criação dos livros de ficção daquele autor, estes sim essenciais.

Com todo o mito que os cercam, é lógico que F. Scott e Zelda Fitzgerald também seriam enquadrados nessa onda. A Companhia das Letras, que fez um belo trabalho ao lançar no final do ano passado a coletânea 24 Contos de F. Scott Fitzgerald, aproveita e lança agora Querido Scott, Querida: As cartas de amor de Scott e Zelda Fitzgerald (487 páginas, organização de Jackson R. Bryer e Cathy W. Banks, tradução de Beth Vieira).

As cartas lançam nova luz ao relacionamento do casal mais famoso da literatura (não tem nem para Sartre e Simone, que, bingo, também já tiveram suas cartas de amor lançadas) e desfazem algumas lendas e tabus que surgiram de uns anos para cá. Como a de que Scott reprimia os talentos artísticos de Zelda. Ou que ele teria levado a esposa à loucura. Ou até de que Zelda teria induzido o marido ao alcoolismo. Por via das dúvidas, recorramos a uma constatação do próprio Scott Fitzgerald: "Nós nos arruinamos sozinhos - jamais cheguei a pensar seriamente que tenhamos nos arruinado um ao outro".

O livro é mais "querido Scott" do que "querida Zelda". Isso porque o escritor era organizado e guardava meticulosamente as cartas que recebia da esposa, enquanto Zelda, que passou por vários sanatórios e hospitais, perdeu boa parte da correspondência recebida. Isso explica o desequilíbrio grande entre as cartas do livro, o que pode decepcionar alguns fãs dele.

Na primeira parte, "Namoro e casamento: 1918-20", por exemplo, não há cartas de Scott, apenas uma dúzia de telegramas que ele enviou a ela e que sobreviveram. O resto é de Zelda. Ali está o período de namoro - eles se conheceram em um baile em Montgomery, cidade de Zelda no Alabama -, a paixão inicial do casal, até que Este Lado do Paraíso, primeiro romance de Scott, foi aceito por uma editora e eles puderam se casar. Zelda até faz uma alusão à loucura ("continuo ligeiramente sã"), sem saber que dez anos depois sofreria seu primeiro colapso nervoso. Em outro momento ela desconfia que está grávida (alarme falso), e Scott pede para Zelda tomar remédios para abortar, o que ela se recusa a fazer.

Este Lado do Paraíso foi um sucesso enorme de vendas. A primeira tiragem, de 3 mil exemplares, acabou em três dias (pense nisso em 1920). No final de 1921 já haviam sido vendidos 49 mil exemplares do livro. Scott e Zelda tornaram-se celebridades. Ainda em 1921 tiveram sua única filha, Scottie. Poucos anos depois foram para a França, onde se uniram a vários outros expatriados americanos (T.S. Eliot, Gertrude Stein, Ezra Pound, Ernest Hemingway). Assim começou a Era do Jazz, suas festas que duravam dias, seus excessos, sua completa falta de limites. Em 22 Fitzgerald lançou seu segundo romance, Os Belos e os Malditos, e em 25 a obra-prima O Grande Gatsby.

Como Scott e Zelda passaram toda a década de 20 juntos, é evidente que não se corresponderam com freqüência. Por isso a segunda parte de Querido Scott, Querida Zelda, "Os anos de convívio: 1920-29", traz apenas três cartas. Mas essas poucas cartas estão entre as mais longas de todo o livro, e recapitulam bem o que foi a Era do Jazz. Uma delas, de Zelda, é escrita em ritmo frenético, uma enumeração de causos de quase dez páginas, com muito do que você deveria saber sobre os Roaring Twenties e sobre o relacionamento do casal.

"O declínio: 1930-38" é a parte mais longa de Querido Scott, Querida Zelda. Zelda começa sua peregrinação por hospitais e sanatórios, enquanto Scott tenta ganhar dinheiro para sustentar as hospitalizações e os gastos familiares. Enquanto escreve contos para revistas, se esforça para terminar seu novo romance (que viria a ser Suave é a Noite). Só que o escritor vivia uma crise criativa tremenda - nove anos separam O Grande Gatsby de Suave é a Noite.

Para piorar, Zelda, em poucos meses, conseguiu justamente o que marido sofria há anos para fazer: escrever um romance. Esta Valsa É Minha, lançado em 1932 (no Brasil saiu pela Companhia das Letras nos anos oitenta), por ser autobiográfico, possui várias situações parecidas com as de Suave é a Noite. Irritado e receoso de ser acusado de plagiário, Scott ajudou a esposa a revisar o romance, para atenuar as semelhanças.

Nessa época ele descobre outra fonte de renda (até porque nenhum de seus romances, fora Este Lado do Paraíso, vendeu bem): o cinema. Scott, como William Faulkner, Raymond Chandler e alguns outros escritores, foi atraído para Hollywood, onde os salários eram muito melhores que os suados caraminguás recebidos por seus contos. Só que Fitzgerald não deu lá muita sorte na tela grande. Só foi creditado em um dos muitos roteiros em que trabalhou (Três Camaradas, de 1938). Um desses filmes que não ganharam seu nome nos créditos foi, acredite, ...E o Vento Levou.

O mais triste de "O declínio: 1930-38" são os planos feitos pelo casal e nunca realizados. Viagens, reuniões de família, projetos de livros e exposições de pinturas, melhoras na situação financeira. Não foram raros os esperados momentos de reencontro que resultaram em brigas e vexames. Por outro lado, é encantador ler as trocas de análises feitas pelo casal - tanto comportamentais quanto de assuntos em voga (como a guerra), passando por literatura e música.

A quarta e última parte do livro, "Os últimos anos: 1939-40", é ainda mais melancólica - e a única com equilíbrio entre as cartas dos dois, já que ele ditava tudo para uma secretária, que fazia cópias em carbono. Depois de uma viagem para Cuba, Scott ficou completamente bêbado e Zelda, de licença rápida do sanatório, teve que levá-lo a um hospital em Nova York e ir embora sozinha. Depois desse episódio, Scott finalmente deu um tempo na bebida e começou um novo romance, O Último Magnata, que não chegaria a completar. Sua saúde já estava muito debilitada. Tinha desde tuberculose até artrite. Às vezes tinha arroubos de revolta por ter de sustentar sozinho a esposa doente e a filha universitária:

"Quanto eu não daria para ter direito a um pouco de lazer - alguma vez me viu tendo algum? Para estar bem, para ser sustentado, para ter meus lápis e meu papel comprados para mim, sem pensar em impostos nem seguros, sem me preocupar com a saúde de outras pessoas e em criar uma filha. Eu adoraria acordar de manhã, uma vez na vida e dizer: nenhuma preocupação hoje, nenhuma dúvida, nenhum empréstimo para pedir, nenhuma prostituição mental, nada entre mim e a tela a não ser a minha mão (...) Não estou com pena de você, desta vez - estou com inveja. Estou infinitamente mais pesaroso com meu talento moribundo, aquele que você diz que receberá uma ajuda "ao libertá-la". Isso seria o equivalente à imensa paz de espírito que eu encontraria se Scottie me implorasse para contribuir com a renda familiar indo trabalhar numa siderúrgica ou num bordel".

Em dezembro de 1940, Scott faleceu após sofrer uma parada cardíaca enquanto ouvia uma partida de futebol americano no rádio. Tinha apenas 44 anos e seu último ano de vida, ao que tudo indica, foi relativamente feliz (estava morando com Sheilah Graham, uma colunista de fofocas, apesar de ainda manter contato constante com a esposa) e sem excessos. Zelda morreu oito anos depois, quando um incêndio destruiu o prédio do hospital em que ela estava internada. Foi enterrada ao lado do marido.

Há uma única restrição a se fazer sobre Querido Scott, Querida Zelda. Um clichê, na verdade, mas que precisa ser dito: se o leitor não conhecer a obra de F. Scott Fitzgerald, esse livro de cartas será não só inútil, mas profundamente tedioso. Até pelo elemento fetichista, é uma obra para iniciados e interessados por Zelda e Scott ou pelo período em que viveram. Os aficionados vão se esbaldar.

Leia também:

24 Contos de F. Scott Fitzgerald, por Jonas Lopes

Links
Editora Cia das Letras