O Corpo & Outras Histórias
- Hanif Kureishi
por
Marcelo Costa
maccosta@hotmail.com
12/10/2004
Hanif Kureishi retorna as livrarias brasileiras com O Corpo & Outras Histórias (Companhia das Letras), um quase romance que traz, como quase apêndice, sete contos. O Corpo é quase um romance porque seu autor expõe a história, desenvolve, mas não a finaliza. O que acontece após a página 153 ficará a cargo do leitor, e se prepare para pensar muito sobre esta fábula dos novos tempos.
Adam é um famoso escritor sexagenário que passa seus dias sentindo o peso da idade sobre o corpo. Para caminhar, sentar, ouvir ou debruçar o corpo e conceder um autógrafo é uma dificuldade. Isso não quer dizer, no entanto, que sua família seja um problema. Adam ama sua mulher e filhos, e tudo segue o curso até que alguém lhe propõe algo irrecusável: transplantar seu cérebro experiente para um corpo novinho em folha. Adam pensa muito e decide tirar "férias" da família e parte para o transplante, após discutir o assunto horas e horas e horas com o 'reimplantado' que lhe ofereceu a tal cirurgia. O que o move é o desconhecido.
"A existência dos reimplantados vai causar uma bela confusão, não vai? Como é que a gente vai saber quem é novo e quem é velho?", questiona Adam para o médico responsável pela operação. "Essa é uma questão que ainda não foi discutida, mas do mesmo jeito que se discutiram o aborto, a engenharia genética, a clonagem, o transplante de órgãos ou qualquer outro avanço da medicina, também se vai discutir esse novo avanço", responde o médico. Insatisfeito, Adam prossegue. "Mas essa, com certeza, é uma questão de outra ordem. Pais com a mesma idade dos filhos, por exemplo, ou até mais jovens. Que implicações isso vai ter?", pergunta o escritor novamente. "A resposta cabe aos filósofos, sacerdotes, poetas e aos programas de televisão. Meu trabalho é só prolongar a vida", encerra o médico.
É claro que Adam, ali, sentado em frente ao médico, não irá desistir. A ilusão de se ter 20 e poucos anos novamente o seduz. Mais do que qualquer coisa, a oportunidade de poder viver mais 40, 50, 60 anos não deixa de ser tentadora. O próximo passo para o escritor é escolher um corpo. Ele opta pelo de um belo rapaz de 25 anos, que mais parece um jogador de futebol italiano. "O rosto lembra o do Alain Delon jovem", observa o escritor. A partir do transplante, tudo muda na vida de Adam. Nosso herói cai na gandaia por toda a Europa, até chegar - exausto e sem dinheiro - a uma comunidade alternativa numa ilha grega. Os novos atributos físicos, porém, terminam por colocá-lo no centro de uma trama policial que envolve seu novo corpo. Coisas do novo mundo.
O passeio de nosso amigo transplantado, porém, retorna ao seu bairro, e, após muitas fugas, descobre que muita coisa mudou em seus últimos meses. E que muitas coisas ainda irão mudar em sua vida. Kureishi navega pelo mundo futurista criado a partir do transplante com sarcasmo e inteligência, embora só desenvolva o personagem central. Ao não fechar o romance, Hanif permitiu ao leitor tentar levar adiante sua pequena fábula dos novos tempos, porém, poderia ter gastado um pouco mais de tempo para surpreender o público com suas idéias inteligentes a respeito do homem e sua posição no novo século. A falta de acabamento torna o livro um quase acerto, uma obra que não alcança a força de Intimidade, seu denso, belo e pesado livro anterior.
Após o O Corpo, Hanif apresenta sete contos curtos cuja atmosfera, em sua maioria, flagra a difícil relação entre pais e filhos. Em Bafafá na Árvore, um pai leva o filho para passear no parque. Uma bola presa em uma árvore é o caos e a diversão para este pequeno mundo de país e filhos. Cara a Cara conta a história de um casal que se vê duplicado no casal que acaba de se mudar para o andar de cima de seu prédio. Auto-análise e autocritica. Tchau, Mãe é um dos destaques do sete contos. Um filho leva a mãe para visitar o túmulo do pai. Na viagem, o rapaz repassa tudo que sente pela mãe, pela esposa e pela filha. A crise, a quase loucura e o tempo são analisados com sublime beleza pelo autor. Careta disserta sobre um junkie que quer agradecer ao motorista de táxi que o salvou de morrer afogado na lama enquanto O Pai de Verdade mostra o complicado relacionamento entre um filho de nove anos e seu pai. O Toque é sobre uma família indiana enquanto Lembre-se de Nós surge como o melhor dos sete contos, em que a narrativa enlevada em lirismo conta a história de um casal que, bêbados, decide gravar em vídeo uma mensagem de feliz aniversário de 45 anos para o filho que, no momento, tem apenas dois.
Aos 50 anos, Hanif Kureishi atua em diversas áreas. Estudou filosofia, escreveu peças de teatro, contos, romances e é roteirista de filmes como Minha Adorável Lavanderia e Sammy e Rosie, ambos de Stephen Frears. O Corpo & Outras Histórias é o quinto livro de Kureishi lançado no Brasil (ele já lançou um novo, Meu Ano em Seu Coração, no exterior) e é muito mais cerebral que o passional, doído e denso Intimidade. A supervalorização da juventude, como alguns críticos têm apontado como tema central de O Corpo, porém é apenas uma das facetas do livro. "Se a própria idéia da morte está morrendo, então todos os significados, os valores da civilização ocidental desde os gregos mudaram. Parece que substituímos a ética pela estética", diz Adam, em certo momento, um pouco depois de descobrir que, apesar da perfeição do corpo, são as "nossas fraquezas que os outros querem conhecer". Mais do que qualquer teor filosófico, O Corpo é um ótimo romance para o século 21. Versa sobre envelhecer, mata saudade do sexo juvenil, mas não encontra justificativa para a efemeridade da vida. Existe?
Trecho
1
Ele disse: "Escute, você diz que não ouve bem e sente dor nas costas. Seu corpo não vai parar de lembrar você dessa sua existência adoentada. Quer fazer alguma coisa a respeito?".
"Desta minha velha carcaça, já quase morta?", perguntei. "Claro. Mas o quê?"
"Que tal trocar de corpo, ganhar um novo?"
Era um convite que eu não podia recusar - nem aceitar, aliás. Decerto não havia nada de simples ou óbvio nele. O fato é que, depois de ter ouvido a proposta do sujeito, e ainda que desejasse descartá-la como absurda, não consegui parar de pensar nela. Passei uma noite agitada, com uma idéia na cabeça que era - e vinha sendo fazia algum tempo, agora eu era obrigado a reconhecer - inevitável.
Essa "aventura" começou numa festa à qual eu não queria ir.
Embora se possa dizer que o final da década de 50 e o começo da de 60 tenham assistido ao meu auge, não gosto de ser importunado por música alta, e acabei desenvolvendo um gosto pelo silêncio, em suas muitas variações. Também não sou louco por comida grelhada e semicrua.
Minha saúde? Não me sinto lá muito doente, mas estou na metade dos sessenta; minha cama é meu barco na travessia destes anos derradeiros. Os joelhos e as costas me doem um bocado. Tenho hemorróidas, uma úlcera e catarata. Quando estou comendo, não raro cuspo pedaços de dente durante a mastigação. Meus ouvidos parecem perder o foco ao longo do dia, e as pessoas precisam gritar quando falam comigo. Não vou a festas porque não gosto de ficar em pé. Se me sento, fica difícil as pessoas falarem comigo. Não que sempre me interesse o que elas têm a dizer; e, se me entedio, não tenho vontade de ficar sentado num mesmo lugar por muito tempo, o que pode causar a impressão de que sou rude ou arrogante.
Tenho amigos em pior estado. Com alguma sorte, a gente sempre tem. De beber, gosto, sim, mas isso eu posso fazer em casa. Felizmente, sou um bêbado barato. Uns poucos copos, e sou capaz de entender Lacan.
Minha mulher, Margot, trabalha há cinco anos como conselheira psicológica e está se preparando para se tornar terapeuta. Ganha a vida ouvindo as pessoas num cômodo da casa. Temos tido sorte; sempre invejamos a profissão um do outro. Ela quer o que está dentro; eu preciso ouvir o que há fora.
Nossos filhos já se foram: a menina está estudando medicina e o garoto trabalha em montagem de filmes. Acho que minha vida está tendo um final feliz. Quando minha mulher, Margot, entra na sala, quero contar a ela o que ando pensando e sei que ela vai prestar atenção em uma parte do que tenho a dizer. Margot, porém, gosta de afirmar que os homens começam a ficar muito mal-humorados, pomposos e exigentes no final da meia-idade. Segundo ela, deixamos de dar importância à polidez; esquecemos que os outros são mais importantes do que nós. Depois disso, a coisa piora.
Eu concordo que não seja um sujeito que tenha alcançado algum patamar budista na vida. É possível que tenha algumas virtudes, como a compaixão e, por vezes, certa delicadeza; ao contrário de vários amigos meus, nunca perdi o interesse pelos outros, pela cultura e pela política - pelo intercâmbio mais geral entre os homens. Sempre quis ser um bom pai, na medida do possível. A despeito do ódio ocasional e necessário das crianças por mim, eu as curti e gostava de sua companhia. Até agora, posso dizer que, no todo, tenho sido um marido suportável. Margot afirma que sempre escrevi em busca de fama, de dinheiro e do afeto das mulheres. Eu acrescentaria ainda que adoro o que faço e que escrever continua sendo fascinante para mim. Por intermédio do meu trabalho, reflito sobre o mundo, sobre o que importa para mim e para os outros.
Além de minhas muitas contradições - segundo me disseram, há pelo menos três pessoas diferentes em mim -, sou instável também, perdido em mim mesmo, invejoso, e com freqüência careço de autoconfiança. Minha mulher diz que tenho umas doidices, humores desconcertantes e "sumiços interiores" dos quais nem me dou conta. Posso ir tomar banho de um jeito e sair do chuveiro uma outra pessoa, pior do que a que entrou. Minhas pupilas se dilatam, ando obstinadamente de um lado para outro, grito e bato os pés. Umas poucas palavras de censura, e posso passar três dias amuado, convencido de que ela está tramando alguma coisa contra mim. Nada disso diminuiu, a despeito dos anos de auto-análise, psicanálise e da "terapia da escrita", que era como alguns de meus alunos costumavam chamar a tentativa de produzir arte. Nada me curou de mim mesmo, daquele eu ao qual me aferro. Se me perguntassem, provavelmente diria que meu problema sou eu mesmo; minha vida é meu dilema. Melhor curti-lo, então.
Nem teria pensado em ir àquela festa, se Margot não tivesse ido jantar com um grupo de amigas e eu não tivesse sentido inveja do que via como a intimidade e a premência da conversa entre elas, o prazer que tinham na companhia umas das outras. Os homens nunca são tão diretos, me parece.
Mas, se fico em casa sozinho, em uma hora começo a andar de um lado para outro, a pegar coisas aqui e depositá-las ali, para depois ter de procurá-las por toda parte. Já não acredito que a sabedoria dos livros seja capaz de me satisfazer ou mesmo entreter, e se vejo televisão por tempo demais, começo a me sentir oco. Como já me sinto fora do mundo! Não conheço mais as estrelas do pop, os atores ou os seriados de TV. Nunca sei ao certo a quem pertencem os corpos pornográficos das meninas e dos meninos. É como tentar participar de uma conversa da qual só entendo uma pequena parcela. E quanto aos políticos, mal consigo distinguir de que lado estão. Idade, educação e experiência não parecem me oferecer vantagem alguma. Imagino que, para participar do mundo com curiosidade e prazer, para entender o que se passa, a gente precisa ser jovem e desinformado. Mas, quero participar?
Naquela noite em particular, com hesitação quase senil e sem nada melhor para fazer, tomei um banho, vesti uma camisa branca, abri a porta da frente e saí para a rua. O verão estava no auge e o calor lá fora era grande. Embora more em Londres desde meus tempos de estudante, quando abro a porta de casa hoje em dia ainda me sinto estimulado pela perspectiva do que vou ver ou ouvir, de quem vou encontrar por acaso, alguém que decerto irá, então, ocupar meus pensamentos. Londres já não parece fazer parte da Grã-Bretanha - na minha opinião, um lugar lúgubre e estreito, repleto de campos, lojas fechadas e lacradas e cidades que tentam imitar Londres -, mas se transformou numa cidade-Estado semi-independente, como Nova York, que começa a chegar a um acordo acerca da importância do prazer. Por outro lado, estivera discutindo com Margot a impossibilidade de chegar ao final da rua sem que alguém venha pedir dinheiro. Em geral, já o meu aspecto destrambelhado fazia com que os pedintes perdessem as esperanças no momento mesmo em que estendiam a mão.
A festa era de um pessoal de teatro, dada por uma amiga diretora que também leciona. Muitos dos alunos dela da escola de teatro estariam lá, bem como a multidão habitual, amigos e conhecidos meus, aqueles ainda dotados de vida ativa, e não os internados em algum hospital ou em férias de verão.
Como meu médico havia me instruído a fazer exercícios, e eu ainda acreditasse possuir a energia de um jovem, decidi caminhar do oeste de Londres até a festa. Cerca de quarenta e cinco minutos depois, estava sem fôlego e sem forças. Não havia nenhum táxi à vista, e me senti abandonado em meio às ruas poeirentas e em geral desertas. Quis me sentar à sombra de um parque, mas duvidei de que seria capaz de me levantar de novo, e não havia ninguém para ajudar. Muitos dos pubs nos quais teria parado para uma cervejinha escura e uma olhada no jornal vespertino, cheios dos semipárias da região, em fuga das respectivas famílias - seriam chamados de alcoólatras, já que hoje todo mundo recebe um rótulo patológico -, transformaram-se em bares, abarrotados de jovens hiperativos. Eu nem teria tentado passar pelos porteiros gigantescos. Às vezes, Londres era como uma cidade ocupada por câmeras e seguranças; não se podia atravessar uma porta sem ter o corpo todo revistado ou sapatos e bolsos examinados, tudo para o nosso próprio bem, embora a cidade não pareça ter se tornado mais segura ou mais perigosa do que antes. Não havia a menor possibilidade de um sujeito mergulhar num daqueles terríveis papos de boteco, com miseráveis desconhecidos a conectá-lo com a impressionante singularidade da vida alheia. Os mais velhos parecem ter sido varridos das ruas; os mais jovens aparentam ter fios saindo da cabeça, fornecendo-lhes música, vozes ao telefone ou a energia elétrica que os move.
E, no entanto, sempre caminhei por Londres à tarde ou à noitinha. Percorro distâncias relativamente longas, olhando vitrines, teatros obscuros e museus estranhos; do contrário, sinto o corpo todo travado depois de uma manhã de trabalho à mesa.
A festa não era no apartamento de minha amiga, mas na casa de seu irmão rico, que acabou se revelando uma daquelas casas amplas de cinco pavimentos, revestidas com estuque, perto do zoológico.
Quando enfim alcancei a porta, um punhado de garotos na faixa dos vinte estava chegando também.
"É você", um deles disse, olhando para mim. "Estamos estudando você. Está no currículo."
"Espero não estar causando nenhum grande inconveniente", respondi.
"A gente estava pensando se você poderia dar uma dica do que pretendeu dizer em..."
"Se pelo menos eu pudesse me lembrar...", lamentei. "Me desculpem."
"Ouvimos dizer que você é amargo e cínico", murmurou outro,
acrescentando: "E não se parece em nada com a foto na orelha
dos livros".
Minha amiga, dona da festa, veio até a porta, pegou-me pelo braço e me guiou pela casa. Talvez tenha pensado que eu pudesse sair correndo. A verdade é que festas assim ainda me deixam tão ansioso como quando eu tinha vinte e cinco anos. O pior é saber que esse terror, desmancha-prazeres como é, não tem sua origem apenas na mente, mas, de todo modo, continua inexplicável. À medida que se vai envelhecendo, a fonte de um comportamento autobloqueador tão intricado parece ficar quase fora de alcance, perdida no passado. Por que, afinal, pretender desvendá-la agora?
"Você não odeia esses garotões bonitos, com sua vaidade e suas frases que sempre começam com 'quando eu saí de Oxford' ou 'da Real Academia de Arte Dramática'?", perguntou ela, servindo-me uma bebida. "Mas eles são necessários a qualquer boa festa. São uma necessidade onde quer que alguém esteja a fim de uma trepada, não é mesmo?"
"Bom, não que queiram lá muita proximidade com você ou comigo...", comentei.
"Vai saber...", ela disse.
E me levou para o jardim, onde se reunira a maioria das pessoas. Era de um tamanho surpreendente, com áreas abertas ou arborizadas, não dava nem para ver onde terminava. Porções dele estavam iluminadas com lâmpadas penduradas nos galhos; outras áreas exibiam uma escuridão convidativa. Havia um pequeno grupo tocando jazz, comida à vontade, conversa animada, e todos vestiam trajes mínimos de verão.
Eu tinha ido buscar alguma comida, algo para beber, e procurava por um lugar para me sentar quando minha amiga tornou a se aproximar de mim.
"Adam, não tenha um chilique, meu querido..."
"O que foi?"
Sempre me aflige ouvir as palavras "tem alguém querendo conhecer você".
"Quem é?"
Suspirei para dentro e, sem dúvida, para fora também quando vi que era um rapaz da escola de teatro, um ator novato. Estava postado atrás da minha amiga.
"Você se importa de eu me sentar com você um pouquinho?", ele perguntou. Ia me pedir um emprego, eu tinha certeza. "Não se preocupe. Não estou procurando trabalho."
Eu ri. "Então, vamos achar um banco."
Não iria me comportar como um rabugento numa noite tão agradável. Por que não ouvir um ator? Passei minha vida inteira com gente que se transforma no escuro e vive de calcular o efeito que provoca nos outros.
Ao ver que estava tudo bem, minha amiga nos deixou.
Avisei: "Não posso ficar muito tempo em pé".
"Posso perguntar por quê?"
"Um problema nas costas. Ou seja, a idade."
Ele sorriu e apontou: "Tem um bom lugar ali".
Caminhamos pelo jardim em direção a um banco cercado de arbustos, de onde podíamos ver o restante da festa.
"Meu nome é Ralph", ele disse. Depus minha comida e trocamos um aperto de mãos. Era um belo rapaz, alto, bonito e confiante, sem aparentar imodéstia. "Eu sei quem você é. Antes de conversarmos, vou buscar mais champanhe para nós."
Talvez fosse influência de Ralph, talvez o aspecto luminoso, quase sobrenatural que parecia caracterizar aquela noite, mas não pude deixar de notar como pareciam todos muito bem arrumados naquela festa, em especial a garotada, com seus piercings e tatuagens, tão enfeitados quanto vitrine de joalheria, os cabelos tingidos com cores contrastantes. Academia à parte, os garotões deviam manter a forma abrindo e fechando tampas de rosca de numerosos frascos, potes e tubos. Vestiam-se de modo a exibir os corpos, e não as roupas.
Um dos prazeres de ser homem é observar as mulheres se vestindo e se despindo, pondo e tirando a maquiagem. No que se refere a seus corpos, elas acreditam estar usando a parte de dentro para o lado de fora. Contudo, o custo de manutenção, o esquadrinhar de lojas, a preocupação antecipada, as possibilidades de julgamento, crítica e inexatidão estilística - em contraste com os homens, que jogam uma água na cara, vestem qualquer coisa que esteja à mão na beirada da cama e saem para a rua - nunca me pareceram invejáveis.
Quando Ralph voltou, e eu ainda me ocupava de comer e observar, começou a louvar minha obra com entusiasmo e, mais importante do que isso, com profundo conhecimento até de seus aspectos mais desconhecidos. Tinha visto os filmes que escrevi e muitas montagens de minhas numerosas peças de teatro. Havia lido meus ensaios, resenhas e o recém-publicado livro de memórias, Tarde demais. (Que terríveis haviam sido as adições e subtrações finais, algo como escrever um testamento interminável, sem poder fazer muito mais do que revirar e torturar a coisa toda, na esperança de lhe dar um aspecto mais favorável.) Ou seja, conhecia bem o meu trabalho, que parecia significar muito para ele. O louvor pode às vezes assumir a forma de uma provação; suportei-a.
Estava prestes a me dar o trabalho de me levantar para ir buscar mais comida, quando Ralph mencionou um ator que havia feito um papel menor numa de minhas peças do começo da década de 70 e que, logo depois, morrera de leucemia.
"Um ator extraordinário", disse ele, "de uma melancolia com a qual todos nós nos identificamos."
"Era um bom amigo", comentei. "Mas você não tem como se lembrar da atuação dele."
"Me lembro, sim."
"Quantos anos você tinha? Quatro?"
"Eu estava lá, nas primeiras filas. Sempre conseguia os melhores lugares."
Examinei o rosto dele o melhor que pude à luz disponível. Não havia dúvida de que tinha, no máximo, uns vinte e poucos anos.
"Deve estar enganado", eu disse. "Você ouviu falar, não foi? Tenho conversado muito com um amigo meu, que considero o melhor diretor de teatro britânico do pós-guerra. Pois onde foi parar o trabalho dele? Não existe registro possível do que era assistir a uma de suas montagens. Ainda que tivessem filmado, isso não daria uma idéia da atmosfera, da dimensão do trabalho, da sensação de quem viu. E olhe que muitos diretores", acrescentei, "admitiriam que isso é uma bênção."
Ralph me interrompeu: "Eu estava lá, e não era uma criança. Adam, você ainda tem um tempinho?".
Olhei em volta, identificando muitos rostos conhecidos, alguns tão enrugados quanto um pênis velho. Tinha trabalhado e brigado com algumas daquelas pessoas por mais de trinta anos. Hoje em dia, quando nos encontrávamos, era menos uma troca estimulante entre seres humanos do que uma litania da decadência; ninguém montaria nosso trabalho, e, se montavam, ele não era elogiado a contento. Tamanha amargura, maior do que a que merecíamos, dava nos nervos. Ou então conversávamos sobre netos, hospitais, enterros e missas de sétimo dia, lamentando a falta que fazia fulano ou sicrano, imaginando o tempo todo quem seria o próximo e quando chegaria nossa vez.
"Tudo bem", respondi. "Para que pressa? Faz pouco tempo, eu estava pensando que, a partir de uma certa idade, a gente sempre parece estar prestes a ir dormir. Mas é um alívio já não ter sucesso. Posso me deitar com o cobertor elétrico ligado, ouvindo ópera e com dificuldade para ler. Que luxo é não conseguir ler direito; aliás, que luxo é não fazer nada direito."
Duas jovens mulheres haviam se posicionado fora do alcance de nossos ouvidos, mas perto o suficiente para nos observar, lançando olhadelas e sorrisinhos ocasionais em nossa direção. Eu sabia que o rosto a partir do qual meus olhos as viam não exercia nenhum fascínio sobre elas.
Ralph inclinou-se para o meu lado. "Está na hora de eu me explicar. Digamos... Era uma vez um jovem rapaz - e não foi o primeiro - que se sentia como Hamlet. Tão confuso, furioso e com a mente tão caótica quanto a dele; e arruinado pelos pais na mesma medida. Ainda assim, agüentou firme e teve sucesso na vida, o que significa que ganhou dinheiro fazendo alguma coisa necessária, mas idiota. Fabricava papel higiênico, digamos, ou algum novo tipo de sopa em lata. Casou e criou os filhos.
"Quando chegou na meia-idade, como acontece algumas vezes, se sentiu enfim capaz de se apaixonar. No caso desse rapaz, apaixonou-se pelo teatro. Comprou um apartamento no West End, para poder ir ao teatro a pé toda noite. E foi o que fez durante anos, mas, embora adorasse os frisos dourados, as poltronas de pelúcia, os sorvetes e as discussões em restaurantes caros depois do espetáculo, aquilo não o satisfazia. Tinha começado a perceber que queria ser ator, eletrizar-se toda noite diante de uma multidão. O que mais poderia realizá-lo tão completamente?
"Mas era velho demais. Não podia ir a uma escola de teatro sem se sentir ridículo. Estava destinado a ser uma daquelas pessoas que descobrem muito tarde o que querem fazer. A vocação, afinal, é a espinha dorsal de uma vida."
"Ao mesmo tempo", prosseguiu Ralph, "estava acontecendo uma coisa terrível. Sua mulher, a quem amava, sofria de uma doença degenerativa que destruía seu corpo sem lhe afetar a mente. Era, nas palavras dela, uma motorista saudável num carro que não respondia, que estava se deteriorando e que ia se espatifar e matá-la. Tudo que ela precisava, dizia, era de um corpo novo. Tentaram-se diversos tratamentos em vários países, mas, no fim, ela implorava pela morte. Na verdade, pediu ao marido que lhe tirasse a vida. Ele não chegou a fazer isso, mas estava pensando no assunto quando ela acabou por poupá-lo do trabalho."
"Eu sinto muito", disse a ele.
"Nos dias de hoje, morrer pode virar um pesadelo. As pessoas ficam por aí anos, mesmo depois de já não ter mais nada para conversar."
E ele continuou com sua história.
"Então, o sujeito, que passou dez anos cuidando da mulher, se aposentou e foi fazer uma viagem para se recuperar. Mas sentia que não tinha mais muito tempo de vida. Estava exausto, velho e impotente. Preparava-se para morrer também.
"Um dia, na América do Sul, onde conheceu gente abastada como ele, mas um tanto sinistra, ouviu uma história fantástica contada por um jovem médico em quem confiava e que também se interessava por teatro e cultura. Juntos - dá para imaginar? - fizeram uma montagem amadora de Fim de jogo. O doutor ficou tocado pelo desejo irrealizável do velho. Confiou nele, relatando-lhe uma coisa espantosa que estava acontecendo naquele momento. Alguns velhos ricos, homens e mulheres, estavam transplantando seus cérebros vivos para corpos de jovens mortos."
Nesse momento, Ralph fez uma pausa, como se precisasse avaliar minha reação antes de prosseguir.
Comentei: "Me parece lógico que a tecnologia e a ciência médica só precisem alcançar a imaginação e a vontade humanas. Não sei nada sobre ciência, mas não é sempre esse o caminho?".
Ele continuou: "Aquelas pessoas não iam, de fato, viver para sempre, mas se tornariam jovens outra vez. Podiam voltar a ter vinte anos, se quisessem. Podiam viver a vida que acreditassem ter perdido. Podiam ter aquilo com que todo mundo sonha: uma segunda chance".
"Não demora muito", murmurei, "e a gente percebe que só existe uma mercadoria de valor inestimável. Não é o ouro nem o amor, mas o tempo."
"Quem", disse Ralph, "já não se perguntou: por que não posso ser outra pessoa? Quem, de verdade, não gostaria de viver de novo, se tivesse a oportunidade?"
"Disso eu não estou convencido", eu disse. "Mas continue, por favor. Você conheceu gente que fez o tal transplante?"
"Conheci."
"E como eram?"
"Veja com seus próprios olhos." Eu me virei para ele. "Vamos lá", ele disse. "Dê uma boa olhada." E inclinou-se em direção à luz, para que eu pudesse vê-lo. "Pode me tocar, se quiser."
"Tudo bem", respondi, pudico, depois de tocar seu rosto, macio como o de qualquer garoto novo. "Continue."
"Eu acompanho a sua vida desde o começo, paralelamente à minha.
Já vi você em restaurantes e até pedi um autógrafo. O que você
escreve expressa o que eu penso. No meu teste na escola de teatro,
escolhi uma peça sua. Adam, eu sou mais velho do que você."
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