Entrevista com Craig O'Hara
por Renato Roschel
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19/07/2005


A estreante editora paulista Radical Livros lançou o que se pode chamar de obra obrigatória para aqueles que têm algum interesse na cena punk, seja ela paulista, londrina, norte-americana ou de qualquer outro lugar. O livro A Filosofia do Punk - Mais do que Barulho, escrito por Craig O'Hara, um punk dos EUA, foi lançado em 1992 naquele país, e chega ao Brasil com uma edição cuidadosa e bem trabalhada, pois traz índice remissivo, glossário, bibliografia e discografia, que não existem na edição original.

O S&Y entrevistou Craig O'Hara, autor do livro. E o que ele nos conta é que o movimento punk, nos dias de hoje, vai muito além de uma mera cena musical. Para O'Hara, a atual cena punk é um painel abrangente, cheio de grupos idiossincráticos, cada qual com sua forma de organização, suas crenças e convicções.

Você acredita que o movimento punk seja possível em uma sociedade capitalista?
Se isso não fosse possível nós não estaríamos aqui conversando. O movimento punk em um país capitalista como os EUA tem historicamente atuado de forma contrária a este sistema. Nós fazemos coisas que estão fora das práticas do mercado capitalista. Primeiramente, porque o punk é um movimento DIY (Dot it Yourself, "Faça Você Mesmo"), construído a partir de um pensamento crítico produzido por músicos, artistas, pessoas que se encaixam na ordem estabelecida, malucos e fãs que entendem a "cultura" capitalista como algo feito sempre a partir de um entediante e falso denominador comum. O capitalismo pode colocar um rosto alegre em um pedaço de merda e vendê-lo, porém a merda continuará sendo merda e continuará fedendo. Depois que a MTV tornou a música punk mais acessível, com bandas vendendo milhares de cds, o verdadeiro punk ficou cada vez mais underground. O capitalismo quer vender tudo, colocar um preço, um valor em tudo, até na vida humana. O punk é contra a mercantilização da vida e das criações humanas. Uma recente matéria de jornal informou que as famílias dos stockbrokers [corretores de ações] mortos no 11 de setembro (os "pequenos Eichmanns" da economia norte-americana) receberam milhões de dólares de indenização enquanto as famílias dos soldados norte-americanos mortos no Iraque recebem apenas US$ 12 mil.

Você poderia explicar o que é a filosofia do "Faça Você Mesmo" (DIY philosophy)"?
O "Faça Você Mesmo" existe por duas razões: em primeiro lugar porque ninguém vai fazê-lo por você. Quando o punk começou a se desenvolver nos EUA, e também em São Paulo/ABC, com bandas como Olho Seco, Cólera, Ratos de Porão etc, não havia literalmente nenhuma outra saída para quem queria fazer música punk, divulgar seus Lps, tocar em casas de espetáculo senão fosse feito por conta própria. Não havia como fazer o jornalismo cultural da época dar a devida atenção à cena punk. Por isso tudo teve de ser feito com fazines e shows organizados e custeados pelos próprios punks, na rua se fosse preciso. Em segundo lugar, a postura do "Faça Você Mesmo" dá força ao movimento, pois quando você tira a bunda da cadeira e começa a fazer as coisas por sua própria conta, você percebe que não há nenhuma "fórmula mágica" para fazer o que as gravadoras, as revistas, os estilistas e os músicos fazem. Basta criar coragem e fazê-lo. Obviamente, esta postura acabou nos empurrando para além do movimento punk. Há caras aqui nos EUA que fazem até a sua própria cerveja; que participam de campanhas como Food Not Bombs (Comida não Bombas); que contribuem, como leitores ou mesmo produtores, para uma mídia alternativa; que lutam por uma educação que esteja além desta que as instituições de ensino oferecem, aprendendo assim coisas sobre saúde da mulher, movimento dos sem-teto, problemas com as drogas, ou seja, todos os tipos de problemas que as instituições oficiais de ensino e a mídia ignoram ou não tratam com profundidade.

E o que são os "grass roots"e como eles ocorrem?
Nós somos os "grass roots" e nossa força está nos enfrentamentos que temos diariamente com os aparatos do Estado. Nós, os "grass roots", somos a maioria e estamos em todos os lugares. Lutamos contra a força desta mais pequena entre as pequenas minorias do mundo: a minoria rica que serve ao capitalismo e que tem em suas mãos o poder de destruir uma boa parte do planeta. Eles precisam de nós, mas nós não precisamos deles e, na verdade, nos viveríamos muito bem sem eles. Mudanças e movimentos ocorrem e estão ocorrendo todos os dias em todos os níveis e elas são nossa única saída. Elas não precisam de políticos profissionais para acontecer, elas precisam de pessoas dispostas a discutir os problemas em conjunto e trabalhar em conjunto para mudar a sociedade para melhor. Porém, as mudanças propostas pelos "grass roots" são sempre as mais difíceis porque os governos não querem que o povo seja seu próprio condutor, mas é só com os "grass roots" que a verdadeira mudança pode ocorrer. É como disse Joey Shithead da banda DOA: "debate menos ação igual a zero".

Os Sex Pistols diziam: "não há futuro". Na sua opinião, há um futuro?
Claro que há um futuro! Sempre haverá esperança e a necessidade não apenas para um "futuro", mas para um futuro melhor. Porém, o futuro (e o presente) que nos oferecem são determinados por regras, por militares, por policiais (homens ou mulheres) e por uma espécie de cultura da passividade. Contudo, isso não é o suficiente para fazer com que os otimistas desistam, encolham ou aceitem tudo passivamente, como se estivessem se auto-sedando. O futuro pode ser diferente. E isso que propõem eventos como o Fórum Social Mundial, em Porto Alegre (RS). Manifestações de desempregados, recusa a produtos geneticamente alterados, esforços para criar uma mídia alternativa e produzir entretenimento e estruturas sociais que estimulem a criatividade e a cooperação entre as pessoas.

Por que um movimento que, segundo seu livro, está ligado à luta pelos direitos das mulheres, dos gays e é contrário a qualquer tipo de racismo é tido por boa parte da mídia como racista, violento e homofóbico? O que causa esta confusão? O movimento punk é violento?
Eu não penso o punk como um movimento violento. Talvez o visual diferente, a música rápida e alta, a raiva e o sarcasmo das letras e a honestidade nua e crua do punk sejam coisas com as quais a mídia do ‘politicamente correto‘ tenha dificuldade em lidar. O punk nunca foi um lugar para pessoas bem comportadas e de moral puritana. Se você pega uma postura radicalmente contrária ao governo, aos racistas, aos policiais, às autoridades em geral, soma isso à ácida crítica que os punks fazem à maçante cultura pop e coloca ainda a volúpia da mídia em retratar o movimento como algo raivoso e assustador, pode ser que isso cause a errada impressão de que nós sejamos violentos. Para aqueles que, de certa forma, defendem a cultura de massa e o status quo que nos empurram goela abaixo, os punks, com a sua honestidade e a sua rejeição às autoridades, representam certamente uma ameaça.


"A Filosofia do Punk - Mais do que Barulho" - Craig O'Hara
por Renato Roschel
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19/07/2005

O punk surgiu pra valer para o mundo com o seguinte refrão: "Deus salve a rainha e seu regime fascista". Este foi o primeiro sucesso dos Sex Pistols, em 1977, quando o compacto Anarchy in the UK, disco de estréia do grupo, levou ao topo da parada a música God Save de Queen.

Não satisfeitos com o êxito da música, os Pistols decidiram prestar mais uma "homenagem" à rainha. No dia 25 de junho do mesmo ano, data em que a grande dama da Inglaterra participava de um desfile em comemoração aos seus 25 anos no poder, eles alugaram um barco e cantaram sua música para Elizabeth 2ª. Acabaram presos. Assim surgiu o pensamento lateral e a quebra de regras.

De um fato como esse surge a inexorável pergunta: o que realmente querem estes punks?

Se quer saber a resposta ou se você se interessa pela música e pelo movimento punk e quer entendê-los melhor, uma boa pedida é o livro A Filosofia do Punk - Mais do que Barulho, recém-lançado pela estreante editora Radical Livros (R$ 34, em média). Seu autor é Craig O'Hara, um punk norte-americano interessado em colocar um pouco de ordem na história de um movimento que veio para bagunçar o coreto.

Na visão de O’Hara, o movimento punk é, atualmente, bem mais do que as provocações à rainha feitas pelos Sex Pistols. Para ele, a postura punk, hoje, vai mais longe, atinge mais pessoas e é tão multifacetada e paradoxal que foge à idéia de que apenas os músicos e fãs desse estilo de música seriam seus representantes.

Atualmente, segundo ele, a postura punk está diluída na sociedade e nos movimentos civis, os quais ele chama de 'grass roots' - expressão que significa algo como 'raiz de capim'. A música punk, para O’Hara, é a trilha sonora de algo bem maior que um corte de cabelo moicano. Ela canta o ideário desses contumazes manifestantes antiglobalização, que enfrentam a polícia, quebram vidraças e empunham bandeiras.

O livro faz uma panorâmica sobre as idéias e os interesses, muita vez complexos e contraditórios, dessa turma. Para se ter uma noção disso, a certa altura do livro, O’Hara diz entender como correta a violência contra qualquer patrimônio capitalista. Para ele e para boa parte dos punks, segundo o livro, quebrar as vidraças do Banco Mundial é algo bacana, pois toda ação contra o patrimônio capitalista é lícita. Por outro lado, ele também defende teses pacifistas, mas um certo pacifismo que não foge à luta, um pacifismo pró-ativo que, se for preciso, enfrenta a polícia.

Exatamente por isso o livro de O’Hara é esclarecedor. Ele mostra o quanto são paradoxais a cena e as idéias daqueles punks que sempre fazem parte das recorrentes imagens de manifestações antiglobalização que aparecem nos noticiários. Seu livro permite entender o que pensam tanto os punks da "periferia" (Brasil) quanto os punks do "centro" (EUA) e saber onde e porquê eles são iguais ou diferentes.

Em São Paulo, o punk explodiu nos anos 80. Bandas como Cólera, Olho Seco, M-19, Fogo Cruzado, Ratos de Porão, Lixomania e Inocentes tocavam não somente no Sesc Pompéia, mas também nas periferias.

Isso fez com que o movimento no Brasil tivesse uma cara um tanto quanto esquizofrênica, pois influenciou a classe média, da qual saíram bandas que se pretendiam alternativas, mas que acabaram de braço dado com a indústria do entretenimento. Desse bloco surgiram bandas como: Aborto Elétrico, da qual saíram o Legião Urbana e o Capital Inicial, os Titãs, a Plebe Rude e o Ira!.

Do outro lado da moeda bandas como Cólera, Olho Seco, M-19, Fogo Cruzado, Ratos de Porão, Lixomania e Inocentes mantiveram-se mais próximos do punk, mesmo depois de conseguir algum sucesso como no caso dos Inocentes e Ratos de Porão. Estas bandas, por se apresentarem tanto para a classe média quanto para a periferia, acabaram gerando um fenômeno muito interessante.

A influência desse pessoal periferia, mais precisamente nos shows que eles faziam em bairros como Capão Redondo, na zona sul de São Paulo, acabou, de certa forma, reverberando na cabeça dos jovens pobres de São Paulo. Suas letras altamente críticas acabaram entrando no imaginário dos garotos que, tempos depois, seriam os rappers. Não é por acaso que o disco Pânico em SP, de 1986, dos Inocentes, teve a sua idéia mais intensificada no refrão da letra Pânico na Zona Sul, lançada em 1988, na coletânea de rap Consciência Black (primeiro disco do selo Zimbabwe), pelos Racionais. Nessa música os Racionais reproduzem uma visão punk e nada amenizada de como era dura a vida do jovem negro e pobre que mora na periferia paulistana, perdido entre o crime e a injustiça social. Eles juntaram as letras punks com a batida do hip hop e tempos depois, mudaram a música pop brasileira com suas letras de denúncia e sua postura agressiva. Só isto já basta para demonstrar o quanto o punk foi importante para a cena da música pop feita hoje no Brasil.

Por isso é interessante conhecer melhor o que pensam os punks hoje e a obra de O’Hara espreme e ordena as idéias que habitam o pensamento desse pessoal. O resultado não são apenas definições de princípios, mas um retrato bem completo do que passa pela cabeça daqueles moicanos ou não que participam de eventos como o Fórum Social Mundial. Tudo isso permeado pela percepção da impossibilidade de pensar o punk como um movimento unificado e coeso.

O punk de O’Hara, assim como o punk aqui no Brasil, é uma grande e interessante salada servida com muita música, muitas bandas, muitos fanzines e — por que não? — muita confusão.

Leia também

Punk - Anarquia Planetária e a Cena Brasileira, de Silvio Essinger, por Marcelo Costa

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Site Oficial da editora Radical Livros
Entrevista cedida pela revista Speculum