'Disparos do Front da
Cultura Pop', de Tony Parsons
por
Marcelo Costa Email 14/12/2005
Estamos
em 1976 e um jovem jornalista está prestes a "cravar" a sua
primeira grande reportagem no badalado semanário britânico New
Musical Express. Tony Parsons tem apenas 23 anos, mas fala
com toda certeza que existe no mundo: "Agora preste atenção.
Se os beatos hipócritas que governam nosso país banirem essa
turnê da sua cidade, levante sua bunda cansada e vá para a cidade
próxima, ou talvez nem tão próxima, até a chance de conferir
os shows. Porque, se você perder essa chance, duvido muito que
tenha outra oportunidade de ver uma turnê como essa de novo.
E se você não for, tudo o que posso dizer é que você é um idiota".
Os shows em questão faziam parte da (hoje) histórica turnê que
uniu, no mesmo palco, Sex Pistols, Damned, Heartbreakers e Clash.
O resto é história.
Um amigo jornalista ironizou o lançamento de Disparos do Front da Cultura Pop (Editora Barracuda), livro coletânea que reúne textos de Tony Parsons entre 1976 e 1994, dizendo que se muitos jornalistas brasileiros copiavam o modo de escrever dos britânicos tendo acesso aos raros New Musical Express que apareciam por aqui, imagina agora, com um livro como esse dando sopa em qualquer livraria. Porém, não podemos desprivilegiar um público ávido por textos decentes sobre música apenas porque uma meia dúzia de gatos pingados não tem o mínimo pudor de roubar frases, sentenças e idéias de outros para tentar cobrir a sua total falta de inspiração, senso crítico e profissionalismo. E de mais a mais, o estilo próprio é mesmo uma mistura da essência pessoal de cada um com aquilo que ele mais admira. Ninguém nasce sabendo. Também não dá para crescer às custas dos outros. Não só no jornalismo, mas em qualquer outra profissão, é preciso ter um mínimo de vergonha na cara.
Disparos do Front da Cultura Pop é uma aula de jornalismo
cultural e pode ser visto de vários ângulos. Do mais óbvio,
flagra, no início, um jovem jornalista disposto a mostrar serviço
com um texto afiado e bastante opinativo. Ali pelo meio escorrega
um pouco para o jornalismo gonzo (o que é uma pena), mas depois
volta triunfante para o território das grandes reportagens.
Parsons, após começar bem no jornalismo, acabou
por se tornar um grande escritor. Pai e Filho, romance
de 2001 que ganhou edição nacional pela Sextante, foi eleito
livro do ano pela crítica inglesa. Não é nada ruim. O cara é
bom no que faz, e no fim é isso que importa. Em Disparos,
ele escorrega em apenas um ou dois textos, o que é mais elogioso
do que problemático se levarmos em conta que o livro compila 55 reportagens. A liberdade jornalística, na verdade, é
uma benção que pode se transformar em um pesadelo, e isso pode ser muito bem comprovado no livro. As palavras
mudam de sentido dependendo de onde você olhe. É preciso clareza
de opiniões e, sobretudo, é preciso ter as opiniões certas.
E não adianta: todo mundo sabe reconhecer isso, não queira disfarçar. Parsons usa bem as palavras, mas em ao menos dois casos suas opiniões são bastante questionáveis.
Disparos do Front da Cultura Pop traz 55 textos e é dividido
em cinco capítulos: Música, Amor & Sexo, Polêmicas, Viagens
e Cultura. O capítulo Música é, disparado, o melhor. Parsons
registra com palavras diretas (de esquerda no queixo) o nascimento
do punk entrevistando o Clash ("Ninguém sabe o que é comprometimento
absoluto até conhecer Mick Jones, do Clash"), o Generation
X de Billy Idol (no delicioso texto "Punks limpos: uma ameaça
às nossas crianças"), assistindo The Jam em uma pocilga,
embarcando com os Pistols no histórico show no Tamisa no Dia
do Jubileu da Rainha da Inglaterra ("Dois camburões foram
lotados rapidamente, em grande parte por pessoas próximas aos
Pistols. Transeuntes vestidos com as cores do Jubileu caminhavam
distraidamente pelo local - como se fosse um filme. Os policiais
distribuíam golpes mesmo quando você não estava se mexendo,
e se safaram porque são a lei e porque podem") e a turnê
dos Ramones nas ilhas ("Esqueça toda a merda de arte minimalista
e obscura. Você precisou de um dicionário para ler Homem-Aranha?
E de um bacharelado para gostar de The Ronnetes? A cirurgia
cerebral dos Ramones está lá para ser curtida; meu Deus, eles
são divertidos"). Tudo isso em 77.
Porém, os melhores textos sobre música do livro não têm nenhuma
relação com o punk. Um relato de um show do Bruce Springsteen,
em Nova York, 1978, é de corar a alma. Um dos cinco textos de
cultura mais emocionantes que já li em toda a minha existência.
Parsons relata: "Este não é simplesmente o melhor show que
já vi na vida, é muito mais que isso. É como você ver a sua
vida inteira passar por você e, em vez de morrer, você está
dançando". Mais para frente, nos camarins: "Bruce está
acabado. Vamos ter que cancelar a entrevista", diz o empresário.
"Normalmente, eu saberia que estão me enrolando e o astro
do rock que eu estava pronto para interrogar deu o fora, voltou
para o quarto do Ritz com um grama de cocaína e estaria neste
momento se revirando no fundo de uma limusine com as calças
de couro na altura dos tornozelos e uma inconfundível groupie
sentada sobre ele. Com Springsteen é diferente, tudo o que consigo
pensar é... Deus, tomara que ele esteja bem". O empresário
convida. "Você pode vir ao camarim e conhecer Bruce, se quiser".
O jornalista pára. "Acredite, eu conheci todos eles... Led
Zeppelin, Rolling Stones, Sex Pistols, e quem mais você imaginar.
Nunca na vida eu tinha ficado petrificado só de pensar em conhecer
um músico antes". E o que seria apenas um "oi, tchau" acaba
se transformando em uma mini-entrevista. Além de Bruce, a parte
de música do livro traz entrevistas simplesmente antológicas
com David Bowie, George Michael, Morrissey e Brett Anderson,
entre outras. As duas últimas foram feitas na própria
casa de Tony Parsons e sobre Morrissey o jornalista escreve:
"Você espera (...) tudo menos um homem troncudo de Manchester,
que fala de futebol e bebe cerveja direto da lata".
Após ler o capítulo Música fica-se com a impressão que nada
no livro poderá superar esta abertura. Bobagem. Os textos sobre
Amor & Sexo são impagáveis e divertidos. Parsons define com
propriedade a "garota do rock", discursa com bastante eloqüência
sobre "compromisso" ("Uma mulher pode perdoar quase tudo
do homem que ama. Ela perdoa a infidelidade, a bebedeira e a
ejaculação precoce - apesar de provavelmente não perdoar tudo
na mesma noite. Ela vai perdoar se ele dormir imediatamente
após o sexo. Ela vai perdoar se ele dormir imediatamente antes
do sexo. Mas a única coisa que uma mulher nunca vai perdoar
num homem é a falta de compromisso"), detona pseudo-feministas,
fala do que mais importa na vida para um homem ("O desempenho
na cama: as mulheres querem ficar abraçadas depois, os homens
querem uma nota") e disseca o que nós latinos conhecemos
como paixão no texto "As Rosas são Vermelhas, Violetas são Azuís"
("O romance torna a vida mais doce, mas mais difícil também").
Um pouco abaixo vem o capítulo Polêmica, que permite a Parsons
mostrar que até mesmo um jornalista afiado, fã de boa música
e delicado o bastante para falar sobre amor também pode ser
babaca. Os textos "A Selva Tatuada" e "Lixo na Ruas" são fracos
em argumentação e obscuros em qualidade. No primeiro, Parsons
aponta sua caneta para a classe média operária britânica tentando
criar o estereotipo do que poderia ser identificado como um
hooligan, um cara mal-encarado, beberrão e brigão, além de péssimo
perdedor ou mesmo vencedor, segundo definição do jornalista
Ivan Lessa, da BBC Brasil. Na visão de Parsons, esse ser passeia
pelos subúrbios de Londres com rottweilers, bebem cerveja Tennents
e são tatuados. Ao tentar identificar o "inimigo", Parsons escreve
um pequeno libelo antitatuagem e antibebida, como se ter tatuagens
e beber cerveja de manhã fossem as piores coisas do mundo. O
retrato que cria de sua sociedade chega a ser convincente, mas
na ânsia de provar sua tese, o jornalista acaba disparando contra
tudo e todos. Ao final, não convence. O mesmo pode ser dito
sobre o segundo texto, que ataca indiscriminadamente todos os
mendigos, como se a pobreza fosse uma escolha pessoal, não um
mal da sociedade moderna. "Acho que meu pai teria preferido
nos ver passar fome a sair por aí pedindo esmola para o jantar",
diz em certo trecho, com propriedade. Porém, ao final o jornalista
joga boas observações pela janela ao escrever: "É
nosso dever passar direto por eles, cuspindo metaforicamente
nas palmas sujas de suas mãos estendidas, entoando nosso protesto
contra um mundo que está mudando para pior para sempre".
Caro Parsons, se o mundo está mudando para pior a culpa não
é só dos mendigos. É sua, é minha, é da sua Rainha e do meu
Presidente, sem contar os governadores e prefeitos ineficientes.
Era sobre isso que eu estava dizendo quando disse que a liberdade
jornalística pode se transformar em pesadelo.
O capítulo Polêmica, no entanto, não consegue apagar o brilho
de outros textos sensacionais espalhados pelo livro. Parsons,
na maioria das vezes, segue na linha exata do jornalismo que
abraçamos ao criar o Scream & Yell quase dez anos atrás.
Um jornalismo passional, que permite ao leitor vislumbrar que
existe alguém pensante por trás de um texto, que existe uma
pessoa com opiniões, que, no entanto, não é a principal razão
de existir de uma entrevista. O jornalista é importante como
entrevistador, não como entrevistado. Não quero saber se a narina
direita de Tony Parsons não funciona de tanto que ele usou cocaína,
mas gosto da maneira com que ele "arranca" as palavras de Morrissey,
e é essa a sua função. Disparos do Front da Cultura Pop
é uma obra fundamental para mostrar tudo que o jornalismo cultural
tem de bom, e um pouco do que também tem de ruim. É sublime
em grande parte, e detestável em algumas páginas. Não é para
ser tomado como um "manual do jornalista fodaço", embora centenas
de jovens jornalistas irão ter tendência a fazer isso. Na verdade,
mais do que boas reportagens, o livro serve para mostrar por
a+b que uma boa argumentação é quase um
grande texto, mas lembre-se que influência é uma coisa, cópia
é outra. Além do mais, você nunca vai usar um texto como os
de Disparos do Front da Cultura Pop em uma Folha de
São Paulo da vida, ao menos se você não for tão fodaço
quanto um tal André Forastieri, um dos poucos jornalistas brasileiros
que alcançou (e em muuuuuitos casos ultrapassou) o nível de
qualidade dos textos de Tony Parsons. A receita, na verdade,
é só ser genial. Parece simples, não?
"O fim dos anos 70 era a época ideal para se trabalhar num semanário de música. [...] Era um lugar excelente para um jovem jornalista aprender a profissão porque parecia que todos os jovens do país que conseguiam ler sem mover os lábios compravam o jornal. Fiquei três anos no NME e todos os dias eu entrava na redação com um arrepio de excitação, imaginando o que ia acontecer. [...] Comecei na música e para alguém da minha geração sortuda – bebê quando Elvis vestia 38, criança durante a Beatlemania, adolescente quando Bowie começou a fazer sucesso, jovem durante o movimento punk – a música sempre vai ser importante. Nasci na época certa." [Tony Parsons]
Leia também:
"Dois discos muito
importantes por razões muito pessoais", por André
Forastieri
Links
Editora
Barracuda
|
|