"Pecados Íntimos"
por
Marcelo Costa Email
19/02/2007
Sarah é casada com Richard. O casal tem uma filha pequena, Lucy. Sarah é pós-graduada em literatura inglesa, enquanto a profissão do marido - nas palavras da própria - é mentir, uma outra maneira de dizer que ele é publicitário. Após o casamento, Sarah mudou-se para a casa em que Richard já vivia, e o único ambiente que conseguiu - pra chamar de seu - foi um quartinho, local em que ela passa a maior parte do tempo. Com um punhado de sonhos guardados dentro da alma, Sarah vê seu tempo livre esvair-se em cuidados com a pequena (que ela não sabe lidar nem amar), enquanto vive um relacionamento em que o amor deixou de existir, se algum dia existiu. Corte.
Brad formou-se em Direito, mas não consegue passar na prova
da Ordem dos Advogados. Ele já tentou duas vezes, e fracassou.
Sua vida atual se resume a cuidar do filho pequeno enquanto
sua esposa - a documentarista Kathy - batalha pelo pão de cada
dia. A rotina de Brad é levar o filho ao parque, estudar para
mais um ano de prova da ordem dos advogados, e desejar sua mulher,
que após o nascimento do pequeno Aaron não sente a mesma atração
de antes pelo marido. Com o filho dormindo entre eles, o peso
da obrigação de passar na prova, e a situação ao inverso vivida
em casa (a esposa sustentando a casa e ditando o que deve ser
comprado ou não), Brad vive uma vida sem foco e sem prazeres.
Brad (Patrick Wilson) e Sarah (Kate Winslet) formam o núcleo
principal do longa "Pecados Íntimos", segundo filme de Todd
Field, que surgiu para o público com o mediano (mas indicado
ao Oscar em cinco categorias) "Entre Quatro Paredes". Se faltava
ao primeiro filme uma boa dose de emoção, um enredo que fugisse
do óbvio, e algo que pegasse o espectador pelo colarinho e o
chacoalhasse, "Pecados Íntimos" surge como um grande avanço
na cinematografia do diretor. E a ótima atuação de Kate Winslet
nem pesa tanto na positiva equação final, já que a força do
filme está intrinsicamente amarrada ao seu bom argumento, que
joga na cadeira do cinema temas como pedofilia, adultério e
sexo virtual, para mostrar o quão somos (e seremos) crianças
lidando com os problemas do mundo.
Um dos pontos interessantes do filme é a opção do diretor em
usar um narrador em off para abrir coração e alma de seus personagens,
o que dá um certo tom literário ao que está sendo exibido como
imagens na tela. Esse formato rende algumas boas passagens,
e serve para manter intocada a inocência dos personagens, quase
todos afundados até o pescoço em problemas pessoais,
sem saber ao menos como lidar com a situação. Como diz o título
original do filme, seus personagens são crianças pequenas ("Little
Children") que assumiram responsabiidades que não conseguem
dar conta. Reside, nesta última linha, a grande beleza do filme:
mostrar o quanto seremos, eternamente, crianças lidando com
um mundo maior do que nós.
Se soa perfeito em sua proposta temática, sua execução cinematográfica,
e sua conclusão prática, "Pecados Íntimos" só fica devendo em
comparação a outros filmes recentes do gênero. Expor as mazelas
da classe média norte-americana virou objeto de fetiche de vários
cineastas nos últimos anos. A forma como cada um olha para o
sonho americano pode até ser diferente, mas as narrativas de
"Tempestade de Gelo" (Ang Lee, 1997), "Beleza Americana" (Sam
Mendes, 1999), "Réquiem Para Um Sonho" (Darren Aronofsky, 2000)
e "Magnolia" (Paul Thomas Anderson, 1999) se esbarram em vários
momentos. Numa comparação rápida, "Pecados Íntimos" está muito
próximo de "Tempestade de Gelo", e a esperança na vida retratata
no final de ambos os filmes é bastante representativa do modo
parecido de olhar o mundo dos dois diretores.
Mesmo assim, há espaço para o cinismo cruel de "Beleza Americana"
(principalmente no culto a esposa feito por Brad, e narrado
magistralmente em off quando a amante questiona a beleza da
"adversária") e para a grandiloquência de "Réquiem Para Um Sonho"
(tanto a cena principal da piscina quanto a que flagra um marido
se masturbando frente a tela do computador carregam nas tintas,
e são ótimas exatamente por isso), que inclusive cedeu a deliciosa
Jennifer Connely para o papel de esposa-que-trabalha-demais-e-não-dá-atenção-ao-marido-e-é-traída.
E o grande climax do filme - que surge quando todas histórias
paralelas se desmembram - é muito bem contruído, mas desde que
Paul Thomas Anderson cismou de fazer chover sapos será difícil
qualquer cineasta simbolizar com tamanha poesia e precisão a
angústia e agonia que abraçam - em um mesmo momento - os perdidos
e os desesperados desse mundão de Deus.
As comparações não diminuem a qualidade de "Pecados Íntimos",
que merecia um lugarzinho entre os cinco filmes que disputam
a categoria principal do Oscar (provavelmente no lugar de "Pequena
Miss Sunshine", um bonitinho filmezinho indie que está longe
de ser grande cinema), mas se viu relegado a apenas três categorias,
sendo que a ótima atuação de Kate Winslet vai encontrar pelo
caminho a majestosa Helen Mirren. Como o Oscar ousa errar mais
do que acertar, fique atento para Todd Field e seu "Pecados
Íntimos". A criança que você esconde dentro de si mesmo ainda
não sabe, mas precisa ver esse filme. Cuide dela.
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