"Memórias
de uma Gueixa"
por
Marcelo Miranda
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06/02/2006
Impossível avaliar criticamente Memórias de uma Gueixa sem considerar seu aspecto mais gritante de produção: é um filme americano falado em inglês sobre a cultura japonesa das gueixas, cujo trio central de personagens é formado por atrizes chinesas e em que o Japão dos anos 20 aos 40 foi todo recriado num estúdio de Los Angeles. Verdadeira salada étnico-cultural que não pode ser ignorada, já que cada escolha do diretor Rob Marshall (sob produção de Steven Spielberg) tem razão de ser e vai de encontro à tal salada.
A começar, claro, pela própria definição do elenco principal: Zhang Ziyi, Michelle Yeoh e Gong Li são figuras já eternizadas no imaginário iconográfico do cinema oriental. Ziyi é a mais recente delas e vem traçando caminho de enorme sucesso, tornando-se carinha conhecida no Ocidente com O Tigre e o Dragão e O Clã das Adagas Voadoras; Yeoh vem de filmes de ação e aventura, o que lhe ajudou a ganhar um papel em 007 – O Amanhã Nunca Morre em 1997 e de também entregar seu charme e carisma em O Tigre e o Dragão; e Li é a mais conceituada das três, musa de Zhang Yimou desde o começo (sendo Lanternas Vermelhas o filme mais conhecido dessa fase) e atriz de renome mundial. Chamar todas elas para uma superprodução norte-americana é garantir um mínimo de visibilidade e bilheteria. Serem de nacionalidade distinta a das personagens que interpretam passa a ser mero detalhe.
Para não sermos implicantes e injustos com Marshall, pensemos
em seu novo trabalho tentando deixar de lado a discussão do
elenco. Ainda assim, Memórias... emana fragilidade por
quase todo canto. É, sem qualquer tipo de discrição, um filme
ocidental para platéias ocidentais sobre uma tradição oriental
fora dos padrões “conhecidos” dos espectadores aos quais ele
é voltado. Sendo um filme de Hollywood, isso significa tudo,
menos sutileza. Todo movimento em cena é precedido de uma explicação,
cada fala ou termo é seguido de um momento "glossário",
em que alguém na tela precisa definir detalhadamente o significado
das palavras. Não é dado ao público o prazer da descoberta,
o gosto pelo desconhecido que se descortinaria aos olhos e através
das imagens. Para Rob Marshall, é preciso inteirar a quem assiste
do que, afinal, se está dizendo, num mecanismo irritante de
"fala-explica-entende" que, não fosse a simples premissa
de desconsiderar a inteligência de quem vê, atravanca alguns
pontos da narrativa.
O primeiro terço de filme até instiga a descobrirmos junto com
a pequena Chiyo o novo mundo no qual ela se vê inserida – e
a dor de ser obrigada a se adaptar a este mundo. Ela simboliza
o nosso próprio olhar, e junto com ela tentamos decifrar os
códigos e aceitá-los. Mas quando Chiyo cresce (e vira Zhang
Ziyi), o filme diminui, tornando-se um drama lacrimoso dos mais
rotineiros e fantasiosos. Mais do que isso, Memórias de uma
Gueixa vira um filme folclórico. A beleza do figurino e
da direção de arte, da trilha sonora e da maquiagem, são fumaça
para tentar tirar a atenção de um enredo que nada tem a dizer,
exceto ser o mais didático possível na utilização do melodrama
travestido de filme "de arte" sobre o misterioso e
envolvente cotidiano das gueixas.
Basta pensar no gancho que movimenta a ação: Chiyo só encontra
motivação para continuar vivendo após sentir forte atração por
um senhor que lhe paga um sorvete. A partir dali, ela vai apenas
pensar nesse homem, sempre chamado de "presidente",
e forçar seu caminho a cruzar com o dele. Ser gueixa acaba vindo
como acaso do destino – ou nem bem isso, como o desfecho vai
nos revelar. Antes disso, obviamente, haverá todo tipo de obstáculo
a Sayuri, incluindo aí a "vilã" da história (Gong
Li) que, como em toda trama maniqueísta e simplista, precisa
fazer as piores atrocidades contra a mocinha – e aqui, a ordinária
antagonista cria até uma discípula, tornada tão maldosa quanto
ela.
Em meio às farpas trocadas, Marshall nos apresenta (literalmente) as gueixas e seus costumes, numa visão razoavelmente viciada não de como esse universo deveria ser, mas de como ele, Marshall, e todo o seu imaginário deslumbrado por cores e formas acima de idéias e significado, pensa que esse universo era. A seqüência em que Chiyo treina e aprende a se tornar uma gueixa, por exemplo, é filmada como se a garota estivesse se transformando num super-herói, com direito, inclusive, a nova identidade – Sayuri, no caso – e uma tutora (Michelle Yeoh) que lhe transmite todos os ensinamentos necessários e lhe passa a lição final para a moça se tornar definitivamente a maior das gueixas.
Não surpreende que esse olhar de assombro com algo tão arraigado
na cultura do Japão venha de Rob Marshall, mesmo diretor que
se deixou vencer pelo lado meramente espetaculoso do musical
em Chicago e convenceu meio mundo de uma pseudovisão
conhecedora do que dizia. Memórias de uma Gueixa é seu
segundo passo rumo à mastigação plena de elementos teoricamente
estranhos à grande massa cinéfila que consome esse tipo de filme.
Aceita a mastigada passiva quem quiser.
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