O Homem sem Passado
por Marcelo Miranda
miranda@areaweb.com.br
02/09/2003

Antes de começar a falar de "O Homem sem Passado" (Mies vailla Menneisyyttä - Finlândia, 2002), já vou fazendo uma confissão: nunca tinha visto um filme da Finlândia (pelo menos, não que eu me lembre). Ou seja, não conheço o estilo cinematográfico, de filmagem, montagem, atuação, roteiro... Assim, o palpite que você vai ler abaixo se baseia exclusivamente nos meus (parcos) conhecimentos de Cinema e nas impressões que o filme me causou. Até peço que, caso algum fã do cinema finlandês leia e não goste, me escreva e indique outros filmes do país, pois interesse não me falta para assistir a todos que eu puder – faltam, isto sim, oportunidades. Ao texto.

Histórias de personagens desmemoriados já renderam bons frutos para o Cinema. Alguns bastante memoráveis valem ser citados logo de cara e sem ordenações: "Amateur" (Hal Hartley), "Amnésia" (Christopher Nolan), "Miragem" (excelente e pouquíssimo conhecido filme de Edward Dmytrick) e até o recente e divertido "A Identidade Bourne' (Doug Liman). O assunto é batido, mas quando bem trabalhado pode gerar histórias inusitadas, interessantes e até originais. "O Homem sem Passado" é algo misterioso: trafega entre o bom e o regular com extrema facilidade. 

A trama diz respeito a um pobre coitado que sofre um assalto, é espancado e perde a memória. Sem rumo, vai parar numa comunidade de excluídos e se envolve com os moradores – uns, de forma amigável; outros, a contragosto. O que vemos a partir daí é a adaptação deste homem num mundo que ele desconhece, numa vida que ele não sabe de quem é, com pessoas as quais ele jamais viu. Aquilo que poderia render um drama comovente sobre as dificuldades de incorporação à sociedade, ou uma comédia de humor negro sobre situações rotineiras que podem se tornar absurdas, se transforma num filme sem muito foco ou unidade; por vezes sério, outras vezes debochado; interessante aqui, maçante ali... Enfim: uma salada indefinida. 

A direção de Aki Kaurismäki (também autor do roteiro) não decide qual rumo seguir. O primeiro problema está no personagem central: em momento algum ele se mostra interessado em saber quem é, de onde veio, o que aconteceu (e nunca nos é explicado como diabos ele saiu do hospital depois de ser dado como morto). O anônimo se limita a deixar as coisas acontecerem, numa irritante passividade e acomodação. Pode-se alegar que isso é parte da ‘brincadeira’, que o roteirista quis mostrar o renascimento de seu protagonista, que não importava o passado. Mas se fosse isso, o desfecho não seria o apresentado a nós. E se a alegação é de que tudo não passa de deboche, de mostrar o desmemoriado frente a acontecimentos aparentemente sem sentido e com um toque peculiar de humor, a fita falha igualmente: a irregularidade entre o ‘sério – engraçado’ está à mostra de qualquer um que assista – enquanto temos momentos realmente gozados (como as despedidas e cumprimentos dos personagens, ou o assalto ao banco), há as explicações didáticas de determinada pessoa mais ao final. 

Há méritos na história, é verdade. Além das partes mais bizarras, são realistas os problemas que o anônimo sofre para conseguir se adequar novamente ao cotidiano. Procurando emprego ou tentando arranjar dinheiro, tudo o que ele encontra são portas fechadas e incompreensão (nada muito diferente do que vemos com ex-presidiários ou mesmo com negros). Outro destaque vai para o personagem do segurança, que extorque valores absurdos para dar guarita aos moradores e tem uma cadela de nome Hannibal (ele achava que era macho!). Já o protagonista, interpretado por Markku Peltola, fica aquém: sua cara meio selvagem e seu jeito apático ora funcionam muito bem, ora são risíveis. Mesmo pelo fato de estar sem memória, ou pelo ar de gozação do roteiro, Peltola não convence. 

No fim das contas, "O Homem sem Passado" não é ruim. Mas está longe de merecer as láureas que recebeu (prêmios do júri de Cannes de melhor filme e atriz – para qual? Nem me perguntem, porque não vi nenhuma que chegasse a tanto – e indicações ao Oscar e ao César). A impressão que tive, a princípio, foi de ter visto um filme vazio e bobo disfarçado de ‘fita de arte’. Pensando melhor depois, percebi algumas sutilezas, mas ainda assim nada de muito memorável. O resultado final é uma produção meio perdida, que parece não ter coragem de assumir nem seu lado cômico nem seu lado denso. Se for para ‘perder a memória’ com alguém, prefira "Amateur", maravilhosa pérola do independente Hal Hartley. Este, sim, sabe o que quer. 

PS: uma outra visão de "O Homem sem Passado" poderia ser a de uma sátira aos costumes e trejeitos da sociedade finlandesa, meio no jeitão de 'Beleza Americana" - e guardadas as devidas proporções. Mas como não tenho conhecimento sobre a cultura da Finlândia, fica apenas a idéia na minha cabeça, vagando até que alguém me diga como é a vida por lá. 

PS II: acreditem ou não, este filme foi indicado ao Oscar de filme estrangeiro em 2003, na mesma seleção que deixou de fora o brasileiro "Cidade de Deus". Nem vale maiores comentários...