"2 Filhos de Francisco"
por Marcelo Miranda
Fotos - Divulgação

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22/08/2005

A resistência que a esmagadora parte dos cinéfilos e espectadores vêm formando em torno de 2 Filhos de Francisco é compreensível. Por dois fatores, em especial: o “medo” da música sertaneja, que povoa corações e mentes menos pela qualidade da própria mas pela sua superexposição na mídia; e pelo péssimo histórico de filmes sobre ou com celebridades no Brasil, a começar pelos da Xuxa e suas “participações especiais” de cantores de axé, funk e afins, ou mesmo pelo recente Acquaria, com a dupla Sandy e Junior (nem era um filme deles, mas tinha lá os dois no elenco fingindo que cantam).

Por um lado, esse tipo de “muro” contra essas produções é saudável, porque ajuda a evitar as absurdas bilheterias que elas costumam arrecadar (com exceção do citado Acquaria, um fracasso). Mas por outro, inibe o interesse que poderia surgir em trabalhos feitos com o coração. 2 Filhos de Francisco está nesta segunda categoria, com algumas vantagens a mais. Além da sinceridade e força de sua proposta, é cinema clássico de alto nível, que usa da linguagem mais simples para atingir em cheio a alma de seus personagens e do público sem apelar para as figuras que aborda.

Porque a primeira coisa que se deve saber do filme é que não se trata de um veículo para a dupla Zezé Di Camargo e Luciano. Não tem os dois no elenco (exceto num determinado momento mais documental, bem curto, e fazendo eles mesmos), não conta com as irritantes “participações especiais” dos colegas de palco e segue à risca a idéia do diretor estreante Breno Silveira: retratar, com o máximo de realismo que a indústria permita, a trajetória de um pai disposto a ter uma dupla sertaneja em casa. Entre seus sete filhos, Francisco Camargo, amante do cancioneiro caipira, escolheu dois para seguirem os passos tão sonhados e alcançarem o sucesso. No meio rural e pobre de Pirenópolis (interior de Goiás), ele alimentou esse sonho de todas as formas, tentando não apenas realizar uma vontade, mas dar vida digna e de respeito à prole.

As tentativas de obrigar os dois meninos a cantar e as estratégias e sacrifícios para atingir o objetivo misturam ingenuidade, bom humor e, principalmente, esperança. A mudança para Goiânia em busca de uma vida melhor é frustrante, mas ironicamente será o grande salto de Francisco rumo à realização do sonho – até que o acaso apareça para brecar e destruir suas vontades (numa virada de enredo que realmente surpreende a quem não conhece a fundo a vida da dupla). Sonhos esfacelados, sonhos reconstruídos. É disso que trata 2 Filhos de Francisco, é isso que interessa a Breno Silveira. O maior mérito foi ele ter encontrado na vida dos hoje milionários irmãos (quinze anos de carreira e vinte milhões de discos vendidos) a forma perfeita de contar uma história autenticamente brasileira.

Na linguagem, Breno se mostra um craque. Dosa o ritmo do filme à perfeição. É econômico nas cenas, não deixa tempos mortos e mantém sempre o interesse e a curiosidade pelos desdobramentos do roteiro intactos – mérito também das roteiristas Carolina Kotscho e Patrícia Andrade (com colaboração de ninguém menos que Domingos Oliveira), que acertam o tom em praticamente todos os momentos de filme. Breno Silveira ainda se dá ao luxo de inserir elementos que poderiam ser taxados de neo-realistas, em especial ao mostrar o auge da miséria da família em Goiânia: o choro desesperado da mãe, a chuva que não pára, a fome, as crianças brincando na areia que recobre o chão da casa. Tudo quase no silêncio, no intimismo, minimalista. O rosto sofrido de Dira Paes, a cara tristemente conformada dos pequenos.

O elenco, formado por atores não-profissionais (como os dois garotos protagonistas) e gente conhecida (a própria Dira Paes, Paloma Duarte, José Dumont e Lima Duarte), além de Ângelo Antônio brilhando no papel principal, fortalece a noção de realismo, pela entrega total de cada um deles nesta primeira fase do filme (que ocupa dois terços de projeção, o melhor). Na tentativa de fazer um cinema popular sem cair no populismo, Breno Silveira foi mais sincero e bem sucedido que a busca pela “linguagem moderninha” e pop de outra biografia recente, Cazuza - O Tempo Não Pára, de Sandra Werneck e Walter Carvalho. Cinematograficamente, o filme de Breno é melhor. Não há tentativas de se sobressair em nada. Todas as ferramentas técnicas, da fotografia à direção de arte, da cenografia à montagem, conjugam-se harmoniosamente – a montagem, em especial, dá preferência a cortes secos, em que cada cena parece ter uma história por si só, o que dá um surpreendente ar de modernidade ao filme.

A música de Zezé di Camargo e Luciano, que tanto assusta as elites freqüentadoras dos cinemas, não é usada como mostruário de discos, mas sim para “empurrar” a narrativa – e ainda assim, quase inexiste composições conhecidas, exatamente porque o filme foca o “pré-sucesso”, o caminhar rumo às dez mais tocadas nas rádios, as agruras para vencer tantos obstáculos.

Há certo exagero melodramático na parte final, que tenta forçar algumas lágrimas, abrindo algumas concessões perigosas que poderiam tirar todo o brilho anterior. Felizmente, o filme acaba antes, mostrando, num momento de expiação da família Camargo, o nível de repercussão que a dupla atingiu e o quanto o sonho do velho Francisco foi além do que ele imaginava.

Numa época de crises e descrenças políticas, é bom e importante ver algo como 2 Filhos de Francisco e todo o seu impacto na crença do que há de verdadeiramente humano e honesto no homem. Um dos cantores (não lembro agora se Zezé ou Luciano) disse em entrevista sobre o filme: “os críticos podem não gostar da nossa música, mas a nossa história eles vão respeitar”. Não poderia estar mais certo, conjugado ao talento de Breno Silveira, famoso como diretor de fotografia (Eu Tu Eles), em contar essa história.


Links
Site Oficial do filme 2 Filhos de Francisco

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Cazuza - O Tempo Não Pára, por Marcelo Costa