"A Conquista da Honra" - "Cartas de Iwo Jima"
por Marcelo Costa
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21/02/2007

Contar uma história é apresentar os fatos conforme a visão pessoal de quem está relatando o tema. É algo de suprema importância na arte, nos relacionamentos e, blá blá blá, na política. Tanto já foi dito, mas é sempre bom lembrar: não existe apenas uma verdade, mas várias pequenas verdades que juntas formam algo que pode se aproximar do real. Pode. Em um de seus projetos mais ambiciosos, o cineasta Clint Eastwood flagra - em dois filmes - uma sangrenta batalha da segunda guerra mundial pela (pretensa, porém correta) ótica dos dois adversários. E o resultado é um das obras de arte cinematográfica definitivas dos tempos modernos, que mesmo imperfeita, rascunha um importante manifesto contra a guerra. Não é pouco.

Falado em inglês, "A Conquista da Honra" registra o olhar norte-americano sobre a batalha dos Estados Unidos contra o Japão pela posse da ilha de Iwo Jima, território sagrado japonês, porta de entrada dos aliados para o Oriente. Apesar de sangrentas cenas de guerra, "A Conquista da Honra" fecha seu olhar sob a história de três combatentes que participaram dos primeiros dias de batalha em Iwo Jima, e levantaram - junto a outros três soldados - uma bandeira norte-americana no monte Suribachi, fato cuja fotografia serviu para o exército dos EUA alimentar (e enganar) a esperança de seu povo.

O roteiro procura desmistificar o momento da foto com vários argumentos: a bandeira retratada em solo japonês não havia sido a primeira a ser levantada; dos seis soldados que a ergueram, três tombaram no campo de batalha. Os sobreviventes voltaram aos EUA para promover uma campanha de arrecadação de fundos para a guerra; apesar de a foto ter sido registrada no quinto dia de batalha, a tomada de Iwo Jima por parte dos norte-americanos só foi concretizada trinta dias depois. Ou seja, o momento histórico não passou de um golpe de marketing para arrecadar dinheiro para a investida do país na guerra.

Porém, por mais que o marketing da bandeira seja o trunfo de "A Conquista da Honra", a guerra continua sendo o personagem principal. E a guerra filmada por Clint ilumina a idiotice dos governantes em enviar jovens despreparados a campos de batalha com a justificativa de honrarem o nome do país. Logo no começo do filme, em uma cena capital para a história, um soldado cai no mar, e nenhum dos navios da frota se preocupa em resgatá-lo. Outro soldado que assiste a cena resume: "E aqui cai o mito de que nenhum soldado é deixado para trás".

Há vácuos no roteiro, e mesmo o uso constante de flashbacks - que colocam sobreviventes da batalha nos dias de hoje relembrando os horrores da guerra, quando não os mesmos personagens na época relembrando o campo de batalha - soa exagerado em alguns momentos da fita. E os pesadelos que atormentam ex-combatentes são retratados de forma caricata e clichê. Estes detalhes não conseguem apagar o brilho de filme, obrigatório nestes tempos de guerra que ainda vivemos, não só por mostrar o horror do campo de batalha (vários filmes já fizeram isso, e melhor), mas por detectar o quão facilmente um povo pode ser manipulado por uma imagem, que - você sabe - vale mais do que mil palavras.


Viramos o tabuleiro e encontramos o general Tadamichi Kuribayashi arquitetando a defesa japonesa contra a investida norte-americana. Falado em japonês, "Cartas de Iwo Jima" flagra a batalha do ponto de vista das tropas imperiais. Apesar da grande idéia de se contar os dois lados de uma mesma história, é importante ressaltar que quem conta estas duas histórias é o mesmo homem: Clint Eastwood, norte-americano. Ele vê com respeito o lado "adversário" e consegue aprofundar o olhar sobre a cultura oriental de maneira interessante, mas comete alguns equívocos que não comprometem o todo, mas servem para esclarecer (e até mesmo relativizar) a maneira de olhar do diretor (e do Ocidente) sobre o Oriente.

Estes pequenos equívocos podem ser exemplificados na construção de dois personagens marcantes de "Cartas de Iwo Jima": o general Tadamichi Kuribayashi e o Barão Nishi. Os dois guerreiros imperiais são mostrados ao público como cavalheiros que tiveram sua forma de ver o mundo alterada após passarem pelos Estados Unidos da América. O primeiro foi estudar nas terras que 60 anos depois seriam de George W. Bush. O segundo foi disputar - e vencer - uma Olimpíada, na categoria hipismo. Estes dois personagens não só contrastam com os demais japoneses, como também se chocam visivelmente em questões de moral e honra. É um ponto bastante questionável do filme, que se não atrapalha o desenrolar da história, coloca em xeque toda a espinha dorsal do longa.

E a história de "Cartas de Iwo Jima" é uma história de guerra tradicional. Clint filma a chegada do general Kuribayashi e sua preocupação em oferecer resistência ao ataque norte-americano, mesmo estando em desvantagem de homens, armas e tanques. Os soldados e oficiais japoneses sabem que a única forma de sair de Iwo Jima é estando morto, por bala, baioneta, bomba, granada, fogo ou honra. E mesmo assim lutam bravamente para defender a terra sagrada. O roteiro critica levemente essa opção cega pela defesa da nação, ao contrastar a atitude dos dois personagens do parágrafo acima com a de outros personagens que preferem se suicidar a morrer perante a arma do tão falado inimigo. Em certo momento, a deserção ganha pauta, e seu desenrolar cruel castiga os desonrados (como se a opção única fosse realmente morrer).

Neste jogo em que não existem vencedores, Clint pincela um bonito quadro de amizade impossível entre um guerreiro japonês e um soldado norte-americano. A cena tocante, carregada de pieguice, é um dos grandes momentos (recados) do filme. Em outra, tão importante quanto a primeira, o general Kuribayashi é homenageado com um jantar nos Estados Unidos. A mulher de um general norte-americano pergunta: "Se um dia você tivesse que lutar contra os Estados Unidos, como seria?". E ele responde: "Eu defenderia meus ideais". No que o general norte-americano intervem: "Os seus ideais ou os do seu país?". E Kuribayashi responde: "E não são os mesmos?".

Comparativamente, "Cartas de Iwo Jima" parece estar um pouquinho à frente de "A Conquista da Honra" (e mesmo as indicações ao Oscar pontuam isso). Porém, o grande mérito de Clint Eastwood foi ter feito (e lançado) os dois filmes simultaneamente. Os erros e acertos de cada um desaparecem frente ao grande libelo antiguerra que a junção dos dois filmes permite vislumbrar. Vistos em seqüência, os dois filmes jogam luz sobre a idiotice dos combates, com jovens soldados que deveriam estar em casa cuidando de suas famílias recém-formadas trocando tiros, muito mais por ordem de um superior (que recebe ordens de um outro, e por ai vai) do que por vontade própria. Ao resgatar um dos maiores clichês sobre a guerra (aquele que diz que jovens de lados diferentes poderiam ser amigos em outras circunstâncias), Clint desarma os adversários, dá uma aula de cinema, e mostra de uma vez por todas como envelhecer dignamente, criando e provocando o mundo que o cerca. Só não deve sair premiado do Oscar, mas nem precisa. "Cartas de Iwo Jima" e "A Conquista da Honra" devem entrar para a História (com H maiúsculo mesmo).

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