"Menina de Ouro"
por
Marcelo Miranda
Fotos - Divulgação
miranda@areaweb.com.br
13/02/2005
Treinador de boxe durão se recusa a treinar garota idealista. De tanto insistir, e contando com a piedade do veterano, ela acaba conseguindo atenção. Aos poucos, vai se tornando a campeã do ringue, com tudo para ser a maior do mundo. O que podia parecer um típico
"filme de esporte", com aquele desenvolvimento conhecido de
todo cinéfilo (rejeição, treinamento, evolução, derrota e glória), jamais torna-se convencional ou previsível nas mãos de alguém como Clint Eastwood.
Porque Clint Eastwood não é qualquer um. O homem que sepultou o faroeste com Os
Imperdoáveis agora faz o mesmo com o subgênero
do "filme de esporte". A mesma determinação de ir contra o que se espera
de uma fita de gênero, o amor pelos personagens, seus ideais e conceitos que
apenas um autor como ele pode e consegue ter (e semelhantes a ele, há poucos;
igual ou melhor, nenhum), a ânsia em se superar a cada trabalho. Tudo torna Menina
de Ouro um achado precioso, uma jóia rara de tamanho impacto e sutileza que
literalmente coloca na lona o que foi feito e o que se fizer em se tratando de
esporte na tela – para não dizer em se tratando de dramas em geral.
O grande tema de todo o cinema de Eastwood, desde seu primeiro longa-metragem (Perversa Paixão – 1971), é a perda. Os protagonistas são sempre almas sem rumo certo no mundo, em busca de alguma coisa que ficou para trás; são seres fissurados por acontecimentos do passado, tentando tornar o presente algo palatável, quase sempre sem sucesso. Até que uma centelha surge no caminho, e a chama reacende – para em seguida ser ou não apagada pelo desenrolar dos fatos. O que move os filmes de Eastwood é a ação, no sentido de movimento, de acontecimento, de atitude. Não é um cinema de maneirismos ou experiências de linguagem: Clint Eastwood é cineasta clássico por excelência. Usa essa característica totalmente a seu favor, para tornar o aparentemente comum e banal em sublime e profundo.
A figura da morte é presença constante, não necessariamente no sentido literal da palavra: na maioria das vezes, o impulso de morte ou a conseqüência da morte cria o tal movimento, faz a roda girar. Eastwood é pessimista? Tem quem ache que sim, outros não. Sombrio, sem dúvida ele é. Basta perceber os tipos de projetos escolhidos em sua carreira, a forma como ilumina os personagens e enquadra as cenas, as histórias que decide contar e o modo como o faz. Nada melhor do que ver (ou rever, dezenas de vezes) os filmes mais emblemáticos do diretor para entender e apreciar todo esse mecanismo. Entre os 25 que comandou, figuram trabalhos do porte de O Estranho Sem Nome, Josey Wales, O Cavaleiro Solitário, Bird, Coração de Caçador, Um Mundo Perfeito, As Pontes de Madison, Sobre Meninos e Lobos e, claro, Os Imperdoáveis.
E é quando chegamos a Menina de Ouro, outro momento-ápice de uma trajetória brilhante. Quando pensávamos que Eastwood tinha gastado toda a munição no anterior Sobre Meninos e Lobos (tratado sobre o mecanismo da violência numa sociedade marcada pelo egoísmo e individualismo), eis que o velho Clint nos chega com este drama de esporte. O que parecia improvável ganha força na medida em que o diretor lida com o tema de forma afetuosa, usando o boxe como metáfora para, ao mesmo tempo, representar o fim de um tempo e o início de outro.
Quando Maggie (Hilary Swank) aborda Frank (o próprio Eastwood), ela busca uma tentativa de se salvar de um destino medíocre; quando ele a recusa, a vontade dele é não trazer mais mediocridade à sua já combalida vida de treinador. Claro que ele cederá, numa tentativa de se dar uma segunda chance – tanto no que se refere ao relacionamento inexistente com a filha quanto à frustração de ter perdido seu melhor aluno. Maggie entra por tabela. Comporta-se como criança, enxerga em Frank a única forma de se dar bem física e moralmente. Ela vai conseguir escapar da mediocridade, a um preço que Frank jamais vai saber se valeu a pena.
Menina de Ouro sufoca qualquer tipo de expectativa sem apelar para os artifícios que um cineasta menor poderia utilizar – e que teriam o aval dos produtores atuais do cinema americano, crentes de que o público quer apenas mais do mesmo. Isso não existe em Eastwood: ciente do rumo a seguir, vai o mais fundo que pode com sua narrativa, numa direção tão bem decupada e montada que a sensação é a de que o filme anda sozinho, sem auxílio de alguém por trás – e não seria esse o maior elogio a um diretor? Impossível não se envolver em cada passo da trama (escrita por Paul Haggins, baseado em conto de F.X. Toole), ao som das palavras de um Morgan Freeman iluminado, uma espécie de espectro que a tudo espreita das sombras, como se existisse apenas para sussurrar palavras aos ouvidos de cada personagem.
A propósito, como em qualquer filme de Eastwood, sombras não faltam em Menina de Ouro. Ou mesmo vultos e silhuetas na escuridão. A fotografia de Tom Stern surge com a mesma discrição da direção, com o mesmo jeito de agarrar o espectador pelas imagens às vezes difíceis de enxergar, mas sempre visíveis a quem quiser ver. Tudo conjugado para o que Eastwood quer falar. Essas silhuetas nada mais são que reflexos difusos dos personagens, os verdadeiros fantasmas de um mundo ao qual acreditamos não ter controle. E o elenco principal inteiro se entrega tanto quando o diretor. Principalmente Swank, que finalmente apaga todas as manchas de sua fracassada carreira após
o Oscar por Meninos não Choram e cai de cabeça numa heroína que mistura complexidade com simplicidade, numa interpretação também mesclando o simples com o ousado, a bravura com a delicadeza.
Como se não bastasse, e quando menos esperamos (mais uma vez), o cineasta volta a abordar outro tema recorrente em sua filmografia: a subtração da lei para que seja feita alguma justiça. Eastwood parece martelar, a cada filme, que determinadas atitudes do ser humano não necessitam de amparo burocrático se existirem motivos para serem cometidas – mesmo que firam princípios morais ou éticos normalmente considerados como tais. Se essas atitudes estão certas ou erradas, não será o diretor a julgá-las. Na verdade, nem o público ou os personagens. Nem mesmo Deus, entidade quase sempre presente em seus filmes, ainda que na penumbra. É essa a riqueza desse cinema de Eastwood: questionar, dentro de nós mesmos, qual o limite das crenças e ensinamentos pessoais. Mais: até onde se está disposto a ir para seguir o que se acredita ser o bem – por mais que este bem esteja travestido de mal.
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Oficial do filme
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