Passando a Limpo
por
Drex
cartasdemaracangalha.blogspot.com
29/05/2003
Monty Brogan (Edward Norton) levava
uma vida tranqüila e confortável. Tinha uma bela namorada porto-riquenha
de nome exótico, e com ela dividia um modesto, mas aconchegante
apartamento num bairro bem localizado de Nova York. Seu pai, como bom membro
da comunidade irlandesa da cidade, é dono de um pub e faz o tipo
beberrão boa-praça que costuma distribuir rodadas de cerveja
Guiness de graça a cada vitória dos NY Yankees. Brogan, por
sua vez, preferia uma vida mais tranqüila. Costumava caminhar pelo
parque durante as manhãs. Ninguém poderia dizer que aquele
simpático sujeito que passeava com seu cãozinho na coleira
ganhava a vida traficando cocaína.
Em "A Última Noite"
(The 25th hour – 2002 EUA), porém, a estória acima já
é passado. Spike Lee, o mais aclamado e polêmico diretor negro
norte-americano, aquele que tem Nova York no sangue, conta justamente o
último dia de liberdade ("a vigésima quinta hora") de Monty
Brogan, condenado a sete anos de prisão pela sua pacata atividade
de distribuição de entorpecentes.
O olhar de Spike Lee sobre estas vinte
quatro (ou vinte cinco...) horas de derradeira liberdade é, ao mesmo
tempo, duro e sensível. E faz enxergar, pelo menos, duas perspectivas
diferentes, mas complementares.
"A Última Noite" pode ser visto,
por um lado, como uma forte e bela estória de amizade. Porque Monty
Brogan, ao se ver traído, julgado e condenado, percebe que jogou
pela janela não só os próximos sete anos de sua vida,
mas também o pouco que havia construído até ali, só
encontrando segurança e apoio na companhia de seu pai, James Brogan
(Brian Cox), e de seus amigos de infância: Francis Xavier Slaughtery
(Barry Pepper) e Jakob Elinsky (Phillip Seymor Hoffman). Estes dois são
sujeitos tão diferentes dele próprio, e também entre
si, que é difícil acreditar que exista ali qualquer cumplicidade.
Só mesmo uma amizade incondicional, daquelas que a gente nem se
lembra mais do início, pode superar tamanha diferença de
personalidades. E é com eles que Monty planeja passar sua última
balada, também em companhia de sua namorada. Sobretudo, é
somente nestes amigos em quem ele confia. Nesse ponto, a temática
de "A Última Noite" ganha um foco bastante masculino: essa cumplicidade,
uma camaradagem quase mafiosa, isso é coisa muito mais comum e compreensível
entre homens que entre mulheres. Muitas mulheres podem ficar incomodadas,
por exemplo, ao ver o sujeito confiar mais nos amigos do que em sua amada.
Existe, porém, uma outra forma
de se olhar o filme. Para isso, basta colocá-lo dentro do seu contexto,
digamos, histórico e político: este é um dos primeiros
filmes a ambientar sua estória numa Nova York sem as Torres Gêmeas.
E Spike Lee não te deixa esquecer disso nem por um momento. Através
do seu tradicional retrato apaixonado da cidade, te faz sentir de perto
o impacto causado pelo 'onze de setembro'. Não só o impacto
aparente, mas também o impacto invisível, aquele que acompanha
cada cidadão pelas ruas da cidade. Vendo o filme dentro deste contexto,
é impossível não fazer um paralelo entre a estória
do traficante e os acontecimentos que agrediram a alma dos norte-americanos.
Num belo dia, como outro qualquer,
bam!, os anos dourados de Monty desaparecem. De repente, a casa caiu, a
festa acabou, o mundo ruiu. Algo tão improvável como dois
aviões se chocarem com o WTC. E, num supetão, Monty está
ali, perplexo e com um dia inteiro de reflexões pela frente. Numa
já clássica cena defronte ao espelho, ele começa destilando
intolerância e mandando às favas todas as suas fontes de insatisfação
na metrópole: malandros italianos, jogadores de basquete negros,
taxistas paquistaneses, quitandeiros coreanos, mafiosos russos. "Fodam-se
todos aqueles vermes inúteis". E, depois do acesso de raiva, se
dá conta que o único culpado por sua condição
é ele mesmo. Reconhece que somente ele foi responsável por
seus próprios atos. Mas ainda continua perplexo, escondendo seus
medos quanto ao futuro, tentando analisar as culpas do passado, tateando
no escuro em busca de aliados e de esperança.
Spike Lee muda bastante seu estilo.
É um filme cadenciado, de cores pastéis e acinzentadas. Não
chega a ser lento, mas está muito longe do ritmo frenético
que marcou as origens do diretor. Na temática, no entanto, Lee continua
incisivo. Contando a estória de amizade e de angústia dos
personagens, o diretor não erra nunca. Por outro lado, quando quer
deixar clara sua mensagem política, erra um pouco na mão
e acaba soando desnecessariamente explícito. Abusa do risco de parecer
inocente, cabotino, panfletário. Nada que desabone o filme, até
porque a mão aqui não chega a ser pesada como a de Michael
Moore, por exemplo. E nem precisava, pois "A Última Noite" é
capaz de tocar em feridas muito mais profundas e escondidas que o aclamado
"Tiros
em Columbine".
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