"Tiros em Columbine"
"What a Wonderful World"

por Marcelo Costa
maccosta@hotmail.com.br
25/05/2003

Quando um fato incomum e brutal acontece em uma sociedade, o primeiro sintoma é tentar entender o porquê disso ter ocorrido. Na correria do mundo moderno e sem analisar com profundidade a questão, quase todos os opinantes erram em suas análises optando por negar enxergar o óbvio. 

Um bom exemplo é a história terrível de dois jovens estudantes norte-americanos que entraram em sua própria escola no dia 20 de abril de 1999 armados de duas escopetas, uma pistola semi-automática e um rifle de assalto de 9mm e saíram disparando contra tudo e todos. Saldo: o assassinato de treze colegas e um professor. Logo depois, ambos se mataram. 

Detalhe. Na sexta-feira anterior ao ocorrido, os dois haviam feito um bico numa pizzaria. No sábado, tinham dançado na festa de formatura do segundo grau. Na segunda, jogaram boliche. Na terça-feira, entraram para as páginas negras da história. E faltava apenas dezessete dias para acabar o ano letivo.

Em um primeiro momento a mídia voltou-se culpando o rock (Marilyn Manson), desenhos animados (South Park), videogames e filmes violentos de Hollywood. O Presidente Bill Clinton, então em exercício, pediu ao congresso que estudasse o caso e criasse leis. A rotina dos estudantes virou um caos nas escolas.

Três anos se passaram e o polêmico documentarista Michael Moore encarou a questão de frente voltando a Columbine disposto a encontrar respostas para dezenas de perguntas que ficaram esquecidas no inconsciente coletivo. Moore não poupou alvos e Tiros Em Columbine (Bowling For Columbine - 2002, EUA) é o que se pode chamar de obra-prima, com todas as letras. 

A estratégia do diretor é simples: usar da ironia e da inocência para deixar que a história se conte por si só. É claro que em alguns momentos o filme escorrega para a pieguice. É claro que em outros é percebida manipulação da cena, quando não sua encenação (como veremos no final). Moore, com certeza, não estava buscando retratar a perfeição nem posar de santo. Estava apenas buscando contar a sua versão da história. E, melhor do que ninguém, ele sabe que de cara fechada e ditando regras ninguém lhe daria ouvidos. Assim, Tiros Em Columbine é a vitória do sarcasmo e de como tratar de um assunto terrível e delicado de uma maneira que chame a atenção pública e convide a discussão. Sedução. O cara é mestre. 

Sua versão da história sugere que os norte-americanos vivem uma cultura do medo incentivada pelo Estado, pela mídia (principalmente a televisiva) e pela indústria armamentista. Não há como confiar no próximo, na pessoa que senta ao seu lado no ônibus, na outra que lhe pede uma informação na rua: todos são inimigos. É a Lei da Selva. 

Dessa forma, é incrível que na época do incidente ninguém tenha levantado a voz apontando para o Presidente Bill Clinton que, horas antes, havia declarado sentença de morte a milhares de pessoas em um bombardeio a Kosovo. A comparação dos dois depoimentos presidenciais é de se tirar o sono. No primeiro, Clinton tenta justificar o ataque contyra Kosovo como se estivesse falando de um jogo de beisebol e não de uma carnificina autoritária. No segundo, sobre Columbine se comove como se estivesse falando de seus filhos. A comparação das duas cenas é de deixar a pessoa mais paciente do mundo em estado de nervos.

Tiros em Columbine é ainda mais vibrante como obra cinematográfica por ter sido feita por um norte-americano que vive e respira sob a bandeira dos cinqüenta e um Estados. É tocante perceber que existe voz crítica dentro de um país que invade outro pouco se importando com a opinião do mundo. Moore, como mostrou na cerimônia do Oscar, está a serviço da guerrilha, mas ao invés de empunhar armas, ele carrega uma câmera e muitas idéias. Columbine deveria ser passado em todas as escolas secundárias brasileiras para trabalho de fim de semestre. Deveria freqüentar o horário nobre da Rede Globo e ser próximo item nessas coleções que acompanham revistas semanais. É tão obrigatório quanto incisivo e divertido.

Porém, e sempre existe um porém, é preciso enxergar esse filme como fragmento de uma história e objeto da vida de um homem. Tiros Em Columbine não surgiu do nada em cima da mesa de um dono de produtora de cinema. É um filme e tal como, é a visão de seu diretor sobre uma história. Desse jeito, para conseguir deixar a obra redondinha, Moore precisou "ajustar" alguns fatos o que resulta em acusações de "manipular a verdade, sentimentalizar o discurso e simplificar a realidade para defender suas posições", muito bem analisados pelo colunista Ricardo Calil do site No Mínimo, em texto que surge anexo ao final desta resenha. 

Para você ter uma idéia, o título do documentário em inglês, Jogando Boliche em Columbine, é uma brincadeira do diretor que em certo trecho do filme diz que, como os dois garotos jogaram boliche na manhã do atentado, é o esporte que inspirou os estudantes assassinos. Mas, como retratado no ínicio desse texto, eles jogaram boliche um dia antes e não como Moore aponta. Em outra cena, o diretor mostra um banco em que o cliente que abre um conta ganha uma espingarda de presente. No filme, Moore abre a conta corrente e é flagrado saindo do banco com a arma. Na realidade, o cliente se cadastra e fica a cargo do banco conferir seu histórico. Se aprovado, ele pode retirar a arma em uma loja especializada depois de alguns dias. A encenação não diminui o impacto de um banco ser fornecdor de armas, mas nos faz atentar para os detalhes. Na própria sessão exclusiva para jornalistas em São Paulo de Tiros em Columbine foi bastante estranho receber a informação de que Moore se recusava a dar entrevistas, alegando que tudo que ele tinha a dizer estava em seu site oficial...

Isso tudo diminui o impacto do filme? Não. Seria inocente demais da parte do espectador creditar a Moore a posição de um Messias. O diretor apenas está usando tudo que pode para conseguir chamar a atenção para suas causas. Ao inverso, é mais ou menos o que Bush faz, ao seu contento. Resta a você, caro leitor, se posicionar nesta guerra. Só, por favor, atente a três coisas: não negue o óbvio, não venha armado e lembre-se que este é um mundo maravilhoso. Bang, bang, bang...

Legenda para as fotos

Foto 1
Moore conversa com um membro de uma guerilha que defende o porte de armas dizendo que 

todos os norte-americanos deveriam se cuidar sozinhos, armados. "Está na Constituição", alega.

Foto 2

Matt Stone, um dos criadores de 'South Park', morou em Littleton, 
cidade onde está localziada a Columbine High School. 

Na conversa, Stone culpa a pressão social como deformador do caráter dos jovens da cidade.

Foto 3

Em uma das várias cenas hilárias do filme, Moore, depois de uma conversa em que fica sabendo que 
os canadenses não trancam a porta de suas casas, mesmo quando as deixam sozinhas, 

sai para verificar em um bairro se a história é verdadeira. Na terceira (ou quarta) cada que encontra 

a porta aberta, é recebido por um senhor com uma caminha "I Love NY"...

Foto 4

James Nichols, irmão de um dos responsáveis pelo atentado em Oklahoma, diz a Moore que 
desconhece a doutrina de Gandhi, prova ao diretor que dorme com uma arma 

calibre 44 carregada debaixo do travesseiro e, por fim, comenta que as pessoas 

deveriam ter plutônio em casa para se defender, afinal "tem cada louco nesse mundo"...

"Tiros em Columbine"
"Bush de Sinais Trocados"

por Ricardo Calil
Publicado no site No Minimo

16/05/2003

Na época do último Oscar, o documentarista norte-americano Michael Moore foi saudado como um herói anti-Bush. Com o famoso discurso contra a guerra no Iraque que deu ao receber o prêmio de melhor documentário por Tiros em Columbine, ele lavou a alma de muita gente que pensava as mesmas coisas, mas não poderia dizê-las ao vivo para 1 bilhão de pessoas.

Agora, com a estréia de Tiros em Columbine no Brasil, será possível perceber que Moore não é exatamente o anti-Bush, mas sim o Bush com sinais trocados. É como se o presidente de direita se olhasse no espelho e visse refletido o cineasta de esquerda. Por mais opostas que sejam suas visões de mundo, eles têm mais em comum do que gostariam a começar pela maneira como apresentam suas idéias.

Tanto o presidente quanto o cineasta são capazes de manipular a verdade, sentimentalizar o discurso e simplificar a realidade para defender suas posições. Além disso, os dois exploram exaustivamente a imagem do americano médio (ao ser perguntado por que fez o discurso no Oscar, Moore respondeu: "Eu sou um americano").

A tese central de Tiros em Columbine - a de que a cultura do medo levou a sociedade americana a uma obsessão com armas e transformou-a em uma das mais violentas do mundo - provavelmente é verdadeira. Mas, mesmo que se concorde com o filme, é difícil sair do cinema sem se sentir ligeiramente ludibriado.

Tiros em Columbine começa com Moore - que também é o ator principal de seus documentários - abrindo uma conta em um banco de Michigan que dá como brinde uma arma ao cliente. No filme, o diretor entra na agência para abrir a conta e sai de lá com um rifle na mão. Na vida real, porém, o cliente se cadastra e o banco checa seu histórico; se for aprovado, ele pode retirar a arma em uma loja especializada depois de alguns dias.

Moore também faz uma relação entre a tragédia de Littleton - em que dois alunos da Columbine High School mataram 14 colegas e professores - e o fato de que há uma fábrica de armas de destruição de massa na mesma cidade. A companhia apontada realmente fabrica armas em outros lugares, mas em Littleton ela produz apenas lançadores de satélite.

O próprio título original do filme - Bowling for Columbine" (Jogando Boliche para Columbine) - parte de um episódio distorcido por Moore. Para ironizar a idéia de que uma música de Marilyn Manson havia inspirado os estudantes assassinos, o cineasta sugere que o jogo de boliche era o verdadeiro responsável pela tragédia, já que eles tiveram aula desse "esporte" na manhã do atentado. Mas naquele dia específico os dois haviam cabulado a aula.

Esses e outros deslizes foram publicados pela revista Forbes e circulam pela internet há algum tempo. A publicação é conservadora, mas o cineasta não a desmentiu. Nada diminui o absurdo da idéia de distribuir armas como brinde ou de apontar artistas como responsáveis pela violência. Mas a obrigação do documentarista é com a verdade - por mais abstrato que o conceito seja. Se ele reencena a realidade, vira filme de ficção. = Mesmo que os espectadores não saibam desses fatos de bastidores, não será difícil perceber como Moore manipula a verdade. É só reparar como, em vários momentos do filme, ele termina a frase dos entrevistados.

Tão reprovável quanto essa manipulação é a auto-promoção que Moore faz ao longo do filme. Nada contra o recurso de aparecer como protagonista, mas ele também não precisava se apresentar como herói. O cineasta faz isso ostensivamente em pelo menos dois momentos.

No primeiro deles, Moore leva dois estudantes de Columbine atingidos por tiros à loja da rede K-Mart onde os assassinos compraram as balas. Como resultado da ação, a empresa anuncia que deixará de vender armas e munição em suas 2.300 lojas. É uma vitória dos dois meninos e de todas as vítimas desse tipo de violência. No filme, parece uma vitória pessoal de Moore. Em outro momento, o cineasta entrevista uma professora de outra escola onde uma aluna foi morta por um colega de menos de 10 anos. A professora se emociona com a lembrança, começa a chorar e é consolada por Moore.

Nessas duas ocasiões, seria mais nobre que o diretor saísse de cena e se concentrasse na reação dos entrevistados. Em vez disso, ele se aproveita para reforçar duas de suas personas preferidas: Michael Moore, o defensor dos oprimidos contra as grandes corporações; e Michael Moore, o cineasta humano preocupado com os dramas individuais.

Há ainda outras passagens constrangedoras, seja pelo abuso do clichê - o filme mostra crimes políticos bancados pelos EUA no mundo ao som de What a Wonderful World -, seja pelo sentimentalismo barato - Moore deixa a foto de uma vítima de Columbine na porta da casa do ator Charlon Heston, presidente da National Riffle Association, principal lobista das indústrias de armas americanas.

Tiros em Columbine pode ser entendido como cinema de guerrilha, em que vale tudo para chegar ao objetivo final. Esse sempre foi o estilo de Moore em seus livros, documentários e programas de televisão. Em um episódio da série The Awful Truth, por exemplo, ele viajou pelos estados americanos mais conservadores em uma carreta vermelha, com a foice e o martelo estampados nas laterais (o veículo acabou sendo incendiado). Não dá para negar que as táticas de Moore sejam divertidas e eficientes. Mas seus descuidos com a verdade minam boa parte de sua credibilidade. Isso não significa que a obra do cineasta não mereça ser conhecida. As questões levantadas em Tiros por Columbine são fundamentais para entender o que se passa hoje nos EUA e no mundo, e é raro encontrar um americano com uma visão tão crítica sobre sua sociedade. Mas é bom ir prevenido: Moore quer conseguir a adesão do público sem estimular a reflexão. Aliás, exatamente como faz Bush.

Um adendo

Moore pode não ser o anti-Bush, mas Tiros por Columbine certamente é o anti-Nelson Freire. Se você busca no cinema a sutileza que falta ao diretor americano, então vá ver o documentário de João Moreira Salles sobre o pianista brasileiro. É uma aula de ética aplicada ao documentário. O dado triste é que alguns críticos atacaram o filme por não espetacularizar a vida de Freire. Acostumados a Caras e Big Brother, eles certamente irão adorar Tiros por Columbine.