Cidade
dos Sonhos
por
Marcelo Costa 24/05/2002
Oscar
2002. Whoopi Goldberg apresentava a cerimônia e ia encaixando
aqui e ali suas piadinhas. Numa dessas, Goldberg solta: "Eu entendo
tudo! A única coisa que eu não consegui entender
foi Mulholland Drive. Era para entender?", risos gerais
da platéia. A pergunta em questão era direcionada
para David Lynch, responsável pelo filme e, ali, concorrendo
ao Oscar de melhor diretor.
David Lynch é, com toda certeza, o diretor mais estranho
a andar pelos estúdios de Hollywood. Lynch tem fascínio
por histórias que beiram o bizarro, mas, vez por outra,
esbarra no cinema humanista (História
Real), no tocante (O Homem Elefante) e no suspense
(o primoroso Veludo Azul e a série Twin Peaks).
Mulholland Drive, seu novo longa (no Brasil, Cidade
dos Sonhos) é uma mistura de tudo isso. É cinema
humanista (quer coisa mais humana que filmar o amor?), tocante
(Crying, imortalizada na voz do destruidor de corações
Roy Orbison, ganha uma dolorida versão em espanhol) e suspense
dos bons. Tudo isso batido no liquidificador e jogado na tela
sem ordem aparente, com várias pequenas dicas que, ao final,
parecem não levar a nada, beirando o estranho e abrindo
margens para mil e um entendimentos.
Resumo?
Hummm, o próprio Lynch diz que é uma história
de amor na cidade dos sonhos. Mas, verifico, amor e sonho se
confundem a todo o momento, principalmente na cabeça
dos apaixonados. Não é sempre assim?
Cidade dos Sonhos começa com um acidente na auto-estrada
(uma estrada perdida?) que Michael Stipe canta em Electrolite,
faixa derradeira de New Adventures in Hi-fi, do R.E.M.:
a Mulholland Drive.
O violento acidente de carro, por mais bizarro que pareça,
salva a vida de uma garota (a bela Laura Harring), morena, linda,
que se perde pelas ruas da cidade até encontrar uma casa,
para dormir. O acidente afeta a memória da garota que,
simplesmente não lembra quem é e nem porque carrega
uma pequena fortuna dentro da bolsa. Para não parecer
maluca, ela decide se assumir o nome de Rita (após ver
um pôster de Gilda com Rita Hayworth na parede).
E é assim que ela se apresenta a Betty (Naomi Watts),
sobrinha da dona da casa que foi invadida por Rita, em sua busca
por um lugar para descansar após o acidente. Betty acaba
de chegar a Los Angeles, a Cidade dos Sonhos, e chega com todos
os sonhos que levam aspirantes a atrizes à capital do
cinema mundial.
Betty
acaba tornando-se amiga de Rita e procura auxiliá-la
em sua busca pela memória perdida. Tudo nos trilhos até
aqui, certo? Possivelmente errado. Toda primeira hora da trama
surge, aparentemente, como um sonho. Na hora final, após
sermos apresentados a um diretor de cinema em fase de testes
para seu novo filme e que se vê obrigado, pela máfia,
a ceder o papel principal para um atriz indicada pelos mafiosos,
a um cowboy e uma misteriosa caixinha azul, a um restaurante
e cinzeiros, anões, monstros, copos e um teatro chamado
"Silêncio" (em espanhol mesmo), tudo parece inversamente
o que era, em uma obra que traduz a dualidade confundível
do real/irreal (aqui, amparada na beleza de duas mulheres: uma
loira e uma morena).
Lynch brinca com o espectador. A memória acostumada a
preencher vácuos de uma história de suspense perde-se
totalmente na riqueza de detalhes que, por vezes, parece não
significar nada. Alguns, todavia, se sobressaltam. O principal
é seu título: Mulholland Drive, a tal auto-estrada
que nomeia o filme, é zona residencial de astros de Hollywood
tanto quanto zona de suicidas, de gente que sonhou alto demais
com a fama e o sonho tornou-se pesadelo.
Michael
Stipe canta em Electrolite, na primeira estrofe do refrão:
"Se você quiser voar/ Mulholland Drive / eu estou vivo
/ com Hollywood abaixo de mim / eu sou Martin Sheen / sou Steve
McQueen / sou James Dean". A segunda estrofe é ainda
mais esclarecedora sobre a estrada: "Se você quiser voar
/ Mulholland Drive / suspensa no céu / vá à
beirada do despenhadeiro e olhe lá para baixo / não
tenha medo / você está vivo." Suicidas não
tem medo, talvez apenas da vida após a morte, mas e se
aos mortos for concedido o prazer dos sonhos?
Seguindo
essa ótica (das várias possíveis), Lynch
aproxima-se de Billy Wilder e
seu Sunset Boulevard (Crepúsculo dos Deuses -
1950) na tentativa de desmistificar a idolatria hollywoodiana.
E se no filme de Wilder o personagem relembrava histórias
após a morte, aqui Lynch vai além permitindo que
seu personagem, morto, sonhe. Genialidade absurda. Real ou irreal?
Cada um escolhe como quer lembrar das coisas, isso é
inevitável.
A
estrada é objeto de culto e análise de muitos:
Nabukov já escreveu em um poema que "por baixo de Mulholland
há corpos enterrados" enquanto o ensaísta David
Thomson dizia que quem trafega na estrada, que tem de um lado
as montanhas de Santa Mônica e, de outro, permite avistar-se
o Hollywood Bowl, as letras HOLLYWOOD e, olhando para baixo,
os arranha-céus da Baixa LA, ou é aventureiro
ou é suicida. Um território real/irreal onde convivem
vivos em suas mansões (o próprio Michael Stipe
e Courtney Love, Marlon Brando, Jack Nicholson, entre outros)
e mortos em suas histórias (foi lá que Charles
Manson abrigou sua seita e que vários artistas optaram
pela saída suicida).
Se
encararmos o filme como um retrato de dualidades (morena x loiras
– irreal x real – sonhos x pesadelos – lógica x imaginação)
e dividirmos o filme em dois - em sonho e realidade - podemos
perceber que a loira, Betty, sorri apenas no primeiro (sonho)
e no segundo é apenas uma sombra escura masturbando-se
entre lágrimas. Rita, por sua vez, é conduzida
na primeira parte em que, sem memória, apóia-se
inocentemente em Betty (outra vez o sonho). Na segunda, quando
tudo parece voltar ao real, Rita - que já não
é mais Rita, encharca seu personagem de libido e um q
de arrogância passando a conduzir Betty. O amor impossível
brindado em copos de vinho a beira de uma piscina em uma mansão
acima da estrada.
David Lynch levou o prêmio pela direção
em Cannes e foi indicado também ao Globo de Ouro e ao
Oscar. No Globo de Ouro, Cidade dos Sonhos ainda foi
indicado para roteiro, filme drama e melhor trilha sonora.
Lírico até não poder mais, num apoio cinematográfico
de duas belas mulheres se amando (aliás, apenas uma delas
diz "eu amo você". A recíproca não surge),
Lynch preenche com confusões/perversões sua obra.
O resultado é esquizofrênico, enigmático,
surpreendente e... genial?!?! A certa altura da trama, um dos
personagens diz: "É tudo ilusão". Mas ninguém
vai entender nada. E é para se entender?
Dez
dicas para se entender "Mulholland Drive"
por
David Lynch
Em
um texto especial para o jornal inglês The Guardian,
o diretor David Lynch, também autor do roteiro, elaborou
dez pistas sobre Cidade dos Sonhos. Anote num papel,
decore direitinho e divirta-se.
1) No começo do filme, antes dos créditos, duas
pistas são reveladas.
2) Fique atento para o que está escrito no luminoso vermelho.
3) Qual o título do filme, para qual o personagem Adam
Kesher está realizando teste de elenco? Ele será
mencionado mais uma vez durante CIDADE DOS SONHOS?
4) O acidente é um importante acontecimento em CIDADE
DOS SONHOS. Onde ele acontece?
5) Quem entrega a chave azul e porque?
6) Fique atento para o roupão, o cinzeiro e a caneca
de café.
7) Qual mistério é revelado no palco do "Club
Silencio"?
8) Somente o talento de Camilla pode ajudá-la?
9) Fique atento para o objeto que está nas mãos
do estranho homem que vive perto da lanchonete "Winkie"!
10) Onde está tia Ruth?
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