texto de Renan Guerra
A cultura ballroom se desenvolveu nos Estados Unidos com diferentes ramificações durante o século XX, porém com um demarcador comum: ser um espaço de congregação LGBTQIA+, especialmente pessoas negras e latinas em comunidades marginalizadas de grandes cidades como Nova York, Washington e Chicago. Esse universo cheio de regras, complexidades e nuances é flagrado de forma singular em “Paris is Burning” (1990), documentário de Jennie Livingston que hoje é tema de diferentes debates, mas que ainda segue como registro histórico fundamental e um dos mais interessantes documentários da década de 90.
Após o filme de Livingston, o ballroom tateou o mainstream a partir da figura de Madonna, que levou o vogue, dança fundamental de determinadas frentes do ballroom, para o universo pop, num movimento que, ao mesmo tempo em que expandiu esse universo, também ajudou a apagar muitas das figuras centrais que construíram essa história. Com as facilidades de conexão atuais, a cultura ballroom se transformou em uma possibilidade de espaço criativo e fervilhante para pessoas LGBTQIA+ nas mais diferentes metrópoles ao redor do mundo, tanto que ganhou suas próprias cenas em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. E é no estado fluminense que se situa “Salão de Baile / This is Ballroom” (2024), filme de Juru e Vitã que fez parte da programação da 48ª Mostra SP, e aparece também no 32º Festival MixBrasil (o filme estreia em circuito nacional 05/12).
Para registrar as movimentações da cena ballroom na capital fluminense e em cidades do entorno, as diretoras organizam um ballroom que uniram diferentes casas em Niterói, em uma batalha que será registrada e que ajudará a compor a espinha dorsal de seu filme – em paralelo acompanharemos diferentes histórias e narrativas dessas personagens que compõem as múltiplas casas. Para não iniciados, as casas (chamadas de “house”) são agrupamentos de pessoas que frequentam o universo ballroom e que se auxiliam de forma mútua; originalmente, essas casas nasceram da experiência de pessoas trans que acolhiam em suas casas jovens LGBTQIA+ que eram expulsos de seus círculos familiares e colocados em situação de rua ou de marginalidade. As donas dessas casas se tornaram as “mothers” – e aqui é importante frisar que, apesar de muitas adaptações, a cultura ballroom brasileira ainda se utiliza de muitos nomes/nomenclaturas advindos da língua inglesa. O registro de “Salão de Baile” capta as experiências das pessoas que vivem nessas estruturas coletivas, mas também abre espaço para a narrativa de pessoas que embarcam no universo ballroom de forma solo.
Logo de cara, o que salta aos olhos no filme de Juru e Vitã é que há uma preocupação estética que sustenta toda o mise-en-scène, dando um brilho e uma potência para essas narrativas. A direção não tem medo de reencenar e construir cenas e nem de esteticar momentos, para que a plasticidade salte aos olhos do espectador – isso é uma escolha narrativa e que se justifica quando pensamos que estamos falando de um universo em que o glamour, o brilho e a opulência se colocam como norma. Por isso, se as entrevistas e narrativas pessoais são filmadas com naturalismo, as performances e as reencenações históricas são construídas buscando uma estetização quase kitsch, sem medo do exagero e do despudoramento. Isso coloca “Salão de Baile” em uma outra categoria, não temos aqui um documentário exploratório sobre essas figuras, mas sim um filme que celebra essas histórias e narrativas, em um registro de afirmação, mas que ainda assim se coloca no mesmo nível dessas personagens, sem julgá-las ou categorizá-las.
Neste cenário, a câmera filma personagens diversas, que não escondem suas complexidades, suas falhas e suas nuances. Isso gera um documentário vivo, pulsante, que apresenta tensões, medos, desejos e dúvidas de personagens que estão em jornadas pessoais complexas e que estão, ao seu modo, descobrindo e navegando possibilidades de construção de suas próprias identidades. E é muito rico como “Salão de Baile” consegue captar a importância da cultura ballroom nessas jornadas. Pode haver brigas, tensões e picuinhas, mas nada disso desfaz a potencialidade daquele espaço para essas pessoas. Se para uns, os encontros da ballroom são como possibilidades glamourosas de autoafirmação, para outros se apresentam como espaço místico e para muitos soa como espaço de libertação e cura, tanto que uma das personagens não se acanha em chamar a ballroom de sua “UPA”, tal qual o serviço de atendimento de saúde pública.
O interessante de “Salão de Baile” é que ele até olha para as referências internacionais, não as negando, mas opta por uma narrativa que apresenta os impactos da cultura brasileira dentro desse movimento. A importância do funk e dos ritmos nacionais é extremamente celebrada, com a apresentação de categorias de ballroom especialmente voltadas para os ritmos e movimentos nacionais. De todo modo, destacamos aqui a correlação que o filme faz entre o espaço da ballroom e as conexões espirituais provocadas pelas religiões de matriz afro – vale reforçar que em sua essência, a ballroom é uma cultura nascida a partir de pessoas negras e latinas, de mulheres trans pretas, que trazem em sua história todas essas nuances. É muito natural que ao chegar no Brasil, essa cultura se embrenhe nessas outras referências e potencialidades que formam as identidades dissidentes no país. E é extremamente interessante como eles conseguem filmar ritos religiosos com a mesma beleza e grandiosidade que filmam as performances e danças da ballroom.
Juru e Vitã conseguem desenhar um filme que pulsa vida. Mesmo nos momentos em que o documentário apresenta as nuances da violência e da morte, o filme ainda consegue apontar um tom de reverberação em torno de todas as vidas daquelas pessoas que ajudaram a construir a história ali narrada – e aqui vale relembrarmos que a média de vida de uma pessoa trans no Brasil é de 35 anos, por isso e, para além disso, essas vidas precisam ser celebradas! Num cenário de marginalidade, de violência e de não-aceitação, “Salão de Baile” constrói uma narrativa de coletividade, de humanidade e de pulsante vitalidade, é lindo demais ver toda a sinceridade dessas personagens transbordar pela tela, nos lembrando que somos cheios de falhas, mas que ainda assim “gente é muito bom / […] / gente nasceu pra ser feliz / […] / gente nasceu pra brilhar”!
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– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.