entrevista de Chico Castro Jr.
Nos estertores de 2017, mais precisamente na manhã do dia 18 de dezembro, uma notícia triste caiu como uma bomba no meio musical baiano: o músico Álvaro Assmar estava morto, vitimado por um enfarte fulminante, aos 59 anos. Sete anos depois, sua vida e suas realizações são lembradas e celebradas no livro “Álvaro Assmar – Uma Vida Blues”, escrito pelo jornalista, crítico de cinema, beatlemaníaco e colaborador do jornal A Tarde e do Scream & Yell, João Paulo Barreto.
O que ninguém sabia naquela época é que João Paulo já estava há tempos em contato com Álvaro, articulando sua biografia. Infelizmente, não houve tempo para Álvaro ver o projeto se concretizar. “A ideia de escrever a biografia dele surgiu de uma entrevista que fiz com seu filho, Eric Assmar, em 2016, para o site Scream & Yell. O papo foi gravado na casa do próprio Álvaro”, conta João Paulo.
“Ao terminar a conversa, comentei com Álvaro que gostaria de marcar uma entrevista nos mesmos moldes com ele. No entanto, seu disco mais recente, até então, “Old Road”, havia saído dois anos antes, em 2014. Por isso, não havia uma pauta específica de um lançamento de um trabalho dele”, acrescenta.
A vontade de entrevistar o veterano guitarrista, no entanto, persistiu. JP já era fã de pai e filho desde os anos 2000: “Ao sair da casa de Álvaro com aquele pensamento de fazer uma entrevista com ele tão longa, prazerosa e proveitosa quanto a que havia feito com Eric, cheguei a conclusão que a vida do guitarrista de, até então, 58 anos, renderia algo mais. E o fato do aniversário de 60 anos de Álvaro se aproximar (faltava menos de dois anos para março de 2018) seria um gancho ideal para a comemoração com um livro”.
Alguns meses se passaram, até que um dia Álvaro atendeu uma ligação de João no celular. O jornalista lhe apresentou o projeto para o livro ‘Álvaro Assmar – 60 Anos de Blues’, contando sua história até então. “Será uma honra, campeão”, respondeu Álvaro, aquele vozeirão de radialista experimentado que ele foi, ribombando no telefone.
“Ao menos quarenta horas de entrevistas foram captadas com Álvaro entre novembro de 2016 e outubro de 2017. A ideia era lançar o livro em março de 2018. À medida que ia realizando as entrevistas com Álvaro, captando a história de sua vida de modo cronológico, abordando suas experiências como radialista, as bandas em que tocou, seu primeiro contato com os Beatles ainda na década de 1960, ia, também, entrevistando outros nomes que fizeram parte dessa trajetória”, relata João.
O biografado chegou a ler seis capítulos prontos antes de partir. Após sua partida, João deu uma pausa no projeto. Meses se passaram até que João, agora em parceria com Eric, que ia lhe indicando outras fontes, retomasse o projeto. “Percebi que tinha um tesouro em mãos. Eu era o último jornalista com quem ele havia conversado. Tinha sua voz gravada em um material único. Receoso de perder todo aquele tesouro, fiz vários backups, guardando as entrevistas originais em vários HDs diferentes e na nuvem”, conta.
Quado veio a pandemia, o trabalho voltou a atrasar, já que só poderia colher novos depoimentos de forma virtual. “Em paralelo a isso, precisava levar pra frente meus trabalhos como jornalista, tradutor e curador. Por isso, a demanda de escrita do livro, agora rebatizado de ‘Uma Vida Blues’, se tornou mais lenta. Mas confesso que, durante aqueles anos pandêmicos, repletos de angústia e confinamento, era acalentador levar essa escrita para a frente”, relata.
Filho de uma imigrante libanesa (daí o sobrenome Assmar) com um professor de matemática, Álvaro se interessou por música logo cedo, e evidentemente, os Beatles tiveram um grande papel nesse seu despertar musical. No livro, João resgata diversas histórias da sua infância e adolescência. Uma em especial é bem saborosa, e dá conta da primeira vez que Álvaro tocou em uma guitarra, durante uma festinha de aniversário.
Um menino mais velho, dono da guitarra, negou ao futuro guitar hero, então com apenas oito anos, tirar uma palhinha. Quando todos foram à sala bater parabéns, o menino Álvaro correu para o quarto onde a guitarra havia sido deixada e começou a tocar o riff de “Day Tripper”, dos Beatles. Ao ouvir som, os outros meninos correram de volta ao quarto e ficaram embasbacados com o que (ou)viram: “O moleque sabe tocar mesmo”, se admiraram. Eles não faziam ideia.
Daí em diante, Álvaro não parou mais. Ao longo do livro, JP vai remontando sua história, intercalando seus depoimentos com os de outras pessoas, como os membros das bandas Cabo de Guerra, Mar Revolto (dois dos quais tocaram com ele na pioneira banda Blues Anônimo), produtores, radialistas, jornalistas e até a ministra Margareth Menezes, que cantou em uma faixa de “Standards” (1995), seu álbum solo de estreia.
Para além da belíssima produção musical deixada por Álvaro, outras duas facetas do biografado são bem exploradas no livro: a de produtor de eventos e a de radialista. “Ao passar por várias estações, Álvaro tinha um manancial de histórias. Desde seu começo na Rádio Piatã e o programa Em Tempo de Jazz, que atraiu anunciantes como o histórico Bar Vagão e a loja Sandiz, passando pela Bandeirantes, A Tarde FM e duas passagens pela Educadora, era perceptível que o livro registraria não somente a vida de Álvaro, mas, também uma parte importante da história das rádios FM na Bahia”, observa João.
“Álvaro lutou muito para se firmar nos palcos baianos, em uma época que gravar discos era algo bem mais difícil. E nesse intuito, o cara foi o responsável por tirar o blues do barzinho e colocá-lo no palco de grandes teatros. Foi o cara que trouxe para Salvador nomes pilares do estilo para tocar junto com ele no [projeto] Wednesday Blues. Não é pouca coisa” afirma João.
Abarrotada de histórias, a biografia de Álvaro Assmar é um belíssimo trabalho sobre um artista ímpar na música baiana, e uma leitura muito agradável. Vale conhecer. No papo abaixo, João Paulo conversou com Chico Castro Jr. sobre “Álvaro Assmar – Uma Vida Blues” (que pode ser adquirido on-line na loja Aqualung Records, na Galeria do Rock, em São Paulo, ou direto com JP no Facebook!)
O que te levou a se tornar biógrafo de Álvaro Assmar? Como chegou a ouvi-lo e se interessar por sua história?
A ideia de escrever a biografia de Álvaro Assmar surgiu de uma entrevista que fiz com seu filho, Eric Assmar, em 2016, para o site Scream & Yell. O papo foi gravado na casa do próprio Álvaro, no bairro do Boulevard Suíço. À época, ele lançava seu segundo disco, “Morning”. Na matéria, resolvi abordar não somente o lançamento, mas, também, o álbum homônimo e de estreia da Eric Assmar Trio, que havia saído em 2012. Assim, o papo com Eric seguiu por uma linha quase biográfica, de conversar sobre seu processo criativo e sobre sua vida pessoal e profissional. Tanto que rendeu muitas páginas. Ao terminar a conversa, comentei com Álvaro que gostaria de marcar uma entrevista nos mesmos moldes com ele. No entanto, seu disco mais recente, até então, “Old Road”, havia saído dois anos antes, em 2014. Por isso, não havia uma pauta específica de um lançamento de um trabalho dele que pudesse levar a uma pauta. Mas aquela vontade de conversar com o veterano guitarrista me deixou com uma pulga atrás da orelha.
Comecei a acompanhar Álvaro e Eric lá pelos idos de 2008, quando, ainda na faculdade, fiz uma matéria para uma atividade curricular em que entrevistei a Cavern Beatles, banda na qual Eric tocava. Álvaro já era um gigante. Naquela fase, cheguei a vê-lo no projeto Música no Parque e sua presença era magnética para os olhares e ouvidos atentos. Como jornalista, para além do cinema, meu campo de atuação, queria ter meu nome vinculado àqueles heróis da guitarra baianos. Ao sair da casa de Álvaro com aquele pensamento de fazer uma entrevista com ele tão longa, prazerosa e proveitosa quanto a que havia feito com Eric, cheguei a conclusão que a vida do guitarrista de, até então, 58 anos, renderia algo mais do que isso. E o fato do aniversário de 60 anos de Álvaro se aproximar (faltava menos de dois anos para março de 2018) seria um gancho ideal para a comemoração com um livro. Passaram alguns meses desde aquela visita quando procurei por Álvaro para lhe apresentar a ideia do livro “Álvaro Assmar – 60 Anos de Blues”, no qual pretendia contar sua trajetória até aquele momento. Com a voz grave ao telefone, ele disse: “Será uma honra, campeão”.
Você começou a pesquisa para o livro com Álvaro ainda vivo, o que te levou a gravar muitas horas de depoimento dele (quantas?). Qual era o plano original e como foi adaptá-lo após sua partida inesperada?
Ao menos quarenta horas de entrevistas foram captadas com Álvaro entre novembro de 2016 e outubro de 2017. A ideia era lançar o livro em março de 2018. À medida que ia realizando as entrevistas com Álvaro, captando a história de sua vida de modo cronológico, lhe perguntando sobre suas experiências como radialista, as bandas nas quais tocou, seu primeiro contato com a música dos Beatles ainda na década de 1960, ia, também, entrevistando outros nomes que fizeram parte dessa trajetória. A ideia era criar um equilíbrio de fontes em um livro-reportagem, na qual as falas de Álvaro eram justapostas às das pessoas que passaram por sua vida pessoal e carreira musical, bem como radiofônica. Nesse ritmo, já fui escrevendo os capítulos e passando para a leitura de Álvaro, que, até seu súbito falecimento, chegou a ler seis capítulos.
Com sua morte em dezembro de 2017, quatro meses antes de seu aniversário de 60 anos, foi necessária uma pausa para entender o que tinha acontecido. Percebi que tinha um tesouro em mãos. Eu era o último jornalista com quem ele havia conversado. Tinha sua voz gravada em um material único. Receoso de perder todo aquele tesouro, fiz vários backups, guardando as entrevistas originais em vários HDs diferentes, bem como na nuvem. Somente em 2018, meses após sua partida, que me sentei com Eric Assmar para discutir os rumos que o livro iria tomar. Ele passou a me indicar as fontes, e eu fui realizando as entrevistas e o trabalho braçal de transcrição. Quando 2020 chegou e, com ele, a pandemia, o processo passou a ser mais difícil, uma vez que as conversas passaram a ser 100% virtuais. Em paralelo a isso, precisava levar pra frente meus trabalhos como jornalista, tradutor e curador. Por isso, a demanda de escrita do livro, agora rebatizado de “Uma Vida Blues”, se tornou mais lenta. Mas confesso que, durante aqueles anos pandêmicos, repletos de angústia e confinamento, era acalentador levar essa escrita para a frente.
Margareth Menezes no estúdio com Álvaro Assmar em 1994
Como conseguiu viabilizar o livro? Como foi a campanha no Catarse? Foi difícil ou a meta foi alcançada sem dificuldade? Há planos para lançá-lo em outras praças?
Eu e Eric Assmar juntamos força nesse processo. Mas, sem ele, não teria sido possível, uma vez que boa parte do capital partiu dele. Através de seus contatos, conseguimos uma parceria com a Bahiagás, que entrou com uma cota de patrocínio. Além disso, fizemos uma campanha de financiamento coletivo no Catarse que, apesar de não ter alcançado sua meta, gerou um valor que ajudou a pagar parte da impressão. Em uma outra matéria que escrevi para o Scream & Yell, no caso sobre o livro escrito por Nestor Mendes Jr. sobre o Esporte Clube Bahia, conheci o exímio designer gráfico Alan Maia, da A.M. Comunica. Fiz o convite a ele para participar do projeto, criando a diagramação de toda a obra. Sem a expertise de Alan, também, não teríamos conseguido. Foi uma conjunção de fatores que me fez ter as pessoas certas ao meu lado para finalizar todo o processo, uma vez que após a escrita, seria necessário selecionar fotos, trabalhar o desenho gráfico do projeto para, finalmente, tê-lo pronto. Sobre os planos de levar o livro para outras praças, temos planejado vendê-lo, inicialmente, nos shows que Eric Assmar fará em outros estados. Por ser um projeto independente, sem editora por trás, tampouco dinheiro de edital público, as dificuldades são muitas, mas acho que será possível, sim, esgotar os exemplares com as vendas.
Seu livro é também um pedaço da história das rádios FM na Bahia, que é muito pouco documentada e contada, salvo engano meu. Como foi mergulhar também nesse mundo radiofônico e descobrir tanta informação esquecida?
Sim. Por ter sido um dos principais nomes do rádio em Salvador, passando por várias estações, Álvaro trazia um manancial de histórias. Desde seu começo na Rádio Piatã e o programa Em Tempo de Jazz, que conseguiu atrair anunciantes como o histórico Bar do Vagão e a loja Sandiz, passando pela Rádio Bandeirantes, Rádio A TARDE e as duas passagens pela Rádio Educadora, era perceptível para mim que o livro, naquele momento, ganharia um tom de documento que registraria não somente a vida de Álvaro Assmar, mas, também uma parte importante da indústria radiofônica baiana.
Como você vê o reconhecimento à Álvaro na Bahia e no Brasil, considerando que ele foi um músico de um estilo razoavelmente de nicho, que é o blues no Brasil?
Lembro-me de Álvaro falando sobre a ideia de ser uma pessoa que nasceu na Bahia por acidente. Mas, ao ouvi-lo dizer isso, eu replicava dizendo que talvez tenha sido exatamente isso que fez a diferença para o destaque que ele teve como músico de Blues. Claro que, se tivesse nascido em São Paulo, possivelmente sua carreira se apresentaria com mais oportunidades de shows e visibilidade. Mas, estando na Bahia, ele era um dos únicos a trabalhar esse estilo de forma tão exímia. E sua presença não passou despercebida aqui. “Ouvi dizer que o Mississippi um dia desaguou na Bahia… ” ele canta em “Pra Sempre em Minha Vida”, pérola contida no disco de 2006, “Blues à La Carte”. Na mesma música, ele frisa que “se houve pedras no caminho, nenhuma teve doze compassos”. Curioso pensar nesses trechos e em como eles desenham com precisão sua luta para se firmar como um músico do estilo em um estado como o nosso. Distante de qualquer romantismo aqui, afinal, os boletos chegam, friso que Álvaro lutou muito para se firmar nos palcos baianos, em uma época que gravar discos era algo bem mais difícil do que hoje em dia. E nesse intuito, o cara foi o responsável por tirar o Blues do barzinho e colocá-lo em um teatro. Foi o cara que trouxe para Salvador nomes pilares do estilo para tocar junto com ele no Wednesday Blues. Ou seja, não é pouca coisa. Hoje dia, quando muitas pessoas são “famosas” apenas por serem “famosas” ou por terem seguidores em redes sociais, ver alguém que deixa uma marca eterna nas artes surgir é algo que merece ser valorizado. Acho que uma coisa que vale ser frisada é o fato de “Álvaro Assmar – Uma Vida Blues” ser o único livro biográfico brasileiro com um escopo jornalístico, uma pesquisa ampla, sobre um artista específico do Blues. Eu e Eric buscamos outros nomes do Blues brasileiro que pudessem ter algum livro biográfico com entrevistas, pesquisa de campo, contrastes de falas entre várias pessoas ligadas a essa estrada bluesy, mas não há um material que se aproxime do que foi feito em termos de pesquisa para “Álvaro Assmar – Uma Vida Blues”. Existem livros sobre o movimento do Blues no Brasil, mas tendo um único personagem como centro, não existe. Ser este livro sobre o precursor do estilo na Bahia é algo que me alegra demais.
A história do show com o Johnny Winter é uma das muitas de bastidores que você traz no livro e o enriquecem bastante. Como foi cavoucar esse episódio quase esquecido e trazê-lo à tona?
Esse foi um momento que eu sabia que renderia muita conversa com Álvaro, bem como com Luiz Carlini e com André Christovam. Por isso, ansiava que o dia desse papo chegasse logo e pudesse falar com Álvaro sobre isso. Para ele, o convite para formar o trio e abrir o show de um dos seus ídolos foi um dos momentos mais importantes de sua vida. Johnny Winter já havia cancelado uma vinda ao Brasil anteriormente. Sua vinda naquele ano dependia de vários fatores, sendo que o principal era a metadona, medicação que ele tinha que tomar por conta da recuperação de um vício pregresso em heroína. Por isso, havia aspectos legais e burocráticos relacionados à sua medicação que exigiam que ele estivesse nos Estados Unidos para receber os remédios. Por isso, sua primeira vinda ao Brasil, em 2007, acabou por ser cancelada. Na segunda, em 2010, porém, não houve problemas nesse sentido. Foi o saudoso produtor Silvio Palmeira quem convidou Christovam e sugeriu a formação do trio para abrir o show de Johnny Winter no Rio e em São Paulo. Na entrevista com Regis Tadeu, ele me falou que sua impressão como espectador foi de que o trio de brasileiros foi uma atração melhor que Johnny Winter no palco, por conta da condição física já frágil do cantor estadunidense. Essa condição frágil, por exemplo, o fazia precisar de uma cadeira de rodas para se locomover nos bastidores, antes do show. Lembro de uma história que o Christovam me contou acerca de um imbróglio gerado na ocasião, uma vez que a produção de Winter implicou com a esposa de Carlini em relação a uma câmera que, supostamente, teria captado essa fragilidade de Winter. Enfim, após um momento acalorado, a questão foi resolvida entre os músicos e os produtores. Álvaro me falou sobre conhecer pessoalmente um dos seus maiores ídolos, sobre lhe presentear com um CD dele, sobre tirar uma foto com ele. Era perceptível essa emoção para o músico.
– Chico Castro Jr. é jornalista formado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Atualmente, editor do Caderno 2+ do jornal A Tarde, e responsável pelo blog Rock Loco.