Entrevista: “Faço música para viver, é uma necessidade básica pra mim”, diz LuizGA

entrevista de  Bruno Lisboa

LuizGA, que muito leitor do Scream & Yell pode conhecer também como Luiz Gabriel Lopes, tem vivido uma fase bastante especial: num curto espaço de tempo, ele gravou o álbum coletivo “O Destino do Clã” (2023), junto a Gustavito e Nanan, e também “AIÊ” (2024), esse último em parceria com o artista português Edgar Valente. E sua carreira solo continua movimentada: além de uma série de singles e remixes, LuizGA lançou dois EPs: “Presente” (2020) e “Real Cinema” (2024), ambos sob a chancela do selo Pequeno Imprevisto.

Seu mais recente trabalho, “Real Cinema”, é composto por cinco faixas produzidas de maneira inusitada: as bases de voz e violão foram gravadas ao vivo em um show de LuizGa no Teatro do IV Mundo, em São Paulo, em 2023. A partir dessa matéria prima, o artista e o produtor Otávio Carvalho foram adicionando sutis camadas extras ao material original para chegar ao que você ouve no EP. Liricamente, LuizGa segue dialogando com nossas tradições enquanto promove reflexões sobre o futuro.

Ex-Rosa Neon e Graveola, e passando boa parte dos últimos anos na Europa, LuizGA conversou conosco sobre as experiências de tocar para diferentes públicos (algo que, inclusive, ele contou recentemente em um texto especial para o Scream & Yell, passando pela complexa relação entre Brasil, África e Portugal, as parcerias com músicos como João Silva e o grupo indígena Kayatibu, além de explorar de forma mais profunda suas raízes e conexões com a ancestralidade e a natureza. Confira!

A última vez que estivemos juntos foi numa apresentação realizada em Belo Horizonte. Na ocasião, você estava em turnê de divulgação do disco “AIÊ” junto ao artista português Edgar Valente com qual você gravou o álbum. Finalizada essa jornada, como você avalia essa experiência?
Foi mesmo muito especial levar esse trabalho ao Brasil, que é o terreiro de onde brota a inspiração primordial de toda a pesquisa em torno deste álbum. Giramos também um bocado por Portugal e pela Europa, mas de fato fazer os shows no Brasil teve um significado diferente. Porque sim, há muito que pensar sobre os ecos políticos e estéticos dessa triangulação histórica (e traumática) entre Brasil, África e Portugal. Sinto que complexificar o caldo de referências desta cosmologia, atualizando suas manifestações com o olhar do nosso momento histórico, é uma espécie de responsabilidade incontornável da nossa geração. Porque é mesmo muito potente investigar a ferida colonial que unificou o destino destes povos e propor leituras criativas, transformar a memória através da poesia. Acho que este trabalho é um passo nessa direção e, certamente, terá desdobramentos futuros.

Você tem vivido uma fase prolífica em sua carreira nos últimos anos. A que se deve tamanha inspiração?
Acho que sempre fui uma pessoa com interesses muito diversos entre si, e isso também se reflete nos vários tipos de música que eu escuto, pesquiso e produzo. A escolha por trilhar esse caminho, de uma espécie de “liberdade radical” na arte, tem, portanto, um fundamento espiritual, na essência do que eu sou, ou do que tenho lentamente me tornado, ao longo do tempo. Claro que já percebi que esse excesso de diversidade às vezes é um pouco malcompreendido: pela imprensa, por parte do público… vez por outra recebo umas críticas tipo “você devia focar em uma coisa só…!”. Mas não sinto que tenha outra escolha, senão fazer o que ressoa interna e profundamente com meu espírito criativo, que sim, é bastante livre, às vezes contraditório, caótico. A guiança da poesia não é muito pedagógica, nem sempre é “instagramável”, mas é muito verdadeira e isso me satisfaz bastante. E bem mais do que inspiração, eu diria que é muito trabalho e dedicação. Amor pela parada mesmo. Os vários álbuns, projetos, parcerias, portanto, são fruto dessa inquietação genuína. Faço música para viver, é uma necessidade básica pra mim, e tento compartilhar com as pessoas da melhor forma, mas não desejo de fato ser guiado por assuntos que não os da arte.

Tempos atrás fiz uma entrevista contigo aqui no Scream e, na época, falamos sobre o fato de você ter saído do Brasil e ter se estabelecido em Portugal. De lá para cá, tenho visto que você tem estado em constante movimento, com diversas apresentações realizadas por toda à Europa. Como tem sido essa experiência de levar o seu repertório para os mais variados públicos?
Gosto muito e sou imensamente grato. Ainda mais pra mim, criado no interior de Minas Gerais, sem parentes importantes, etc, sinto que ter aberto a janela do mundão pelas mãos da música é uma bênção, um milagre mesmo. Venho de uma família onde a música sempre foi um assunto central, de pesquisa mesmo. Tenho tios que escreviam canções, todo mundo tocava e cantava um pouco, mas ninguém nunca gravou nada, ninguém se profissionalizou. Então é também um sentimento bonito isso, sabe? Quando penso nesse caminho cósmico, desde meus avós, semi-analfabetos do sertão do Ceará, até as pequenas extravagâncias dessa minha existência de artista independente, expandindo a visão de mundo, ampliando fronteiras, conhecendo tantos lugares e pessoas incríveis através do ofício de tocar e cantar minhas canções. É uma sensação maluca, de estar dando saltos quânticos na própria linhagem. E a música é de fato uma linguagem universal, muito generosa, que fala diretamente ao coração das pessoas, em qualquer lugar do mundo. Testemunhar isso, fluir nessa onda, é uma doideira, tem muitos desafios, claro, mas tem sido muito gratificante.

“Real Cinema”, o título de seu mais recente EP (ouça acima), me remete a famosa frase de Martin Scorsese na qual ele afirma que o “cinema absoluto” (absolutely cinema) é aquele que estabelece diálogo com a tradição, mas sabe apontar novos caminhos. De certa forma, penso que a sua carreira trilhe esse caminho, pois sua musicalidade vai ao encontro à tradição, mas suas letras nos remetem a reflexões profundas e apontam perspectivas de um futuro melhor. Dito isso, quais são as intenções para com o público você alimenta a partir do novo trabalho?
Sinto que esse trabalho tem uma atmosfera emocional forte, no repertório, na sonoridade, na forma de produzir. Também por ter essa coisa dos takes ao vivo, talvez de forma ainda mais pronunciada. É um grupo de canções que tem uma personalidade e uma temperatura digamos meio terapêutica, meio confessional, meio autobiográfica… a tal “universalidade da vulnerabilidade” que é a própria condição humana. Então não sei, mas acho que é uma continuidade natural de tudo o que eu tenho feito. Tem o melhor e o pior de mim aí, sem maquiagem. Aquele suco de verdade imperfeita, da experiência, do real, que a música sabe traduzir tão bem. Pra quem me acompanha há mais tempo, tenho percebido que existe um carinho especial por esse tipo de produção, que de alguma forma remete ao “velho LG Lopes do Youtube”, aquele alter-ego jovem de cabelo desgrenhado gravando videos com o photo-boot em lugares improváveis mundo afora. Tem um eco também com o “Presente”, EP de 2020, que é também um álbum todo acústico. Então é mais uma peça no quebra-cabeça da obra, é mais um passinho pra frente, que atualiza e propõe novos caminhos, claro, mas que tem os pés fincados na raiz de onde tudo começou.

“Real Cinema” é composto por faixas inéditas, mas há uma releitura para “Aprender a Perder”. A faixa já havia sido lançada no belíssimo “O Destino do Clã” (2023), trabalho gravado junto a Gustavito e Nanan. Por você decidiu revisitar a canção e qual o significado dela para você?
Essa música é muito especial e eu sentia que precisava entregar uma versão minha, além da versão do Clã, da qual também gosto muito, obviamente. Sempre que toco ela nos shows, percebo que ela bate num lugar muito profundo nas pessoas. Porque esse assunto é uma espécie de tabu mesmo, um tópico para o qual ninguém quer olhar muito, mas que é inevitável de confrontar no processo de envelhecer e amadurecer: a percepção da própria vulnerabilidade, o entendimento e a aceitação disso durante a vida. Porque também vejo que a internet cristalizou uma cultura de performar uma suposta invencibilidade, como se todo mundo fosse só a parte luminosa de si mesmo, a parte vencedora da própria vida. Mas isso claramente é só a superfície das coisas, a gente sabe que todo mundo experimenta dor, medo, amargura, todo mundo tem um lugar de fragilidade, todo mundo sofre com as próprias frustrações, e isso é um traço universal entre seres humanos. Daí falar disso, assumir pra si esse conflito, me parece uma coisa muito potente mesmo. Costumo dizer nos shows que essa canção é “dedicada a todos que estão com a terapia em dia”. É bonito ver como ressoa, a galera cantando “aprender a perder / aprender a perder”, como um mantra mesmo. É emocionante.

“Aprender a Perder” conta com a participação de João Silva, violinista e compositor português, que contribui em outras duas faixas. Como se deu a aproximação de vocês e quais contribuições ele trouxe para o resultado final?
Conheci o João num concerto que fiz com a Bárbara Rodrix, em Barcelona. Era um conhecido dela que ela convidou pra participar do show e, logo de cara, me identifiquei imensamente com a musicalidade dele. Uma sutileza bonita, uma elegância muito particular. Aquele tipo de músico que não dá nenhuma nota em vão, que tem a escuta muito ativa. Daí fiquei com vontade de me conectar mais com ele e foi, justamente, na altura em que estávamos trabalhando na pós-produção das faixas desse álbum. Acabou rolando de uma maneira muito fluida, e acho que trouxe uma força imensa pros arranjos.

O grupo indígena Kayatibu é outro convidado que participa do EP na faixa “Yame Awa Kawanay”. Como foi construída essa parceria?
Comecei a trabalhar com o Kayatibu em 2019, quando fui convidado a me juntar como educador num projeto de residência artística com jovens do povo Huni Kuin. Fomos pro Jordão, uma cidadezinha no coração da floresta, no estado do Acre, perto da fronteira com o Peru e estivemos imersos durante duas semanas nesse trabalho, um grande laboratório criativo com eles. Era um projeto financiado pelo Rumos do Itaú Cultural e resultou num disco chamado “Ni-Ishanai” (que significa “Floresta Futuro” em hatxa-kuin, a língua originária dos Huni Kuin) – está disponível nas plataformas e tem também um bonito video-álbum no Youtube (nota: que você pode assistir abaixo). Eu nunca tinha estado na floresta, e a conexão bateu muito forte. Fiquei tão apaixonado e instigado com a experiência que acabei voltando pro Acre mais umas tantas vezes nos anos seguintes, por conta própria, pra aprofundar o vínculo, o trabalho, a pesquisa com essa galera. Lentamente, vários desdobramentos foram acontecendo, a gente pegou uma amizade grande, uma aliança bem massa. Daí, pela força misteriosa das sincronicidades, eles estavam em São Paulo justamente na data desse show em que as bases do disco foram gravadas, e eu os convidei pra cantarmos juntos um dos cantos deles – essa canção, “Yame Awa Kawanay”, que é uma melodia original da Maxi Huni Kuin, uma jovem da aldeia Chico Curumim com quem trabalhamos desde a época da primeira residência. É um hit na aldeia, todo mundo ama essa música. Aí fizemos essa versão juntos no show e a gravação ficou muito bonita, e fui percebendo que era um capítulo importante de constar na cartografia. Acabou sendo a faixa perfeita pra fechar o álbum.

Não é de hoje que você tem procurado estabelecer conexões (artísticas e pessoais) com a ancestralidade, a interioridade e a natureza em si. Qual a importância de trazer à tona temas como estes na atualidade?
Acho que foi um caminho natural e inevitável pro desenvolvimento do meu trabalho artístico. Tem a ver com minha própria jornada pessoal no planeta, as coisas e energias que me movem, que me instigam e me inspiram. Não sei se consigo elaborar muito teoricamente, porque de fato nunca houve uma decisão consciente sobre isso. Mas faz parte de mim, é algo constitutivo da minha investigação na grande residência artística da vida, e fico feliz que possa ressoar e inspirar as pessoas que me escutam.

Em “Real Cinema” você optou por alternar o processo de gravação usufruindo e alternando os formatos ao vivo e em estúdio. Como se deu de fato a captação?
Eu estava finalizando uma temporada no Brasil e tinha dois shows em São Paulo, logo antes de voltar pra Portugal, num lugar pequenino e super aconchegante, o Teatro de Bolso do IV Mundo, que fica na Vila Romana. O Ota Carvalho, que é o diretor / produtor musical / meu parceiraço do selo Pequeno Imprevisto, levou o equipamento dele, e gravamos os dois dias de concerto, voz e violão, ao vivo. Depois, teve um tempo de decantação, pra ouvir tudo com calma e escolher os takes. Fui tentando entender quais canções tinham soado melhor na gravação, e a partir daí fui filtrando o recorte, até encontrar esse pequeno grupo de músicas, que sinto que tem um magnetismo estético particular entre si. Destes takes ao vivo, fomos fazendo algumas experiências, adicionando alguns pequenos elementos, algumas paisagens sonoras, alguns synths, os violinos do João… pequenas camadas que acabaram por somar de forma sutil, mas muito significativa pro resultado final.

Por fim, quais são os próximos passos e planos para o futuro?
Estou começando a lançar um EP novo, em parceria com o Paulo Novaes, chamado “TXAI BAND”, que é mais um desdobramento dessa parceria com os Huni Kuin. É fruto de uma viagem que fiz ao Acre em janeiro de 2023, dessa vez na companhia desse querido amigo, o Paulinho, um artista de quem eu já era fã antes e que se tornou um grande parceiro nessa história. A gente compôs algumas canções juntos durante a viagem, e também gravamos várias canções originais dos jovens Huni Kuin, e o EP conta um pouco dessa jornada. Tem também um lindo documentário no Youtube. Vai sair a conta-gotas até o final do ano, e está bem bonito. Então acabou por se tornar um projeto bastante coletivo, uma colaboração nossa com a Mística Samany, o Tuyn Kaya e a Maspã Huni Kuin, que são jovens artistas do povo Huni Kuin. Tivemos a alegria de contar também com a participação de outros músicos incríveis: Mestrinho, Kabé Pinheiro, Breno Ruiz e Juninho Ibituruna. Pro início do ano que vem, deve sair um álbum ao vivo (este sim, um “ao vivo” no formato “clássico”), chamado “LuizGa Electric MicroBigBand”. Um disco gravado durante um concerto na BOTA, em Lisboa, com uma banda espetacular: Bárbara Rodrix (do Brasil) e Beatriz Nande (de Portugal) nos vocais, Afrogame e Theu Nascimento (ambos brasileiros, baianos) nas percussões, Jori Collignon (da Holanda) e Raquel Pimpão (de Portugal) nas teclas. No último ano, estive trabalhando lentamente na finalização dos fonogramas com o Jori, que é o produtor desse disco, e tá ficando super bonito. Tem mais um tanto de coisa no forno, claro, mas por enquanto é isso que posso adiantar. Damos graças.

–  Bruno Lisboa  escreve no Scream & Yell desde 2014. Escreve também no www.phono.com.br

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