Ingênuo e superficial, “Guerra Civil” falha em retratar o jornalismo em conflitos armados

texto de João Paulo Barreto

Em 1984, Rolland Joffé, cineasta britânico que dirigiu obras como “A Letra Escarlate” (1995) e “A Missão” (1986), lançou um dos marcos de sua filmografia, o drama de guerra “Os Gritos do Silêncio”. O filme, estrelado de modo impressionante por Sam Waterson e pelo saudoso Haing S. Ngor, aborda, através o olhar de um jornalista estadunidense e de um fotojornalista nascido no Camboja, os horrores da guerra civil no país, quando a limpeza étnica proposta pelo ditador Pol Pot foi colocada em prática. Na presença dos dois profissionais da imprensa, o espectador passa a perceber de maneira dolorosamente realista como se dá o trabalho de correspondentes de guerra a trazer informação e verdade ao que acontece em países cujas populações são massacradas por tiranos.

Durante a sessão do quase descartável “Guerra Civil” (“Civil War”, 2024), a lembrança do clássico de Joffé foi constante em um âmbito que ia além do comparativo. É preciso reconhecer que são propostas diferentes de dramas de guerra, mas, em suas essências, relacionadas à profissão de jornalista e sua importância em tempos bélicos, e como tais períodos transformam seres humanos, os dois podem ser analisados nesse contexto. Infelizmente, o segundo se perde justamente por tratar de modo simplório e raso tão importante labor.

Com a lembrança da obra que completou quarenta anos em 2024 e seu peso transmitido na reflexão proposta acerca da profissão de seus personagens centrais, e justamente por levar o espectador a perceber os impactos de um conflito armamentista tanto na vida de civis quanto na de trabalhadores que se vêm em meio àquele inferno no intuito de registrá-lo em sua verdade para o mundo, a perfumada e banalmente romantizada obra estrelada por Kirsten Dunst e Wagner Moura se desorienta neste central e imprescindível aspecto de sua mensagem.

Neste novo filme escrito e dirigido por Alex Garland, que teve sua estreia atrás das câmeras há dez anos com o inventivo “Ex-Machina” (2014), mas se perdeu em suas ambições temáticas (apesar de ainda primar pelo apuro visual) com o recente “Men – Faces do Medo” (2022), a citada abordagem simplória e romantizada de forma rasteira das profissões de jornalista e fotojornalista correspondentes de guerra prejudica uma premissa até promissora.

Tal aspecto promissor se dá na ideia de ver o declínio do império americano acontecendo a partir de suas notórias discordâncias internas, uma vez que, por seus aspectos federalistas de independência legislativa de cada estado, e seu histórico de secessão, a ideia de ver a trumplândia se dividir a partir de sua própria incompetência e arrogância não estaria muito distante de uma, apesar de distópica, possível realidade.

No filme, diversas regiões do país se dividiram em busca da própria independência, causando a tal guerra civil do título. O governo oficial, representado na figura de Nick Offerman, que, apesar do pouco tempo em cena, parece emular justamente Donald Trump em sua falta de inteligência política (em certo momento, ficamos sabendo que ele extinguiu o FBI), insiste na rendição dos rebeldes, que iniciam uma jornada gradativa de conquistas visando chegar à capital do país, onde pretendem derrubar o chefe do Executivo.

Nesse ínterim, a dupla de profissionais vivida por Moura e Dunst encara a jornada de carro saindo de Nova York em direção a Washington no intuito de entrevistar o político. Levando a tira colo duas gerações distintas de colegas de profissão, o veterano repórter Sammy (Stephen McKinley Henderson) e a aspirante a fotógrafa profissional Jessie (Cailee Spaeny), a obra se transforma em um road movie no qual cada local de parada vai denotar um aspecto crítico ao povo americano.

As conexões da dupla de amigos e colegas de profissão são perceptíveis diante da maneira como os anos de experiência neste campo da imprensa os afetaram. Praticamente um alcoólatra, Joel, repórter vivido por Moura, tem em sua personalidade extrovertida uma espécie de escudo diante de todas as mazelas que testemunha no percurso entre as cidades. Porém, não o vemos redigir ou gravar sua voz para futura transcrição uma linha sequer no caminho para Washington, mesmo que em vários momentos ele possa aparecer refletindo sobre tudo o que acontece. Para um personagem de um jornalista, testemunha ocular dos horrores de guerra, o mínimo que o roteiro poderia trazer era certa profundidade reflexiva nesse sentido de relacioná-lo à sua profissão.

Já em Kirsten Dunst e sua Lee, o peso de anos nas coberturas de conflitos para Reuters parece finalmente ter afetado seus ombros e mente, uma vez que sua introspecção constante quanto ao que acontece e a maneira quase suicida como se dedica à busca pelas melhores fotos entrega seu estado de espírito em relação ao modo como aquilo tudo a vem afetando. Sua personagem, dentro da proposta de abordagem trazida por Garland em seu texto, até consegue transpor ao espectador a reflexão que “Guerra Civil” almeja quanto a função de tais profissionais no quesito social. Mas é através dela que notamos, também, o modo quase parasita que a sua presença se dá, captando dores em cliques e sugando daqueles momentos de maneira imparcial para que as notícias sejam publicadas. Sua personalidade é afetada por isso, mas seu emocional parece inabalável nessa busca pragmática por fotos.

A sua relação com a jovem Jessie, cujo espelho de juventude reflete a si mesma antes do impacto que a passagem do tempo teve em sua energia para o labor, concede para a audiência muito das pistas do que vai acontecer de trágico naquela trama. No entanto, a maneira como isso se desenvolve carece de um aprofundamento emocional e na construção daqueles dramas pregressos. No entanto, quando finalmente a tragicidade, cuja pista foi plantada de modo até previsível, acontece, pouco ou quase nada de emocional resvala para audiência.

Assim, o que resta a “Guerra Civil” é uma reflexão crítica sobre os Estados Unidos como a nação hipócrita e dividida que ela é na realidade, principalmente após a ascensão da extrema-direita em 2016 e as provas de sua estupidez e extremismo em 2020. A cada encontro da caravana ingênua representada por aquele carro dirigido por um jornalista que a gente não vê escrevendo, e acompanhado por fotógrafos que pensam que seus coletes laranjas são à prova de balas, e por um combalido colega escriba, o filme se torna uma desculpa oportuna para o britânico Alex Garland destilar sua crítica à xenofobia, ao complexo de superioridade e ao apelo armamentista que este povo possui.

Ao menos, há uma recompensa que é a de ver rednecks patriotas, racistas e xenofóbicos sendo atropelados. E, claro, ditadores sendo derrubados. Mas no que tange à reflexão sobre o impacto de uma guerra em colegas de profissão, o peso do obrigatório “Os Gritos do Silêncio” se sobressai – com folga.

– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual

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