texto por Bruno Capelas
fotos por Marcos Hermes
Com sete décadas de existência, é evidente que o rock já deixou há muito de ser música jovem. Mais que isso: seus maiores ícones ostentam cabelos brancos ou grisalhos e há tempos se lançam pelo mundo em turnês de despedida. Alguns, mascates de seu ofício, repetem despedidas ad nauseam a fim de tentar atrair para si alguns caraminguás a mais para aposentadoria – é do jogo, faz parte, pois há quem se interesse. Outros tentam desvelar seu adeus de forma mais contundente. No último final de semana, o público de São Paulo teve a chance de se despedir de um dos maiores ícones desse gênero, especialmente em sua utilização como plataforma política e de protesto: Roger Waters.
Com 80 anos recém completos, o baixista e vocalista do Pink Floyd está percorrendo o Brasil no que promete ser sua última turnê, “This is Not a Drill” (“isto não é um teste / treinamento”, em tradução mais ou menos literal). A promessa parece mais confiável do que a de muitos companheiros de estilo e geração. Mas mesmo que ele retorne a fazer shows, é possível dizer que quem assistiu a essa turnê teve o show de rock político definitivo, para o bem e para o mal. A produção pode ser menos esmerada que em outras passagens recentes de Waters pelo País? Pode. Mas, esteticamente, Waters encapsula boa parte do poder de contestação política e resistência que o rock ainda pode ter no mundo de hoje – e isso faz sentido tanto para suas mensagens mais fortes quanto para os aspectos mais enfadonhos do espetáculo que ele propõe.
Como diria Machado de Assis, o menino é o pai do homem – e para entender o artista Roger Waters, é preciso lembrar-se primeiro que o garoto Roger cresceu sem pai, morto na Segunda Guerra, em uma Inglaterra ainda bastante limitada do ponto de vista econômico e social. O adolescente Roger, por sua vez, cresceu num mundo em que o medo de uma guerra nuclear era constante, em que às vezes regimes diversos na orientação política pareciam conter desmandos em lados opostos de uma mesma moeda. É a mesma realidade que alimentou algumas das realidades distópicas mais celebradas da literatura (“1984”, “A Revolução dos Bichos”, “Admirável Mundo Novo”, “Fahrenheit 451”) e que perpassa, claro, a carreira de Waters, seja no Pink Floyd ou em carreira solo.
Ao longo de duas horas e meia de show (mais um intervalo de 20 minutos), o que Roger Waters faz é indubitavelmente um espetáculo político. Para isso, ele usa e abusa de fórmulas que hoje até soam deslocadas em meio ao rock contemporâneo: faz mais trocas de roupa que algumas divas pop, se fantasiando como personagem de suas canções, e aposta no telão e flutuantes infláveis como ferramenta para amplificar suas mensagens – de forma que sua banda e ele próprio, como indivíduo, por vezes pareçam pequenos perto do que está sendo dito nas quatro grandes telas dispostas no palco do Allianz Parque.
Na maior parte do show, é o telão que dá a dinâmica do discurso. Em certos momentos, especialmente nas canções da carreira solo de Waters, o material audiovisual é muito mais impactante que o som – quando aparecem George Floyd e Marielle Franco ao final de “The Powers That Be”, é difícil não segurar o choro, ainda que a música seja bastante convencional em seus dizeres. Em outros cenários, a mensagem política de Waters é difícil de encarar, ainda que ele tenha bons argumentos: é o que acontece, por exemplo, em “The Bravery of Being Out of Range”, na qual o telão acusa os últimos presidentes americanos todos de serem criminosos de guerra, de Reagan a Biden – passando por Obama e Trump, sendo o segundo mais xingado que o primeiro.
Além disso, muitas de suas canções solo são pouco conhecidas pelo grande público, o que faz o conceito de “rock para as massas” se perder dentro de um grande estádio – e o melhor exemplo disso é “The Bar”, uma ode a esse lugar “onde a gente conhece e conversa com estranhos”, como definiu Waters, mas soa mesmo como uma dica para a hora de buscar cerveja em meio a um repertório extenso (são vinte e quatro canções, muitas com longos solos).
Mais que isso, porém, o uso do rock com ferramenta de discurso político funciona até certo ponto – não só porque algumas canções são mais panfletos que… bem, canções, mas também por abrir um flanco para aquele argumento hipócrita de “olha só esse inglês branco velho vindo cobrar resistência mas cobrando mil reais num ingresso”. De um lado, é difícil contra-atacar; do outro, é louvável que Waters, com sua aposentadoria já bem garantida, obrigado, se dedique ainda a denunciar as injustiças do mundo. Mas é algo limitado, talvez até pelo excesso de informação – são tantas as denúncias que talvez seja difícil se sensibilizar com todas elas, uma dinâmica de passividade que Jeff Tweedy se deu conta recentemente na excelente “Ten Dead”, do mais recente disco do Wilco. E não há certo nem errado aqui, só formas diferentes de encarar a limitação de uma forma como meio para um discurso.
Por outro lado, para quem esperava um Waters extremamente combativo, ele até que foi comedido em suas manifestações verbais. Não xingou Putin, nem Bolsonaro, nem Netanyahu nem ninguém. No lugar disso, vestiu um lenço palestino no pescoço, pediu apoio à nação árabe e convidou os presentes para uma passeata na Avenida Paulista pedindo o fim do genocídio no local – recebendo mais aplausos do que vaias, mas um tanto de cada parte. (Isso para não citar a mensagem que já virou meme, exibida ao início do show, em que Waters manda para o bar aqueles fãs do Pink Floyd que não gostam muito de suas mensagens políticas, ou pedidos por direitos humanos universais e taxação dos ricos).
Os melhores momentos do concerto, porém, surgem na hora em que Waters se dedica aos hits do Pink Floyd – e eles permeiam todo o repertório, da abertura climática (e até densa) com “Comfortably Numb” até a despedida com “Outside the Wall”. Inserida logo no começo do show, “Another Brick in the Wall” (nas partes 2 e 3, executadas em sequência) se torna especificamente forte, justamente pelo efeito espelhado que uma massa de dezenas de milhares de pessoas pode causar na mensagem proferida pela música – o famoso “será que tá todo mundo entendendo?”.
Inseridas pouco antes do intervalo, a dupla “Wish You Were Here” e “Shine On You Crazy Diamond (Parts VI-IX)” talvez tenha sido o ponto alto da noite: em um raro momento não de política, mas de amizade, Waters dá um abraço espiritual no companheiro Syd Barrett e faz o estádio inteiro se debulhar de emoção. (É possível dizer que quem não tem alguém para pensar sobre e se emocionar ao ouvir essas canções talvez não tenha exatamente vivido). Mais que isso, são dois momentos que dão espaço para sua banda brilhar – com destaque para a dupla de guitarristas Dave Kilminster e Jonathan Wilson — este último, também responsável por assumir os vocais em algumas faixas do repertório de “The Dark Side of The Moon” (1973). Ainda antes do intervalo, teve tempo também para “Sheep”, do disco “Animals” (1977), com direito até a ovelha inflável sobrevoando o gramado.
Na volta do intervalo, providencial descanso para uma plateia repleta de cabelos grisalhos, outro inflável: dessa vez, o tradicional porco de “The Wall” (1979), em piscadela marota a George Orwell, enquanto Roger Waters mais uma vez se fantasiava para cantar “In The Flesh” e “Run Like Hell”. Pouco à frente, a sequência de petardos saídos de “The Dark Side of the Moon”, prontos para tirar qualquer um do chão – seja no sacolejo pervertido de “Money” ou na levitação da suíte que vai de “Us and Them” (em ótima participação do saxofonista Seamus Blake) até “Eclipse”, com direito ao belo efeito luminoso do prisma colorido acima de todo um estádio. O show, aliás, podia ter acabado com “Eclipse”, dado que as canções que surgem no quase-bis foram um acréscimo pouco relevante – a não ser pelo discurso antinuclear de Waters antes de “Two Suns in the Sunset”, do último disco dele ao lado do Pink Floyd, “The Final Cut” (1983).
Ao final de quase três horas, em verdadeiro tour de force, talvez a principal mensagem que Roger Waters tenha deixado ao público seja a de resistir – não só pelos ideais, mas também de seguir em frente até possível, como ele mesmo faz aos 80 anos de idade. Ele está pouco interessado com o que pensam dele, mas sim em que sua voz seja utilizada para combater injustiças – mesmo que nem sempre a mensagem chegue ao receptor da maneira ideal. É uma prova de vigorosidade, que tem lá seus momentos tétricos, mas também guarda aos presentes instantes sublimes. Nesse equilíbrio, o saldo é mais positivo do que negativo – até por revelar, em seus capítulos menos agradáveis, as limitações de uma forma de discurso importante, sugerindo caminhos a outros aventureiros que lancem mão de suas ideias. Feliz de quem pode acompanhá-lo na vida real (e não num mero ensaio).
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie, na Eldorado FM, e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.
Excelente resenha para um show realmente ímpar! Você conseguiu situar muito bem as emoções complexas e conflitantes de estar ali. A única coisa que acrescentaria é que a homenagem ao Syd Barrett desceu um tanto estranha, tendo em vista o quanto o Pink Floyd praticamente abandonou completamente e ainda explorou a fragilidade mental de Barrett como inspiração para obras de depois de sua “expulsão” da banda. Acho que sobrou homenagem e uma proximidade talvez irreal (levando em conta que o próprio Waters ficou anos sem ir atrás do suposto amigo, a ponto de não reconhecê-lo em 1975 quando ele apareceu na gravação de Shine On You Crazy Diamond) e faltou um pedido de desculpas simbólico ao Syd.
Mas mesmo esse momento incômodo não estragou em nada o show — e nem estragou a homenagem em si também.