entrevista por Pedro Salgado, especial de Lisboa
Quando vem ao meu encontro no Jardim da Estrela, em Lisboa, na tarde de 7 de setembro, a cantautora e multi-instrumentista Rita Braga está na véspera do lançamento do seu novo álbum, “Illegal Planet” (2023), com o carimbo da Comets Coming (sub-editora do selo Groovie Records). Rita exibe um semblante animado, que não abandonará ao longo da conversa, mas há uma ligeira ansiedade no ar, uma vez que está quase de partida para Praga (República Checa) onde iniciaria a 9 de setembro, no Festival Skaustská Alternativa, uma tour europeia de apresentação de “Illegal Planet” que contempla passagens por Portugal, Bulgária, Sérvia e Itália (até 6 de outubro), três datas no Reino Unido (em novembro) e terminará com um show na Casa da Cultura de Setúbal (Portugal) a 22 de dezembro.
O novo trabalho dá seguimento ao disco “Time Warp Blues” (2020), apresentando um leque rítmico alargado, alusões cinematográficas (o filme “Forbidden Planet”, de 1956, é uma das referências do álbum) e pequenas narrativas pop-noir que cruzam temas atuais e distopias. Mas, acima de tudo, “Illegal Planet” enfatiza a forma instintiva e divertida como Rita Braga harmoniza a sua sensibilidade pop sci-fi com o jazz, os ritmos latinos e o folk onírico criando uma fusão refrescante. Essa mistura de envolvência e criatividade é o aspecto mais atraente da jornada espacial patente no trabalho. Os condimentos podem parecer familiares, à luz da igual peculiaridade de “Time Warp Blues”, mas a construção das canções e a inventividade de cada performance mantêm a música prazerosa em sucessivas audições.
É inevitável citar faixas como “Ikea Snow”, uma irresistível marcha burlesca carregada de ironia e humor que contou com a contribuição de Gustavo Costa, responsável pelos estúdios da Sonoscopia, Associação Cultural, no Porto (onde o álbum foi produzido), que tocou tarola e fez o ritmo distintivo da música. “A piada dessa canção, e não sei se a moda já terá passado, deriva do fato de que há uns anos atrás toda a gente tinha uma mobília branca da Ikea e eu resolvi fazer uma música de protesto contra o aborrecimento de ser tudo igual (risos). É irônico, mas deu-me muito gozo compô-la e criar uma espécie de circo delirante”, explica.
A vontade de misturar a realidade com a ficção (uma marca deste trabalho), também está presente na música “Unclassified”, onde a viagem que Rita Braga propõe é encerrada com os seus agradecimentos aos ouvintes do disco. “As canções deste álbum têm uma vertente fantasiosa, mas também se referem a tópicos atuais, como é o caso das pessoas quase não comprarem música e escutarem-na no Spotify. No início do tema eu dizia: “Thank you for listening on Spotify”, no entanto acabei por retirar a frase porque senti que estava a publicita-lo. Mantive, na canção, a referência às subscrições no YouTube, já que em muitos vídeos é dito para não esquecer de carregar no botão e fazer a subscrição do canal. É apenas outra piada (risos)”, conta.
Em contraste com a vibração geral, o clipe da faixa “Nothing Comes From Nowhere” mostra um lado reflexivo e um desdobramento pouco comum da personalidade de Rita Braga, algo que a cantautora valida no contexto do álbum: “Acho que se trata de uma música mais introspetiva e etérea do que as outras. A realização do vídeo é da artista Marija Reikalas e foi ela que fez o ‘storyboard’, bem como a forma de ilustrar a história visualmente. A Marija concebeu a ideia de viagem astral e da saída do corpo, mas sinto que encaixa muito bem no disco”.
Ao longo do seu percurso, Rita deixou igualmente a sua marca em canções que resistiram à passagem do tempo e continuam a cativar pela vivacidade inata e pelo conteúdo singular. Um desses casos é a faixa “Tremble Like A Ghost”, a primeira música que compôs em Londres para o álbum “Time Warp Blues” (2020). Quando a questiono sobre o que procurou retratar com a canção, a artista aponta várias influências e o sentido histórico da narrativa. “É uma faixa que foi escrita no espírito de ‘Sympathy For The Devil’, dos Rolling Stones. Também lembra um pouco o Halloween, porque o clipe da Martha Colburn puxou muito esse imaginário. Mas, na letra, eu refiro alguns acontecimentos ao longo das décadas: um hotel que desabou nos anos 20 quando as pessoas dançavam o charleston, a música ‘Lili Marlene’, de Marlene Dietrich (nos anos 40) e o episódio em que o Pete Seeger ia destruir os cabos do Bob Dylan no Festival de Newport, em 1965. No fundo, trata-se de uma construção e uma viagem por diversos episódios históricos”, diz.
Relativamente ao rumo que pretende dar à sua música no futuro, conservando um espírito imaginativo e captando o interesse do público, como tem feito até ao momento, Rita Braga defende uma visão plural do seu processo criativo. “Tenho sempre temáticas variadas e até já pensei em fazer um disco acústico ou um álbum todo cantado em português. Ocorrem-me diversas ideias mas, depois, demoro a concretizá-las. Por isso, aquilo que faço é em grande medida um ‘work in progress’”, conclui.
De Lisboa para o Brasil, Rita Braga conversou com o Scream & Yell. Confira:
O seu novo disco, “Illegal Planet” (2023), que sucede ao álbum “Time Warp Blues” (2020) revela uma maior envolvência vocal, onde o pop sci-fi coabita com diversas sonoridades. Qual era o seu objetivo quando concebeu este ambiente rítmico?
As canções deste disco nasceram no período da pandemia. Foi no final de 2021 que comecei a fazer o álbum com o Rodrigo Cardoso (co-produtor) e, na altura, tive mais tempo para me envolver na escrita das canções. O “Time Warp Blues” realizou-se num prazo menor. Eu tinha acabado um mestrado em Londres, havia uma data marcada para a gravação em estúdio e tudo decorreu de forma bastante direta. No “Illegal Planet”, a produção do disco demorou mais, porque foram surgindo convidados e o álbum foi construído ao longo dos meses. Acho que é uma continuação do disco anterior, porque no “Time Warp Blues” comecei a trabalhar com caixas de ritmos dos anos 60 e 70, que eu sempre gostei, e só há pouco tempo é que adquiri algumas, e então parti desse ponto. Esse álbum é mais minimalista, porque só teve dois convidados e eu toco quase todos os instrumentos e o “Illegal Planet” tem mais texturas, mas sinto que é uma sequência do trabalho que eu fiz anteriormente.
Ao universo fantasioso que a caracteriza juntam-se agora um teor futurista e uma viagem espacial onde convivem temáticas como a desvalorização do consumo de música nas plataformas digitais ou a questão do aquecimento global do planeta. Foi por essa razão que deu ao disco o nome de “Illegal Planet”?
As minhas músicas contam histórias, por isso é quase como o título de um filme. Para além disso, a própria capa do disco assemelha-se ao poster de um filme antigo. Mas, gosto de deixar espaço para as pessoas interpretarem as letras e o título do álbum como quiserem. A primeira canção que escrevi para o disco foi a “Illegal Planet”. Quando a gravei, senti que o ‘take’ de voz ficou bastante bom e acabei por registra-lo no trabalho e a partir desse momento compus as outras faixas. Essa música acabou por dar o nome ao álbum e apresenta a viagem que eu proponho no disco.
Em “Flores Indigestas”, você toca o ukelele numa melodia em que sobressai um travo musical brasileiro. Escolheu a música como single pela sua característica própria ou apenas por uma questão de gosto pessoal?
Neste disco só tenho duas canções cantadas em português (a outra música é “Radio Pardal”). Como gostaria que uma delas fosse um single, achei que “Flores Indigestas” se distinguia. O lado brasileiro estava presente no ritmo, que era a bossa nova. Mas, há um convidado no disco que toca diversos instrumentos (o músico brasileiro Luís Bittencourt, que mora no Porto). Eu só lhe tinha pedido para tocar marimba e ele acabou por se envolver espontaneamente nos arranjos de percussão, tocou tamborim e cuíca com efeitos e então a faixa aquiriu um aroma de tropicália eletrônica mais vincado. Acho que ficou ‘catchy” e acabei por escolher como single a “Flores Indigestas”.
Neste trabalho, participaram, entre outros, os músicos Nik Phelps (que já colaborou com Tom Waits e Frank Zappa) e Phil MFU. Como surgiram estas parcerias e qual é a avaliação que faz do trabalho deles?
O Nik Phelps é um colaborador muito antigo. Ele gravou clarinete no meu primeiro single, “Under The Moon”, do álbum “Cherries That Went To The Police” (2011). Já nos conhecemos há muito tempo. Ele é de São Francisco, na Califórnia, e é um especialista no jazz do início dos anos 20. Quando colaborava com ele, convidava-o para tocar nessas versões que eu fazia. Desta vez, desafiei-o para tocar nas minhas composições atuais que são de um universo diferente e não sabia bem como é que o Nik iria reagir e se ia gostar. Fiquei muito surpreendida porque ele é um músico fantástico e versátil. Na faixa “Radio Pardal”, ele imita o som dos pássaros bastante bem. Eu dei-lhe várias indicações para as músicas e houve uma canção em que não lhe pedi nada de especial e ele criou uma melodia do tipo pantera cor-de-rosa (“Chien Mystärieux”). Relativamente ao Phil MFU, eu conheci-o em Londres quando morei lá. Ele pertencia aos Vanishing Twin e agora está nos The Pigeons e o universo musical dele também é muito ligado ao pop sci-fi. O Phil participou na música “Astro Rumba” e fez vários solos que ficaram muito bem.
Entre outros projetos, você fez uma parceria com o compositor e produtor alemão Felix Kubin (no espetáculo Planet Sardiniax), a 23 de Junho de 2023, no Porto, na noite de São João, e uma residência em Bruxelas (Bélgica) um mês mais tarde, que findou com uma primeira exposição de desenho e um concerto acústico. O que representaram estas experiências para si?
Foram duas experiências bastante diferentes. É algo que eu tenho estado a tentar fazer desde a pandemia para me desdobrar de várias formas e desenvolver parcerias. Eu e o Felix Kubin já nos conhecemos há imenso tempo e surgiu um convite por parte da Sonoscopia para fazer uma colaboração entre músicos internacionais e músicos que vivem no Porto. Foi uma semana deveras intensa e o tempo foi escasso para montar o espetáculo, que tinha cenografia e um músico a tocar vibrafone, numa produção maior do que estou habituada, mas correu extraordinariamente bem. Eu tenho igualmente um ‘background’ de gibi e ilustração, no entanto tinha vontade de retomar e depois recebi uma proposta para realizar uma exposição de desenho e estive um mês em Bruxelas. Como não desenhava há muito tempo desconhecia o que iria acontecer e acabei por fazer 20 postais ilustrados. O show acústico foi bom, embora eu faça pouco esse tipo de atuação. Mas, às vezes, gosto de tocar só com voz e ukelele, sem estar presa a cabos, porque também aprecio esse formato.
Você já atuou em diversos países e em vários continentes e no tour de “Illegal Planet” vai fazer shows proximamente em Portugal, República Checa, Sérvia, Bulgária, Itália e Reino Unido. Está nos seus planos incluir o Brasil?
Sim, eu gostaria muito de voltar. Tenho até mantido contato com um amigo, Paulo Beto, com quem já colaborei e talvez faça shows no Brasil brevemente. Eu vivi um mês em São Paulo, formei uma banda espontaneamente, voltei para produzir um disco e tenho saudades de lá estar. Espero que em 2024 se concretizem esses espetáculos. Aproveito para mandar a todos os leitores do Scream & Yell um grande abraço e espero vê-los num concerto em São Paulo no próximo ano.
– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell desde 2010 contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui. A foto que abre o texto é de Fernando Martins / Divulgação