Selo Scream & Yell: Ouça e faça o download gratuito de “Morphé”, primeiro EP solo de Rodrigo Stradiotto (Woyzeck / O Fio)

entrevista por Leonardo Vinhas

Rodrigo Stradiotto acredita tanto na brevidade como na longevidade de uma peça musical. Músico, compositor, produtor e, antes de tudo isso, ouvinte, Stradiotto entende a música como uma forma de expressão muito particular a cada um, capaz de externar algo que se resolve assim que ressoa, mas também capaz de ter vida longa, que se sustenta para além da própria intenção de quem a criou. Foi dessa relação que nasceu, em parte, seu primeiro EP, “Morphé” (2023). “Em parte” porque um outro tanto da gênese da obra se deve ao seu entusiasmo por sintetizadores modulares, instrumentos que reforçam o caráter único e, de certa forma, efêmero de cada composição.

“Morphé” é uma espécie de “estreia solo”, embora sua carreira seja bastante plural e longa. Ela tem início em 1995, quando fundou o Woyzeck com um grupo de amigos. Inicialmente, a banda entrou na busca pela brasilidade perdida, que tanto fazia a cabeça de boa parte dos músicos brasileiros da época. Na década seguinte, a banda assumiu influências de David Bowie, Leonard Cohen, pós-punk e afins, e partiu para uma existência de aparições esporádicas nos palcos de Curitiba. No meio tempo, Stradiotto e o baixista Denis Nunes montaram outra banda, a Excelsior, de curta duração e grande beleza.

Depois de uma passagem intensa como uma espécie de “integrante extraoficial” do Copacabana Club, Stradiotto dedicou-se mais à produção, trabalhando com artistas como ruido/mm, Rosie Mankato, Edith de Camargo e Felipe Ayres, entre outros. Também compôs trilhas para filmes e peças de teatro, ganhando inclusive o troféu Gralha Azul pelo seu trabalho na trilha de “Salomé”, em 2018. Até que os sintetizadores modulares e a pandemia balançaram muitas coisas.

Os primeiros foram os responsáveis por atrair sua atenção para uma nova maneira de compor, o que acabou desembocando no projeto O Fio, um duo que formou com Luís Pellanda, ex-vocalista do Woyzeck e hoje escritor. O trabalho, em hiato no momento, passaria a ser assinado apenas com o nome dos dois músicos, mas manteve sua característica essencial: canções climáticas, algo minimalistas, com vocais graves sobre bases construídas majoritária ou exclusivamente com sintetizadores modulares.

Já a pandemia trouxe um foco diferente ao seu trabalho como produtor. Stradiotto foi responsável pela masterização de “¡Estamos!”, um disco de gravações caseiras de músicos de diversos países. O contato com um universo de músicos que antes não estava em seu radar o lançou em ainda mais projetos, muitos deles do selo Scream & Yell. Entre eles, o álbum “Vizinhos”, da colombiana Catalina Avila, que esteve entre os pré-indicados ao Grammy Latino como Melhor Álbum em Língua Portuguesa, o tributo ao Tom Bloch “Sob a Influência”, e o projeto multinacional “¡Unan Todo!”.

Além disso, o músico lançou canções em parceria com a australiana Karen Vogt. Também vocalista da banda de dream pop Heligoland, Karen tem uma carreira solo que navega por caminhos mais experimentais a partir da estética explorada por sua banda. Duas faixas lançadas por ela nos últimos anos foram compostas e gravadas junto com Rodrigo Stradiotto. Para alguém que se apresenta como recluso e sazonal, o curitibano tem se mostrado bastante prolífico. E essa entrevista conta um pouco dessa história, bem como explica o processo extremamente peculiar de composição que levou a esse seu momento solista.

Morphé” é o 41º lançamento do Selo Scream & Yell. Ouça abaixo ou no seu streaming favorito
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“Ephemera” saiu como prévia de um EP que não era esse que agora está saindo, é isso? (risos)
Na verdade, o single veio depois desse EP abandonado. Ele tinha sido composto e gravado bem no meio da pandemia, havia uma urgência de extravasar muitas coisas da maneira que fosse possível – e exatamente por isso as coisas não saíam muito processadas. Quando fui ouvir depois da pandemia, muito do material me soou um tanto quanto bruto, enquanto outra parte tratava de coisas muito pontuais, e não fazia sentido lançá-las fora daquele momento. Por mais que eu não tenha fugido tanto da estética do anterior, no “Morphé” as coisas foram colocadas de uma maneira mais coerente, e menos atreladas ao momento. Acho que isso faz dessas faixas novas composições mais duradouras, mais longevas, já distantes daquele estado de emergência no qual vivíamos. E eu estava com vontade de botar algo meu para fora, porque tenho muitos materiais lançados, mas geralmente é um remix ou um trabalho com alguém, não é nada exclusivamente meu, muito menos desse trabalho com sintetizadores modulares e com essa linguagem. Lançar uma música é bem mais fácil que lançar um EP, é mais simples, traz menos preocupações. O “Ephemera” é meio uma síntese do EP.

Você vinha fazendo muita coisa seja como produtor, remixador, parceiro de composição, integrante adicional, mas praticamente nada seu. E você voltou a pensar em lançar coisas suas. Como foi esse processo de querer começar a ter trabalhos assinados por Rodrigo Stradiotto?
Acho que veio um pouquinho no gás d’O Fio, que foi meio a retomada de questões autorais, e que eu e o Luís [Pellanda] tínhamos a ideia de continuar, mas a pandemia nos interrompeu. Apesar disso, eu continuei no gás, com ansiedade de continuar fazendo as coisas autorais. Afinal, era pandemia, e eu estava ali, fechado no estúdio e cercado com sintetizadores modulares e tudo mais. Tinha tudo isso, mas o mais importante é a função que a música tem na minha vida, entende? Acho que é a melhor maneira que me comunico. O meu trabalho atual é muito diverso do que eu fazia há 15 ou 20 anos, mas é uma evolução de linguagem. Conforme vai aumentando o repertório de leitura, de informações, a maneira de se comunicar vai ficando diferente ao longo do tempo. A música é isso, né? E essa música [de agora] nasceu em um período de muito silêncio, de muita conversa interior e pouca conversa com outras pessoas – conversas virtuais, no máximo. Acho que foi a minha maneira de estabelecer um diálogo que não fosse só na minha cabeça.

É curioso que um diálogo que não vai para o mínimo denominador comum, por assim dizer. Não é como se você estivesse usando o “vocabulário” mais amplamente reconhecível, mas mesmo assim, é a sua maneira de dialogar. Então como é esse seu diálogo com o mundo, no qual você conversa com uma linguagem muito particular?
É bem essa coisa paradoxal, porque eu fui me aproximando desses tipos de instrumentos… Eu venho da guitarra, essa é a minha formação, sempre foi meu instrumento principal. Mas ainda quando eu estava aprendendo a tocar, as cores do som me seduziam muito mais: os timbres, as possibilidades que eles traziam. Tudo isso me interessava mais que escalas. Se você pega um violão, uma guitarra ou um piano, você está preso ali. Existem fórmulas que se aplicam ao que a gente chama amplamente de música pop, e a quase todos os estilos. Mesmo uma fuga, uma sonata, por mais imaginativas que sejam, o resultado final vai estar dentro de uma certa gradezinha, de um gabarito. Mas muito por influência de bandas mais experimentais, já via que, com os pedais, você podia subverter um pouco isso. Você acaba de repente fazendo alguma frase com camadas de delay, modulações, gerando harmônicos, que dão um resultado completamente diferente de, sei lá, fazer uma pentatônica menor. Você pode usar o timbre tradicional, pegar ali um amplificador Fender e tocar uma Stratocaster e colocar um crunchzinho, você pode tocar de forma exímia, mas vai soar igual a várias outras coisas. Se você fizer exatamente a mesma escala, mas subvertendo um pouquinho a ordem das coisas, de repente usando um amplificador não tão bom, modulações diferentes e tal, vão começar a aparecer coisas diferentes. Um overdrive vai saturando, vai mudando a forma de onda, achatando a forma… E quanto mais você vai enriquecendo harmonicamente aquela forma de onda, mais pode criar coisas novas. Isso é da natureza da engenharia do som. E isso foi me seduzindo cada vez mais, fui buscando e garimpando como sair do convencional, daquele formato de pedaleira tradicional. Fui entrando nesse mundo que é muito artesanal, da peculiaridade de certos dispositivos. Tem fabricantes que são três pessoas trabalhando, que fazem uma tiragem pequena, cada uma com sua própria sonoridade. Isso foi me levando cada vez mais pro mundo dos sintetizadores modulares. Claro que é uma jornada meio longa, mas que vale a pena, porque a questão é que esses sintetizadores dão uma liberdade mais plena, porque são instrumentos que você monta e organiza do jeito que você quer. É uma espécie de Lego, inicialmente não tem som nenhum, você começa do zero: primeiro cria o timbre, descobre que ele não tem uma afinação, que não é temperado como instrumento tal qual um piano, você não sabe nada sobre o instrumento. Mas aí você vai criando a sua afinação, além dos timbres, você acaba tendo os acidentes felizes, aqueles cada vez são mais raros na música hoje em dia. Porque os softwares te direcionam a não errar, você pode editar, pode corrigir, afinar, fazer o que quiser. Mas nesse mundo analógico, modular, o erro é o que mais acontece: você acha que está fazendo uma determinada coisa, e de repente vê que está em um lugar completamente diferente.

Mas voltando ao porquê desse diálogo com vocabulário “difícil”…
É que essa forma de dialogar, com esse tipo de música, é uma coisa de semiótica mesmo, de construir uma imagem e comunicá-la sem estar dentro de um padrão X, sem estar respeitando uma regra harmônica teórica. Ou mesmo a física de um instrumento. Eu não uso um teclado para sequenciar as coisas, sequencio virando knobs, o som sai e só depois vou descobrir em que escala estou, em que tonalidade estou. Geralmente as músicas acontecem muito nesse processo, e com “Ephemera” foi assim. Primeiro fiz uma frase, tipo uma escala menor, mas sem ter ideia do tom em que estava, se tinha algum modo ou acidente nessa escala. Quando você está tocando um piano ou uma guitarra, você sabe onde está, sabe qual o campo harmônico, e você meio que é levado pelo teu vício em composição, e da audição mesmo, para uma posição que não vai dar uma dissonância. Você fatalmente vai desembocar em coisas consoantes, vai respeitar a primeira, a terça e a quinta, sabe? É natural respeitar essas regrinhas. Aqui não, já é meio anárquico, como é anárquico nosso pensamento. E sendo anárquico é mais fácil você chegar na sensação. Porque, para mim, o mais importante no começo da composição é a sensação que ela está trazendo. As músicas prosperam ou não para mim a partir do quanto elas estão me tocando sensorialmente. Se não estão, eu paro de compor e tento outro caminho. Então é tudo muito análogo a como estou me sentindo, ao que que eu quero dizer naquele momento. Porque talvez seja até uma coisa psicanalítica, eu inconsciente guiando e os acidentes que vão acontecendo no processo. Acho que isso ajuda a explicar o nome “Ephemera” para essa composição em especial e de uma certa maneira, eu até acho que é uma palavra que define minha sonoridade e meu processo de criação.
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É um processo hermético, mas a escuta não é, necessariamente, tão complicada quanto.
Eu acho que é um tipo de música que pode falar com quem curte ouvir coisas novas e que está um pouco cansado de ouvir as coisas mais pasteurizadas. É um pouco hermético para os outros, mas por um outro lado, como é tão sensorial, o ouvinte não precisa saber disso tudo que eu estou abrindo aqui. Ela não precisa saber como foi feito, qual equipamento foi usado. Acho que esse formato talvez seja até menos intimidante que ouvir um virtuoso tocando, sabe? Vira e mexe, eu volto a querer pegar só um violão, ir para um terreno mais confortável, mais familiar. Mas a grande questão tanto com ouvir quanto criar, é que é um território para quebra de paradigmas e preconceitos, sabe? O grande legal é não ter a palavra “não”. É espetar e ver o que acontece, começar a compor simplesmente com uma intenção, mesmo uma muito inconsciente. Sabe quando você vai para uma sessão de terapia e nem sabe do que vai falar direito? Aí você começa a falar, fica verborrágico, e através da palavra e da oralidade vai achar o fio da meada. É um processo muito similar com a música. Já sei que, se eu for gravar algo com baixo, guitarra e bateria, eu vou trazer essa carga por ter trabalhado com instrumentos menos tradicionais, que foi o que aconteceu, de certa maneira, com “Somewhere”, que compus em parceria com a [cantora e compositora uruguaia] Romina Peluffo.

FICHA TÉCNICA “Morphé”
Composto, produzido e interpretado por Rodrigo Stradiotto.
Produção executiva: Leonardo Vinhas.
Capa do EP por Grazi Fonseca (Galeria).
Capa do single “Ephemera” por Diogo Garnero (artista visual e diretor de cena), com
tipografia de capa e Spotify canvas por Janaína da Veiga.
A foto que abre o texto é de Henrique Thoms.

CATÁLOGO COMPLETO DO SELO SCREAM & YELL

SY00 – “Canção para OAEOZ“, OAEOZ (2007) com De Inverno Records
SY01 – “O Tempo Vai Me Perdoar”, Terminal Guadalupe (2009)
SY02 – “AoVivo@Asteroid”, Walverdes (2011)
SY03 – “Ao vivo”, André Takeda (2011)
SY04 – “Projeto Visto: Brasil + Portugal” (2013)
SY05 – “EP Record Store Day”, Giancarlo Rufatto (2013)
SY06 – “Ensaio Sobre a Lealdade”, Rosablanca (2013)
SY07 – “Ainda Somos os Mesmos”, um tributo à Belchior (2014)
SY08 – “De Lá Não Ando Só”, Transmissor (2014)
SY09 – “Espelho Retrovisor”, um tributo aos Engenheiros do Hawaii (2014)
SY10 – “Projeto Visto 2: Brasil + Portugal” (2014)
SY11 – “Somos Todos Latinos” (2015)
SY12 – “Mil Tom”, um tributo a Milton Nascimento (2015)
SY13 – “Caleidoscópio”, um tributo aos Paralamas do Sucesso (2015)
SY14 – “Temperança” (2016)
SY15 – “Ainda Há Coração”, um tributo à Alceu Valença
SY16 – “Brasil También Es Latino” (2016)
SY17 – “Faixa Seis” (2017)
SY18 – “Sem Palavras I” (2017)
SY19 – “Dois Lados”, um tributo ao Skank (2017)
SY20 – “As Lembranças São Escolhas”, canções de Dary Jr. (2017)
SY21 – “O Velho Arsenal dos Lacraus”, Os Lacraus (2018)
SY22 – “Um Grito que se Espalha”, um tributo à Walter Franco (2018)
SY23 – “A Comida”, Os Cleggs (2018)
SY24 – “Conexão Latina” (2018)
SY25 – “Omnia”, Borealis (2019)
SY26 – “Sem Palavras II” (2019)
SY27 – “¡Estamos! – Canções da Quarentena” (2020)
SY28 – “Emerge el Zombie – En Vivo”, El Zombie (2020)
SY29 – “Canções de Inverno – Um songbook de Ivan Santos & Martinuci” (2020)
SY30 – “SIEMENSDREAM”, Borealis (2020)
SY31 – “Autoramas & The Tormentos EP”, Autoramas & The Tormentos (2020)
SY32 – “O Ponto Firme”, M.Takara (2021)
SY33 – “Sob a Influencia”, tributo a Tom Bloch (2021)
SY34 – “Pra Toda Superquadra Ouvir”, Beto Só (2021)
SY35 – “Bajo Un Cielo Uruguayo” (2021) com  Little Butterfly Records
SY36 – “REWIND” (2021), Borealis
SY37 – “Pomar” (2021), Vivian Benford
SY38 – “Vizinhos” (2021), Catalina Ávila
SY39 – “Conexão Latina II” (2021), Vários artistas
SY40 – “Unan Todo” (2022), Vários artistas
SY41 – “Morphé” (2023), Rodrigo Stradiotto
SY42 – “Paranoar” (2023), YPU (com Monstro Discos)
SY43 – “NO GOD UP HERE” (2023), Borealis
SY44 – “Extras de “Vou Tirar Você Desse Lugar”, Cidadão Instigado & Plástico Lunar (2024) – Com Allegro Discos
SY45 – “Smoko” (2024), Smoko
SY46 – “Trilhas Sonoras para Corações Solitários” (2024), Hotel Avenida

Discos liberados para download gratuito no Scream & Yell:
01 – “Natália Matos”, Natália Matos (2014)
02 –  “Gito”, Antônio Novaes (2015)
03 – “Curvas, Lados, Linhas Tortas, Sujas e Discretas”, de Leonardo Marques (2015)
04 – “Inverno”, de Marcelo Perdido (2015)
05 – “Primavera Punk”, de Gustavo Kaly e os Hóspedes do Chelsea feat. Frank Jorge (2016)
06 – “Consertos em Geral”, de Manoel Magalhães (2018)
07 – “Toda Forma de Adeus”, Jotadablio (2023)

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