entrevista por João Paulo Barreto
Lideranças Munduruku, percebendo que há algo errado com a saúde de seu povo, convidam médicos e pesquisadores para investigar se eles estão contaminados por mercúrio. O diagnóstico revela altos índices de contaminação pelo metal tradicionalmente associado à atividade garimpeira de ouro e à destruição da floresta, mas ao médicos enfrentam resistência dos garimpeiros e até do governo brasileiro para apresentar os resultados aos Mundurukus. Em “Amazônia, a Nova Minamata?” (2022), Jorge Bodansky acompanha a saga do povo Munduruku para conter a contaminação que ameaça a saúde de todos os habitantes da Amazônia.
O documentário mostra o neurologista Erik Jennings tentando alertar os povos Munduruku quanto aos riscos atrelados ao uso do mercúrio no garimpo de ouro. Nas imagens, vemos o médico atendendo pacientes indígenas cujos filhos passam por sérios problemas de saúde oriundos da toxicidade existente nas águas e nos peixes da região. Do mesmo modo, o filme aborda, em entrevistas locais em Minamata, no Japão, a atual situação das vítimas do mesmo tipo de contaminação que atingiu a baía do lugar. Indo além, a obra traz um panorama completo da situação econômica daquelas pessoas que passam a depender do garimpo a ponto de defendê-lo, algo que gerou insegurança e colocou em risco a vida daqueles que registraram as imagens do documentário que agora é lançado.
Nessa conversa com o Scream & Yell, o diretor do clássico “Iracema – Uma Transa Amazônica” (1975) falou sobre a urgente denúncia do uso do mercúrio no garimpo ilegal de ouro e como a toxidade do material químico vem contaminando águas fluviais e peixes e colocando em risco a vida dos povos indígenas, conecta “Amazônia, a Nova Minamata?” com a série “Transamazônica – Uma Estrada para o Passado” (2021), disponível na HBO, conta dos riscos de se filmar na Amazônia (“A ameaça é latente lá”, diz) relembrando os trágicos assassinatos do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista brasileiro Bruno Pereira, e revela que, devido a situação miserável da região, muitos indígenas foram cooptados pelos garimpeiros: “O garimpo é uma indústria caríssima”. Leia entrevista com Bodansky!
Na nossa conversa há dois anos, você falou sobre a Amazônia ser uma tragédia permanente. Neste novo filme, “Amazônia, A Nova Minamata?”, a questão da contaminação dos rios por mercúrio e a comparação com o caso trágico da cidade japonesa de Minamata traz um peso ainda maior a essa tragédia representada pelos problemas sociais que afligem a Amazônia. Para alguém que já há cinquenta anos foca a lente nos problemas advindos de lá, essas questões lhe afetam de um modo pesado? Ou a função social do seu trabalho sobressai? Como se dá esse equilíbrio?
Na verdade, a postura, eu como diretor de cinema, documentarista, a postura é a mesma desde o “Iracema”. Então, é uma forma de olhar. É uma forma de ver as coisas, de retratar as coisas. Uma coisa puxa a outra. Esse novo filme, “Amazônia: A Nova Minamata?” é uma consequência da série da “Transamazônica – Uma Estrada para o Passado”. Foi enquanto estava filmando essa série que encontrei o Dr. Erik Jennings, que é o médico que me contou essa história. Foi em um evento que aconteceu lá na área Munduruku. Havia uma reunião de caciques que aparece no filme e eles estavam discutindo uma questão de uma hidrelétrica cuja obra conseguiram barrar naquele momento. O Dr. Erik estava lá e eu lhe perguntei: “O que faz um médico aqui?” Achei estranho. Começamos a conversar e ele me disse que já havia um tempo que os médicos estavam desconfiados e examinando a questão do mercúrio no cabelo dos indígenas. Ele disse que, para a surpresa deles, era coisa mais grave que eles haviam imaginado. Ele fez a comparação com Minamata e me chamou a atenção para isso. E eu achei o assunto tão importante, tão relevante. Isso já tem uns quatro anos. Não se falava tanto nesse tema. Hoje em dia, todo mundo está falando sobre a questão do garimpo. Essa comparação com o que aconteceu em Minamata, eu acho muito importante porque a gente pode prever o futuro. Quer dizer, não adianta querer negar. Está aí o que acontece com o mercúrio. Essa foi a motivação do filme. Mas essa motivação é, na realidade, uma continuação. É um modo contínuo. Não é uma coisa que eu parei aqui e começo outra ali, entende? Uma coisa puxa a outra.
“Amazônia, A Nova Minamata?” traz em sua construção momentos de tensão como aquele em que vemos a equipe ser ameaçada de morte por indígenas. Como foi aquela situação para as pessoas envolvidas na produção do documentário?
O risco lá era constante. Aquele momento que conseguimos filmar foi o mais visível desse risco. A ameaça é latente lá. Veja o que aconteceu com os dois jornalistas assassinados. Nessa viagem que o Dr. Erik fez e que a gente filmou, eu não estava presente. Ela aconteceu durante a pandemia. Foi uma tentativa de fazer o que eles chamam de devolução. De levar para as aldeias o resultado dos exames, o que não aconteceu naquele momento. Só aconteceu depois. Mas como não tinha lugar no avião do Erik, só mandamos o fotógrafo e a produtora – foram eles quem sofreram isso. E o Maká (Paulo Gambale, diretor de Fotografia) teve a presença de espírito de deixar o celular ligado no bolso. Nós conseguimos a sonora dessa ameaça, que foi real. Foi realmente muito tenso. A gente, inclusive, suspendeu a filmagem a partir dali. Falamos: “Não dá para ir mais assim. A gente tem que se preparar de outra forma”. Inclusive, o próprio Dr. Erik, também, interrompeu o trabalho dele porque estava correndo risco de morte. Isso se vê hoje. As tentativas de se expulsar os garimpeiros da área Yanomami. A ameaça é a mesma. Só que, agora, tem o exército. Mas os garimpeiros estão armados, são violentos. Eles não têm nada a perder. E o trágico dessa história toda é porque eu diria que uma boa parte, um terço, ou talvez até mais dos indígenas estão cooptados pelos garimpeiros. Eles defendem os garimpeiros. E dá até para entender o porquê. É uma região, vamos dizer, miserável. O meio ambiente está estragado. Eles têm dificuldades de pescar, de caçar. E aí surge uma chance de ganhar dinheiro, os jovens compram celular ou um carro, é óbvio que eles vão optar a trabalhar junto com os garimpeiros. Essa é a realidade. Continua acontecendo e eu diria que de forma até pior. Hoje tem mais índios favoráveis ao garimpo do que tinha naquela época. E é a realidade. É o que está acontecendo. Não adianta escamotear. A gente tem que trabalhar com isso.
Após os quatro anos do governo que terminou ao final de 2022, os problemas se agravaram consideravelmente, deixando para o atual uma urgência ainda maior. Com a atuação do Ministério dos Povos Indígenas, dos Direitos Humanos e do Meio Ambiente presentes com mais afinco do que no Brasil do “passar a boiada” de 2019 em diante, é possível uma resolução para a questão do envenenamento das águas no garimpo?
Olha, é muito complexo. Claro que o (novo) governo fez um esforço muito grande. Colocou pessoas competentes, lideranças indígenas em postos chaves. Mas a realidade é tão brutal ali. Eu sou muito pessimista em relação a isso porque… onde você vai colocar essa gente? É muito fácil dizer para os garimpeiros: “Não entrem aqui.” Eles vão para outro lugar. Eles têm que viver. E não são poucos. São milhares. E a gente sabe que isso tudo tem um financiamento. Ainda não se tocou nessa parte. Quem é que está pagando essa história? Hoje, o garimpo é uma indústria caríssima. O ouro (encontrado lá) é lavado e depois é vendido. E onde ele vai parar? Vai parar nos bancos! Então, é preciso pegar a cadeia toda, (não adianta) só pegar um lado que é o lado mais visível, que é o garimpo que contamina a água, etc, isso é só uma ponta. E a outra? Essa outra ponta ainda não se tocou.
Você falou sobre a questão de Minamata ter sido trazida a partir de uma conversa com o Dr. Erik Jennings. Como se desenvolveu, a partir daí, a construção do roteiro focando na comparação entre a tragédia no Japão e a do Brasil?
Quem nos chamou atenção para o caso de Minamata foi o Dr. Erik. Nós realizamos isso. O Nuno (Godolphim, co-roteirista) tinha um conhecido dele, um japonês de São Paulo, que tinha uma produtora no Japão. Isso foi no auge da pandemia. Nós não fomos para lá. Uma equipe japonesa filmou pra gente. Nós fizemos a filmagem à distância. E funcionou muito bem. Deu tudo certo. E devo dizer que os japoneses foram extremamente colaborativos e não tinham a menor ideia de que isso, também, estava acontecendo na Amazônia. Eles facilitaram o que puderam para a gente para poder, justamente, divulgar isso para as populações ribeirinhas.
As imagens trazidas pela equipe de filmagem no Japão causam um necessário e urgente choque. Como foi levar isso aos povos indígenas para tentar alertá-los?
A gente também não queria assustar. Na adianta você mostrar imagens terríveis. O que eles podem fazer? Eles têm que comer peixe. Não tem outro alimento. Outro alimento custa caro. Eles precisam de dinheiro. De onde vem o dinheiro? Só vem do garimpo. Não tem outra fonte de renda. Então, é um ciclo perverso. Muito perversa a situação. Os japoneses, isso que a gente mostrou no filme, eles tiveram uma luta de trinta anos para conseguir fechar a fábrica, serem indenizados, receber tratamento médico. Isso foi uma luta longuíssima lá no Japão, mas conseguiram. As sequelas continuam, porque são irreversíveis. Mas eles conseguiram fechar a fábrica, serem indenizados e parou essa história de jogar mercúrio na água. Foi descoberto… Não se tinha ideia naquela época, nos anos 1950, do estrago que o mercúrio fazia. Mas a partir da denúncia daquela população de pescadores se descobriu. E lá, também, aconteceu uma coisa muito parecida com o que aconteceu agora no Brasil: uma parte da ocupação de Minamata, que é uma vila de pescadores, era a favor a fábrica. Porque ela dava emprego, dava renda. Quer dizer, mesmo sabendo o risco que estavam correndo, uma parte deles queria que a fábrica continuasse funcionando.
Em certo momento do filme, vemos um delegado falar sobre ser possível a compra de mercúrio via internet. Esse tipo de fiscalização dos meios de acesso à substância pode ser uma solução?
Esse mesmo delegado, um cara muito legal, ele mesmo diz que é como você querer combater o tráfico de drogas. É a mesma coisa. Então, não se consegue acabar com o tráfico de drogas na cidade, quanto mais na Amazônia. O mercúrio é como se fosse uma droga. É negociada pelos traficantes. Está em domínio de milícias de traficantes não só no Brasil, mas em toda Panamazônica. Eu acho que é uma luta. E como a luta contra as drogas, é uma luta perdida. Eu acho que tem que se trabalhar a outra ponta. A ponta do financiamento. Tem que se criar um sistema de controle da produção de ouro e dar um certificado para esse ouro. E fazer com que essas instituições que compram esse ouro só aceitem ouro certificado. Claro que tudo isso pode ser fraudado, como fazem com a madeira, mas dificulta. E a outra ponta é o financiamento. Tem que se fechar a torneira do dinheiro.
Mesmo com toda a situação entrando em colapso diante da ausência de soluções imediatas, ainda é um alívio perceber a mudança de horizontes em comparação ao que se passou nos últimos quatro anos.
Sim, claro que é uma mudança otimista. A gente estava em uma tragédia absoluta. E, pelo menos agora, há uma boa intenção. Mas eu acho que a realidade é maior que a boa intenção. É como a droga, entende. Tudo bem, pode chegar um novo governo e dizer: “vamos acabar com a Cracolândia, em São Paulo”. Toda vez falam isso. “Ah, bota serviço de saúde, faz não sei o que…” e a Cracolândia só aumenta. É muito difícil. Não é uma coisa que você vai combater de um lado só. É todo um sistema. Tem a questão política, a questão econômica. É uma questão internacional. Porque não adianta resolver o problema no Brasil se a água já entra contaminada pelos países vizinhos, que são as cabeceiras dos rios do Peru, do Equador, da Colômbia, da Guiana, da Venezuela. Todos esses países têm garimpo. Talvez garimpo ainda mais violento até do que no Brasil. Mais dominado pelas milícias. Se por um milagre tirarmos os garimpeiros e não sujarmos mais a água no Brasil, não vai adiantar nada, pois ela já está contaminada quando entra no Brasil.
Há uma saída que, ao menos, está na informação. Está na possibilidade de usar o Cinema como meio de alerta.
Olha, a ideia do filme é mostrar o exemplo de Minamata. Eles conseguiram resolver lá. Hoje, a baía está despoluída. Os pescadores voltaram, estão pescando, a fábrica foi fechada. E a comunidade vai muito bem, obrigado. Então, é um exemplo de uma luta vencedora. Agora, claro que lá é restrita. Era uma baía. Eles conseguiram despoluir o fundo dessa baía. É um custo muito alto. Como é que você vai despoluir os rios da Amazônia? É um continente! Mas a gente mostrou que não é impossível. Lá em Minamata eles conseguiram.
Você completou 80 anos em dezembro do ano passado. Sessenta anos de carreira dentro do audiovisual. Como é contemplar esse momento?
Procuro afastar um pouco isso. Felizmente, estou com muito trabalho. Bastante ativo com um monte de projetos novos. Sempre brinco que um produtor independente tem que ter, no mínimo, dez projetos. Porque se ele tem nove, ele não tem nenhum (risos). Um, eventualmente, funciona. Então, eu me encontro em plena atividade. Para mim, não é uma transição. “Ah, agora estou com 80. O que vai acontecer depois?” Nada. Eu continuo igual até onde dá. O meu modelo é o do cineasta português Manoel de Oliveira, que trabalhou até os 104 anos e ainda ficou devendo cinco filmes que ele tinha em projeto. Eu quero chegar nisso (risos).
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.
Ter um Bodansky na ativa é um alento. A Amazônia, em sua complexidade, é muito difícil de ser retratada a partir de um modelo monocromático de visão. Felizmente, Jorge faz parte de um grupo de pessoas que possui esse olhar mais amplo sobre a questão amazônica. Boa entrevista.