texto por Paulo Pontes
fotos por Fernando Yokota
Em determinada avenida da cidade era possível avistar grupos de jovens, de todos os gêneros, utilizando calças justas de lycra com as mais diversas estampas (a maioria com alguma referência ao mundo animal), maquiagens carregadas, cabelos compridos cheios de laquê, lenços pendurados nas roupas, entre outros adornos.
O cenário descrito acima poderia muito bem se tratar de uma noite qualquer na Sunset Strip ou na Hollywood Boulevard, em Los Angeles, na metade da década de 80. Mas, na verdade, ele se refere à Avenida Francisco Matarazzo, em São Paulo, às 16h, no dia 7 de março de 2023. Essa era a visão de quem olhava para as proximidades do Portão B do Allianz Parque, local que reunia a fila de fãs tanto do Mötley Crüe quanto do Def Leppard. A julgar pelas camisetas utilizadas, fica fácil afirmar que a maioria das pessoas ansiavam um pouco mais pelo show do Mötley Crüe, ainda que muitas estampas do Def Leppard se fizessem presentes.
Inicialmente, as duas instituições do hard rock mundial anunciaram três shows no Brasil, como parte da “The World Tour”, que teve sua origem na “The Stadium Tour”, turnê que tinha a presença de outros dois grandes nomes: Poison e Joan Jett & the Blackhearts — uma pena essa tour não ter se estendido para cá. Mas, como todos sabem, das três apresentações, duas foram canceladas (Curitiba e Porto Alegre) por, segundo a produção, “problemas logísticos”. Talvez a resposta mais honesta seja “baixa procura”? Se a configuração da apresentação de São Paulo e as diversas promoções nas vendas de ingresso (como o tradicional “leve 2 e pague 1”) servirem como argumento, a resposta é sim.
Ao entrar no Allianz Parque, o que se viu foi um palco gigantesco montado praticamente no centro do gramado e uma pista premium com um espaço (aparentemente) maior que a pista comum. Ou seja, capacidade reduzida para receber duas das maiores bandas dos anos 80. Antes delas, o público conferiu um set limitado (apenas cinco músicas, das quais quatro foram de sua antiga banda, o Angra) de um “deslocado” Edu Falaschi. O músico, inclusive, chegou a falar com a plateia sobre o fato de suas músicas estarem mais distantes do hard rock, apesar de ter o estilo correndo em suas veias — quem conhece a trajetória de Edu como compositor sabe que isso é uma verdade.
Entretanto, vale destacar duas coisas: ele e sua banda se esforçaram para agradar e o público foi respeitoso (o mínimo, né?). Apesar de alguns deslizes vocais e da já mencionada sonoridade “deslocada” das demais, foi uma apresentação que, em determinados pontos, chegou a empolgar parte do público (que inclusive arriscou gritos de “saint seiya”, pedindo para o vocalista incluir a faixa de abertura de Cavaleiros do Zodíaco no set. Pedido não atendido — com um set tão reduzido e uma pressão imensa em ser a atração de abertura, fica fácil entender que não dá para simplesmente incluir uma música assim, no “susto”).
Com a pontualidade que (ainda bem) já estamos nos acostumando para os shows em SP, às 19h30 um vídeo no melhor estilo “breaking news” (Mötley Crüe News Network), apresentado por Tom Franks, apareceu nos telões do Allianz ressaltando a chamada “Não podemos apagar o passado, mas… o futuro é nosso!”, para anunciar que o quarteto norte-americano estava chegando.
A essa altura, os fãs alinhados à moda do que pode ser visto no figurino do filme “The Dirt” já se misturava ao restante do público. E foi um verdadeiro misto de gerações. Os mais novos podem ter sido, inclusive, influenciados pelo filme da Netflix. Vince Neil (vocal), Nikki Sixx (baixo) e Tommy Lee (bateria) e John 5 (guitarra) subiram ao palco acompanhados das bailarinas/backing vocals Hannah Sutton e Ariana Rosado, as “The Nasty Habits”, e começaram com a clássica “Wild Side”, do disco “Girls Girls Girls” (1987).
Logo nos primeiros minutos de show duas coisas ficaram bem claras: Primeiro, Vince, ainda que tenha se esforçado bastante e segurado bem a barra (sabemos que ele nunca foi um grande cantor, mas funciona de maneira única no som da banda), está com dificuldades de acompanhar o ritmo das músicas, o que fez com que o Mötley, apropriadamente, tenha optado por diminuir um pouco o andamento de algumas faixas; segundo, a escolha de John 5 para substituir Mick Mars (que decidiu deixar o quarteto para cuidar de sua saúde) foi certeira. O guitarrista se encaixou perfeitamente na banda e se mostra completamente à vontade (além de ser um monstro nas seis cordas).
Em seguida, veio “Shout At The Devil”, em sua versão de 1997, que levou o público à loucura. “Too Fast For Love”, faixa título do disco de estreia, “fechou” a trinca da abertura arrebatadora. A partir daí, o que se viu foi uma sequência de músicas que ajudaram a definir o hard rock oitentista e influenciaram toda uma geração de bandas — influência que perdura até hoje — (“Live Wire”, “Looks That Kill”, “Dr. Feelgood”, “Girls, Gilrs, Gilrs”, entre outras), apenas com a inserção de duas faixas “mais recentes”, a excelente “Saints of Los Angeles” (já tem 15 anos) e “The Dirt (Est. 1981)”, tema do filme anteriormente mencionado.
Vale destacar também o medley “Rock and Roll, Part 2 / Smokin’ in the Boys Room / Helter Skelter / Anarchy in the U.K. / Blitzkrieg Bop”, além do (já tradicional em shows de todo e qualquer estilo) momento “luzes de celular”, aqui iluminando o Allianz para a execução emocionante de “Home Sweet Home”. A comunicação do quarteto com a plateia se deu, principalmente, nas vozes de Tommy Lee e Nikki Sixx. Este segundo, inclusive, chamou uma jovem fã ao palco para agradecer a todos e exaltar a renovação do público da banda. Ela aproveitou para pedir o baixo do músico de presente (vai que cola), mas teve que se “contentar” com o que o baixista ofereceu: uma selfie. Em tempos de redes sociais e likes, a proposta de Nikki pareceu suficiente.
“Kickstart My Heart” (uma das músicas mais legais da história do hard rock) fechou o setlist de forma matadora. Mesmo com a limitação vocal de Vince Neil, alguns vocais de apoio pré-gravados e a ausência de Mick Mars, o Mötley Crüe fez um show enérgico, pra cima e entregou uma verdadeira viagem no tempo, que agradou — e muito — os presentes (com ou sem calças justas de lycra, maquiagens carregadas e cabelos compridos cheios de laquê).
Uma breve pausa para que as mudanças no palco fossem realizadas e, por volta das 21h30, eis que o Def Leppard dá as caras (durante a turnê as duas bandas têm se revezado entre quem “abre” e quem fecha a noite). Joe Elliott (vocal), Phil Collen (guitarra), Vivian Campbell (guitarra), Rick Savage (baixo) e Rick Allen (bateria), que atualmente promovem o mais recente lançamento do grupo, o álbum “Diamond Star Halos” (2022), subiram ao palco com a faixa de abertura do novo disco, “Take What You Want”. Daí para frente, uma saraivada impressionante de hits: “Let’s Get Rocked”, “Animal”, “Foolin’”, “Armageddon It”,”Love Bites”… Até a outra faixa do novo álbum a aparecer no set, “Kicks”, funcionou muito bem ao vivo.
Se a banda anterior tem seu som calcado no lado “mais sujo” do hard, o Def Leppard é um dos grandes responsáveis pelo lado, digamos, “mais harmônico e sofisticado” do estilo (principalmente nas linhas vocais). Foi um show impecável, com uma banda extremamente coesa, um Joe Elliott cantando muito e uma das duplas de guitarristas mais competentes (e menos comentadas?) da história do rock. Isso sem falar na precisão da “cozinha” formada por Rick Savage e Rick Allen.
E para encerrar o show, o Leppard escolheu quatro de seus maiores clássicos, que estão presentes em dois de seus maiores discos: “Hysteria”, “Pour Some Sugar on Me”, “Rock of Ages” e “Photograph” (só de escrever esses nomes, os pelos do braço arrepiaram aqui, tá louco!).
Nenhum dos dois shows contou com o famigerado “bis” (e convenhamos, precisava?) e, ao final de ambas as apresentações, as bandas prometeram voltar ao Brasil. Entretanto, dadas as circunstâncias da atual turnê, ou seja, os dois cancelamentos e a capacidade reduzida no Allianz, fica difícil acreditar que isso possa acontecer fora de alguma situação de festival, por exemplo. O que é uma pena, porque quem esteve presente viu duas performances dignas de duas bandas que, cada uma com suas características, resumem o que foi o hard rock em sua década áurea.
– Paulo Pontes é colaborador do Whiplash, assina a Kontratak Kultural e escreve de rock, hard rock e metal no Scream & Yell. É autor do livro “A Arte de Narrar Vidas: histórias além dos biografados“.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br/