Texto e fotos por Marcelo Costa
Depoimento para o Caderno 2 do jornal baiano A Tarde (leia)
Se nós olharmos o mundo hoje, rádios, TVs, a indústria cultural como um todo, o nome e a importância de Bob Dylan talvez passem despercebidos para muita gente. O que diz mais sobre o mundo moderno do que sobre Dylan. Porque Bob Dylan foi um big bang no entretenimento moderno, e provavelmente sem ele a música pop teria tomado outro rumo, sabe-se lá qual, mas não seria a mesma coisa. Porque a cultura pop moderna tem a assinatura de Bob Dylan. Os Beatles foram os grandes divulgadores da nova ordem cultural mundial na segunda metade dos anos 60, e eles estavam fazendo aquilo tudo influenciados por muitas coisas, dentre elas, Dylan.
Os anos 60 são um livro mágico da história da música moderna, e Bob Dylan, só ele, é um capítulo precioso desse período. Afinal, ele surgiu como um menestrel da esquerda americana com voz poderosa na luta pelos direitos civis. Quando percebeu que estava aprisionado nos adjetivos de “cantor de protesto” e “porta-voz folk de toda uma geração’, aumentou o volume das guitarras, colocou óculos escuros e jaqueta de couro e foi catapultado ao sucesso de massa com “Like a Rolling Stone”, single número 2 das paradas americanas em 1965. Ele tinha rompido com o Dylan trovador politizado e estava navegando nas águas turbulentas dos estados alterados da percepção quando conheceu os Beatles, e os trouxe junto nessa aventura (que mudaria a música pop de forma definitiva nos anos seguintes).
Em questão de quatro anos, Bob Dylan foi de promessa folk (1962) a cantor de protesto símbolo de toda uma geração (1963 / 1964) a Judas que traiu todos compondo três dos melhores e mais influentes discos pop dos anos 60 (1965 / 1966). Só esse período já bastaria para colocá-lo no rol dos maiores nomes da música moderna, mas quando o Verão do Amor se transformou em pesadelo, e alguns dos outros grandes nomes da música pop começaram a cair um a um (Brian Jones, Janis Joplin, Jim Morrison, Jimi Hendrix), ele se afastou do showbusiness, mudou o tom de voz, lançou discos que não pareciam Dylan e ficou oito anos sem fazer turnês. Oito anos!
Pra entender o nível do mito Bob Dylan nos anos 70, basta lembrar que o promotor Bill Graham colocou 500 mil ingressos à venda para uma turnê de 40 datas em 1974, e recebeu 12 milhões de pedidos! Os bons discos médios (para o padrão Dylan) que ele lançou no período de autoexílio (principalmente “New Morning“, de 1970, e “Planet Waves“, de 1974) prepararam o terreno para uma de suas maiores obras primas, o álbum “Blood on The Tracks“, e a turnê circense que se seguiu, “Rolling Thunder Revue“, ambas de 1975. Dai pra frente vieram mais duas dezenas de discos, mudanças de religião, uma participação no single interplanetário “We Are The World’ (1985) que virou meme recentemente, uma superbanda com George Harrison, Tom Petty e Roy Orbison e, ao menos, um disco impecável por década (“Oh Mercy“, 1989; “Time Out of Mind“, 1997; “Modern Times“, 2006; “Rough and Rowdy Ways”, 2020).
Em 2004, Bob Dylan lançou o livro “Crônicas“, e em certo capítulo explica: “Aonde quer que eu vá, sou um trovador dos anos 60, uma relíquia do folk rock, um artesão da palavra de tempos passados, um chefe de Estado fictício de um lugar que ninguém conhece. Estou no inferno do esquecimento cultural”. Quem dera todos os esquecidos cravassem três álbuns no número 1 da parada americana e quatro no topo da parada inglesa entre 2006 e 2020. Isso sem contar que esse homem é o único na história a ganhar o Nobel, o Pulitzer, o Oscar, o Grammy e o Globo de Ouro, grande parte destes prêmios neste novo século.
O Bob Dylan que chega agora aos 80 anos não é um homem que vive no passado. Nunca viveu. Desde 1988 ele estava na estrada com a mesma turnê (Never Ending Tour), e só mesmo uma pandemia mundial para o tirar dos palcos – mas não do estúdio. Bob Dylan é, talvez, o único ser-humano vivo presente na galeria dos maiores artistas de todos os tempos, uma sala que reúne nomes como William Shakespeare, Salvador Dali, Pablo Picasso, Ludwig van Beethoven… Quando falamos de Dylan, é desse nível de artistas que estamos falando. Não é apenas a História viva. É a História viva sendo escrita. Que seja assim por muitos e muitos anos.
– Marcelo Costa (@screamyell) edita o Scream & Yell desde 2000 e assina a Calmantes com Champagne.
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