Meu disco favorito de 2020: Neil Young

MEU DISCO FAVORITO DE 2020 #14
“Homegrown”, Neil Young
escolha de Bruno Capelas

Artista – Neil Young
Álbum – “Homegrown”
Lançamento – 19/06/2020
Selo – Reprise

Há quem possa dizer que escolher um disco gravado em meados dos anos 1970 como um favorito lançado em 2020 seja golpe. Até é verdade. Mas em um ano em que a dinâmica do tempo (e do espaço) se alterou de formas muito particulares, talvez não seja um truque tão grande assim. Até porque um dos ingredientes que fazem de “Homegrown” um disco em linha com a atualidade é justamente o que aconteceu entre sua concepção e o tempo em que veio à tona – tal como um vinho de guarda, ele se tornou melhor conforme envelhecia, ganhando novo corpo. Mas antes de abrir a rolha, algumas explicações do maître, por favor.

“Homegrown” só é um disco de 2020 porque ficou guardado por mais de 45 anos nas gavetas de Neil Young, tal como uma carta de amor cujo melhor destino parece ser o esquecimento. Só parece. Originalmente gravado entre dezembro de 1974 e janeiro de 1975, o álbum foi composto durante um período conturbado na vida do canadense. Após se encontrar com o sucesso com o clássico “Harvest”, de 1972, Neil se afundou em um coquetel de substâncias entorpecentes, dinheiro, solidão e morte – uma receita que os fãs reconhecem em obras hoje icônicas, como “On the Beach” (1974) e “Tonight’s the Night” (1975), gravados mais ou menos na mesma época. A essa fórmula, “Homegrown” adiciona ainda mais um ingrediente: um coração partido.

Criadas na estrada, muitas vezes dentro do trailer que o levava pelos EUA em uma turnê milionária e indulgente do quarteto Crosby, Stills, Nash & Young (produzida por ninguém menos que Bill Graham), as canções de “Homegrown” revelam o deterioramento do namoro de Young com a atriz Carrie Snodgress. Não era um relacionamento simples: além das incertezas comuns a um casal do showbiz, ainda havia a vida na estrada de Neil, a carreira abandonada de Carrie para ser mãe e o filho dos dois, Zeke, que havia nascido em 1972 com paralisia cerebral.

“Era um disco muito pessoal… e isso me assustou”, disse o canadense ao então repórter (de 18 anos) Cameron Crowe, em entrevista à americana Rolling Stone em 1975, ao explicar porque não havia lançado “Homegrown”. O álbum chegou a estar pronto para sair, com capa e tudo, mas Neil Young decidiu tirar o pé do acelerador. Em seu lugar, veio ao mundo “Tonight’s the Night”, gravado originalmente em 1973. Segundo a lenda, o conselho veio de Rick Danko, baixista da The Band, que ouviu os dois discos em uma festa íntima (com trilha… animada, hein?) na casa de Young na época. E “Homegrown” foi engavetado.

Parte do material acabou aparecendo aqui e ali ao longo da carreira do canadense, com algumas músicas registradas em coletâneas e apresentações ao vivo. Carrie, por sua vez, morreu em 2004. Mas foi só em junho de 2020 que “Homegrown” pode ser ouvido como planejado, como um tira-gosto da caixa “Neil Young Archives, vol.II (1972-1976)”, lançada em novembro último e cheia de relíquias para os aficionados por tio Neil – como eu. Também pudera: só a ideia de um disco “perdido” já parecia saborosa demais. Descrito pelo próprio autor como “o elo perdido entre ‘Harvest’, ‘Comes a Time’, ‘Old Ways’ e ‘Harvest Moon’”, quatro dos discos da linhagem folk de Young, então, “Homegrown” ganhou notas de ansiedade antes mesmo da rolha ser aberta.

Mas este não é um disco de brindes – está mais para aquela taça dividida com um amigo próximo no balcão, já no fim de noite. Não é à toa que a primeira frase do disco é “eu quero pedir desculpas”. E enquanto pode se acusar Neil Young de muitas coisas, falta de sinceridade não é uma delas: “Homegrown” registra em canções a sensação bastante pessoal de quem fica perdido após o fim de um relacionamento, contemplando a vida solo (“Separate Ways”), o que poderia acontecer com mais esforço de ambas as partes (“Try”) ou até mesmo certo escapismo diante do desconforto (“Mexico”).

Em todas elas, chama a atenção o quanto Young está despido e solitário, mesmo quando acompanhado por amigos como Emmylou Harris, Levon Helm e Robbie Robertson – os dois últimos, você sabe, da The Band. Além do trio estelar, que aparece em poucas faixas, Young também é acompanhado na maior parte do disco pelo produtor e escudeiro Ben Keith e pelo baixista Tim Drummond. Mas isso pouco importa. Ouvir “Homegrown” é como andar pelos escombros de uma relação com um guia extremamente envolvido – mas não só.

Tivesse sido lançado originalmente nos anos 1970, como planejado, talvez “Homegrown” não mudasse muito a carreira de Neil Young – não há no disco nenhum hit evidente, nem nenhuma grande mudança estética. Seria tido como mais um de seus grandes discos da época, naquela que é provavelmente sua fase mais admirada. Mas, ao sair em 2020, e, especialmente em meio ao período de isolamento social, ele ganhou novos contornos.

Passadas quatro décadas, a dor de um relacionamento partido se transforma em algo maior: a celebração e o respeito por aquilo que se viveu. É um exercício que cometi bastante nesse ano esquisito. Sozinho no quarto e ansioso pelo futuro, optei por revisitar o passado em meio a pesadelos, manchetes ruins e dias frios, buscando encontrar algum sentido no que ficou pra trás. Como diria uma velha canção, “no fundo desse poço, achei algo que vale a pena”.

Tal como o álbum, passar por essa experiência talvez não faça tanta diferença no futuro próximo – afinal, novos erros estão aí para serem cometidos. Mas estar em acordo com o que ficou para trás é um bom passo adiante, para quando o mundo puder ser visto novamente para além de uma tela, uma janela e com sorrisos sem máscaras. É uma metáfora besta, mas a inspiração vem, mais uma vez, da própria carreira de Neil Young: mais do que um elo perdido entre os discos folk, “Homegrown” também explica como o canadense consegue saltar de uma fase obscura para as guitarras-solares-e-canções-sobre-seguir-em-frente de “Zuma”, também gravado naquela época e lançado no final de 1975. E essa explicação pode servir como um exemplo para nós.

Um dos períodos que mais revisitei neste ano, sozinho no escuro do meu quarto, foi o do começo da faculdade – uma época em que, em meio a álcool de baixa fidelidade, (falta de) experiências sexuais e relações esquisitas, muitas vezes perdi o norte do que estava acontecendo. Muitas vezes, eu voltava para casa no primeiro ônibus da Viação Padre Eustáquio tentando entender o que havia rolado ao longo da noite anterior. Era tudo muito confuso, mas um verso escrito no ônibus (já disse que era uma viação católica?) ajudava a me acalmar: “o choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã”.

Descobri anos depois que se tratava de um salmo, o que não combina exatamente com a minha natureza cética. Mas, ouvindo “Homegrown”, achei um substituto ideal para ele – e pude entender que o que deu errado no passado hoje merece carinho, afinal, foi o que me trouxe até aqui. Pode ser que ainda leve um tempo para a manhã do nosso tempo chegar, mas até lá, vale ouvir mais uma vez o “homem velho”. Saúde, amigos.

Bruno Capelas (@noacapelas) é fã de Neil Young desde criança e colabora com o Scream & Yell desde 2010. Nas horas vagas, é apresentador do Programa de Indie, na Rádio Eldorado, e autor do livro “Raios e Trovões – A história do fenômeno Castelo Rá-Tim-Bum”.

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