entrevista de João Paulo Barreto
“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”, escreveu Machado de Assis em “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881). A referência serve como um contraste à bíblica afirmação que prega que os pecados dos pais não recaem sobre seus filhos, uma vez que cada um é responsável pelos seus próprios desvios na vida. Do mesmo modo, a reflexão proposta neste preâmbulo casa bem com a ideia filosófica do pai que se torna o filho e o filho que se torna o pai, uma análise do modo como o peso representado por essa mudança em uma vida se aplica tanto a quem a gerou quanto ao rebento que poderá crescer suportando o peso de uma existência que não escolheu possuir.
“Texas Kid, My Bro“, quadrinho croata que a estreante Editora Poptopia traz ao Brasil, tem em sua abordagem ao mesmo tempo crua, violenta e subliminar, esse aspecto analítico do peso que uma influência paterna, seja ela negativa ou positiva, pode projetar em uma pessoa. Na história escrita e desenhada por Igor Kordey, baseada no conto de autoria de Darko Macan, o jovem quadrinista Radovan Brandt tem no seu sobrenome o peso do legado de Tomislav Brandt, veterano quadrinista criador de Texas Kid. Na relação abusiva e perniciosa que o genial Tomislav tem com seu promissor filho, as três referências feitas no preâmbulo desse texto se encontram de maneira dolorosa.
Apesar de herdar (e de modelar com esforço e estudo) o talento na criação de quadrinhos advindo de Tomislav, Radovan nunca encontra o reconhecimento, o respeito e o afeto necessários para caminhar por seus próprios passos. Tomislav tem em sua aspereza para com o filho um aparente modo de lidar com seus próprios traumas advindos da juventude. Trata-se de um ser cujos próprios tormentos da infância roubada pela necessidade de escapar da violência do quase inóspito ambiente ao seu redor, e o começo da vida na adolescência que também lhe foi surrupiada pelo serviço militar durante a Segunda Guerra Mundial, ajudaram a moldar o seu (mal) caráter insensível diante da necessidade de se fazer presente como pai.
O encontro direto e surreal com sua mais notória criação, o cowboy Texas Kid do título, que aparece encarnado e saído diretamente das páginas do aclamado quadrinho, o transforma. Sua vaidade evidente se torna preponderante e traz à tona toda a presença de um pai amoroso com a qual Radovan sempre sonhou, apesar de não admitir. Tal afeição, porém, é direcionada ao seu filho oriundo dos quadrinhos e não àquele biológico que sempre buscou por ela.
Assim, dentro de um mistério gradualmente desenvolvido por Kordey e Macan a envolver aquela figura espalhafatosa e, aparentemente, mortal que surge para desestabilizar ainda mais a relação de Tomislav e Radovan, “Texas Kid, My Bro” encontra um modo brutal de focar na catarse destrutiva que a presença do cowboy causará na vida daquelas pessoas. Nesse processo, um exercício metalinguístico no qual as camadas narrativas se fazem presentes entre a realidade dos quadrinhos e a realidade dos seus dois protagonistas torna o mergulho do leitor do lado de cá das páginas um exercício deveras instigante.
Daniel Loganeto e Kevin Freitas, os dois empreendedores por trás da Editora Poptopia, conversaram com o Scream & Yell sobre a aposta no mercado brasileiros de quadrinhos, missão que começou em um festival: “Fomos ao FIQ – Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte, em 2024, com a ideia de prospectar o mercado, conversar com parceiros em potenciais e conhecer artistas. Foi lá que decidimos dar o pontapé no projeto e voltamos analisando catálogo de editoras estrangeiras buscando obras que agregassem à cena nacional de quadrinhos”, relembra Loganeto.
“Abri uma loja de quadrinhos há doze anos em Piracicaba e, desde que o Daniel começou a produzir conteúdo para o Canal Poptopia no Youtube, estamos analisando o mercado. Juntos, fomos atrelando nossas ideias com objetivo de apresentar obras que fossem relevantes”, confirma Freitas. “Texas Kid, My Bro” está em processo de financiamento coletivo pelo Catarse (catarse.me/texaskid).
Sobre o primeiro lançamento da editora Poptopia, Daniel pontua o que pesou na decisão de escolher a obra de Macan e Kordey, ambos com diversas experiências, inclusive em gigantes como a Marvel Comics, como ponto de partida. “’Texas Kid, My Bro’ é um trabalho com muitas camadas. Ela tem possibilidades de tocar e dialogar com vários nichos dentro de quem coleciona histórias em quadrinhos”, aposta Daniel. No papo abaixo, você confere um pouco mais sobre “Texas Kid, My Bro”, e sobre a Editora Poptopia.
Como foi o início do projeto da Editora Poptopia?
Daniel Loganeto – Eu e Kevin fomos ao FIQ – Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte, em 2024, com a ideia de prospectar o mercado, conversar com parceiros potenciais e conhecer artistas. Foi lá que decidimos dar o pontapé no projeto e voltamos analisando catálogo de editoras estrangeiras buscando obras que agregassem à cena nacional de quadrinhos.
Kevin Freitas – Tenho uma loja de quadrinhos que abri há doze anos em Piracicaba e desde que o Daniel começou a produzir conteúdo para o Canal Poptopia no Youtube que estamos analisando o mercado. Juntos, fomos atrelando nossas ideias com objetivo de apresentar obras que fossem relevantes. O catálogo da ECC Ediciones, uma editora espanhola com tradição de lançar grandes artistas, foi um achado. Lá, encontramos “Texas Kid, My Bro” e “Moon Eaters”, que pretendemos lançar por aqui em nosso ano de estreia.
E como foi a escolha do quadrinho de Darko Macan e Igor Kordey?
Daniel – “Texas Kid, My Bro” foi selecionada por se tratar de um trabalho com muitas camadas. Ela tem possibilidades de tocar e dialogar com vários nichos dentro de quem coleciona histórias em quadrinhos. A história constrói um universo denso onde um personagem do velho oeste ganha vida e chega para bagunçar uma dinâmica familiar confusa entre os protagonistas Tomislav e Radovan, pai e filho, ambos criadores de HQs. Essa história em determinados momentos vira um drama de guerra, em outros parece ser uma grande aventura de western. No final, se desenrola um debate sobre quem é maior: criador ou criatura?
Kevin – “Texas Kid, My Bro” é um quadrinho desafiador. Você pega para ler e, a cada releitura, percebe novas mensagens. A relação entre o pai autor de um quadrinho famoso como Texas Kid com seu filho é o cerne da trama, o próprio título da obra ser “Texas Kid, My Bro” faz referência a como esse personagem vai ser um “irmão” indesejado. A própria trajetória do Tomislav, criador do personagem, é marcada pelo drama da Segunda Guerra Mundial e de como a região dos Bálcãs foi severamente afetada.
E como anda a curadoria para outros títulos futuros?
Daniel – Vamos trazer sempre quadrinhos que de alguma forma proponham debates para o momento que vivemos. “Absolution”, de Peter Miligan e Mike Deodato, discute redes sociais e streaming como exercício de uma lei totalmente futurista. Já “Texas Kid, My Bro” traz uma pegada mais clássica, pois são 225 páginas em preto e branco do Igor Kordey, um artista croata excepcional. Mais pra frente, teremos um quadrinho chamado “Kuno”, que é de artistas argentinos e trata sobre questões de identidade de gênero, amizade e aceitação.
Vocês falaram sobre a visita à FIQ no sentido de pesquisar sobre o mercado nacional e as possibilidade de prospecção…
Daniel – O mercado brasileiro de quadrinhos é versátil. Todo dia surgem novas editoras e temos muito campo para crescer. Apesar das pesquisas indicarem que poucos brasileiros lêem, aqueles que o fazem são uma parcela considerável. Mesmo assim, muitos ainda enxergam as histórias em quadrinhos como coisa para crianças. Nosso primeiro lançamento é voltado para um público mais adulto, mais experimentado nesse tipo de leitura. Porém, ao longo do ano, queremos flertar com outros públicos. Temos um livro sobre o Wolverine sendo preparado para os fãs de X-Men e da Marvel; temos um blockbuster dos quadrinhos americanos chegando, que é “Gone”, produzido pelo astro escocês Jock, autor de obras da Marvel e da DC e que, agora, vai ser publicado pela nossa editora. Estou realizando um sonho de infância de quando criança no bairro do São Caetano, em Salvador, quando eu visitava uma banca de revistas e sempre quis trabalhar nesse mundo dos livros. Agora, tenho minha própria editora e queremos contar todo tipo de história.
Kevin – O novo momento do mercado brasileiro de quadrinhos passa por aquilo que chamamos de gibisfera. São os influenciadores, resenhadores e imprensa especializada que divulgam as obras para um público cada vez mais seleto. Se antes o leitor ia às bancas e pegava pela capa, hoje ele pesquisa resenhas, reviews e impressões antes de fazer uma compra. Por isso o diferencial da Editora Poptopia vai ser sempre uma curadoria ampla e diversa com objetivo de atingir um público mais heterogêneo. Para quem está curioso sobre os nossos demais títulos, nosso site está recheado de novidades, além de nossas páginas nas redes sociais (Instagram / Youtube). Visitem!
Daniel – “Texas Kid, My Bro” tem a missão de ser nosso cartão de visitas para colecionadores em geral. Estamos caprichando na edição porque a história já é genial por si só. A dupla croata já fez diversas obras e ganhou prêmios pela Europa por essas histórias. “Texas Kid, My Bro” é violento e, às vezes, difícil, mas também é um quadrinho delicado e sensível. Não irá decepcionar quem apoiar nossa campanha de pré-venda no Catarse. Serão 225 páginas em papel couchê, para valorizar a arte de Igor Kordey, com capa dura e acabamento de luxo. Tem sido uma experiência sensacional lidar com os artistas e ver como eles ficam felizes de trazermos sua obra para um país enorme como o Brasil.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde, de Salvador, e é autor de “Uma Vida Blues”, biografia de Álvaro Assmar.