texto de Igor Müller
O shoegaze é a instituição mais sólida do alternativo – o ouvinte do Programa de Indie sabe que essa é uma piada interna levada muito à sério. Mais do que o gênero, os timbres e as texturas são recorrentes em diversas bandas desde o meio da década passada. A sonoridade, unanimidade entre as gerações de indies mais velhos, parece também atingir outras mais novas, adaptadas aos regimes de compressão digital e dos streamings, cada vez menos dinâmicos e mais massivos.
O novo shoegaze mescla texturas do gênero com outras referências dos anos 90, como slowcore, post-hardcore e até mesmo o rock alternativo hegemônico, tanto na matriz ‘loud quiet loud’ da primeira metade da década até o som hipertenso da segunda parte. Até mesmo o pós-punk pode estar nessa equação. O shoegaze contemporâneo parece aglutinar o rock alternativo sem perder seu jeito de ser.

Um caso muito interessante acontece no Brasil, com os paranaenses do terraplana, grupo formado por Stephani Heuczuk (voz e baixo), Vinícius Lourenço (voz e guitarra), Cassiano Kruchelski (voz e guitarra) e Wendeu Silverio (bateria. O certeiro “Olhar Pra Trás”, de 2023, atinge tanto o público já acostumado com o shoegaze, como apresenta horizontes que aproximam um novo público. O disco cumpre todos os pré-requisitos do gênero, mas a estrutura conceitual, minimal e enxuta dialoga com a nova realidade da audição musical, mais impaciente e metonímica, consequência da informação contínua circulando em nossos dias, que mutila a experiência sonora mais demorada. Para você ter ideia, alguns discos de bandas clássicas como Ride e Swervedriver duram uma hora e quinze, contra os 28 minutos encapsulados de “Olhar Pra Trás”. Antes de qualquer crítica, isso é um mérito.
Canções de amor doloridas, com guitarras gigantescas, riffs bem cortados dialogando uns com os outros, harmônicos involuntários que se chocam no alto da onda colossal do plano sonoro e misturam nos vocais, em uníssonos, enterrados no meio de toda essa turbulência administrada agora por um conceito enxuto que atende a audição dos nossos tempos. Algo dessa redução minimal acontece no clássico instantâneo “Violeta” (2019), do Terno Rei. Algo dessa redução pode ter a ver com Gustavo Schirmer estar por trás da produção dos dois discos, mas isso é só especulação.
Após uma estreia muito bem sucedida, e da consolidação no cenário alternativo brasileiro, o desafio do terraplana se torna continuar original sem abrir mão das conquistas do trabalho anterior. E a nova ossatura dos curitibanos se revela em “Natural” (2025), segundo disco recém-lançado pela Balaclava Records. A banda salta de um shoegaze estrito para uma banda de guitarras bem ao gosto do alternativo noventeiro. Algumas dessas influências que excedem o território da sonoridade já eram explicitadas pela banda, tais como Acetone, Duster, Unwound e outras tantas que circundam no território post-hardcore e adjacências desde “Olhar Pra Trás”, mas é em “Natural” que elas se tornam evidentes.
Isso também pode vir ao encontro com a maior sinergia da banda, com a experiência de palco, que cria uma interação que os permite buscar soluções diferentes das experimentadas anteriormente. Já na abertura isso salta aos olhos. Ainda “Que Salto No Escuro” tenha uma leve saudade de Cocteau Twins no começo, as guitarras avançam em uma mecânica um pouco diferente, e a voz, ainda que enterrada no meio dos instrumentos, parece não ficar enfumaçada no meio do flare sonoro típico do shoegaze. Tudo parece vir ao encontro em espaços de respiro que a sonoridade congestionada do shoegaze tradicional costuma obliterar. Há uma luminosidade que percorre essas frestas que refrescam o som de “Natural”.
“Amanhecer”, segunda faixa do álbum, chega aos ouvidos com um balanço diferente. O baixo espoca de uma maneira mais swingada, e por que não, sensual, com muita influência de Unwound na construção dessa linha, confessou Ste, a baixista do terraplana. O baixo também chama a atenção em “Hear a Whisper”, parceria com a conterrânea Winter. A linha tem um gosto de Joy Division, entrecortada por uma sonoridade de bandas que remetem ao revival pós-punk de bandas mais recentes.
Já “Charlie”, o primeiro single de “Natural”, é um ‘loud quiet loud’ moderno, mas com aquela saudade das madrugadas da MTV e com o charme do sotaque paranaense dos vocais na palavra divagando. “Airbag” é outra faixa que acompanha o mesmo espírito, assim como “Horas Iguais”, músicas que acrescentam à paleta do terraplana mais cores, ainda que as novas guardem também um certo grau de introversão.
A introversão pega demais os corações dos apaixonados por rock triste na bela “Todo Dia”, com um sabor do trio californiano Duster em sua melhor forma. “Desaparecendo” também é rock triste, o shoegaze mais estrito do álbum, coração na boca e uma vontade de fazer aquelas versões de dez horas ininterruptas que existem no YouTube. Completam o álbum “S.N.C”., com um solo no meio da música que é das melhores ideias de guitarra do rock brasileiro dos últimos anos, e a doce “Morro Azul”, faixa mais longa da carreira da banda, dilatando ao limite o shoegaze de estrutura diminuta do álbum anterior.
Mais difícil do que acertar de primeira, é não errar de segunda. “Natural” é o famoso ‘sophomore effort’, o esforço secundarista que a crítica musical anglófona gosta tanto de falar, uma aquisição de novos fatores, sem romper inteiramente com o que já havia conquistado. É preciso decompor um pouco da coesão do anterior para abraçar os novos elementos, nesse sentido o disco surge um pouco mais irregular, mas não menos interessante. Deixa no ar (e na mente) para quais lugares a sonoridade do terraplana pode caminhar nos próximos anos, mas isso é assunto pra depois, no momento só interessa saber como as músicas do novo álbum vão soar ao vivo.
Fique atento na agenda deles. O (novo) show promete…
Igor Müller é locutor de rádio e um dos responsáveis pelo Programa de Indie. A foto que abre o texto é de @solmostarda