Em novo documentário, Questlove evidencia a importância da música na história nos 50 anos do Saturday Night Live

texto de Davi Caro

Não há tradição na cultura norte-americana capaz de manter a complicada equação que iguala longevidade e relevância da mesma forma que o Saturday Night Live. O programa, idealizado por Lorne Michaels e televisionado em rede nacional via NBC desde sua primeira edição, em 1976 (cujos antecedentes e bastidores foram cobertos pela boa biopic “Saturday Night”, de 2024) é até hoje responsável por revelar grandes talentos da comédia e por servir como um trampolim para carreiras estelares no cinema e na televisão. Tão essenciais à sua fórmula de sucesso quanto o humor do qual fez seu carro chefe, porém, são as apresentações musicais que o SNL promove desde sua gênese, tendo trazido incontáveis gerações de músicos e grupos às televisões da população estadunidense há quase 50 anos.

Desde a montagem que abre “Ladies and Gentlemen…50 Years of SNL Music”, novo documentário disponibilizado para streaming via Peacock (a plataforma da própria NBC), na qual várias performances de artistas diferentes são recortadas e mescladas em um impressionante mashup, a produção, dirigida por Questlove, baterista dos Roots (que coleciona livros – como “Music is History” – e vários bons documentários musicais em seu impressionante currículo) demonstra entender a importância do programa que se dispõe a comentar: ao realizar junções que variam do esperado – “Under Pressure”, executada pelo Queen, junto à “Ice Ice Baby”, hit de Vanilla Ice – ao impressionante (“Yeah”, de Usher, junto à “Take Me Out”, do Franz Ferdinand), o longa elucida o quanto as apresentações servem como um mapa do mainstream musical americano ao longo das últimas cinco décadas. Em pouco mais de duas horas, e com inúmeras entrevistas de músicos, comediantes, atores e membros da produção, o filme se presta a destroçar mitos ao mesmo tempo em que suscita novas (e relevantes) perguntas. Isso sem nunca perder o foco naquilo que realmente importa: a música.

Apesar de adotar um formato menos convencional ao mostrar apresentações fora de ordem cronológica, a escolha se prova decisiva ao segmentar os trechos das gravações (com a adição de tomadas raras de ensaio) de acordo com a importância histórica que tiveram. Dividindo cada trecho em intervalos dignos de uma vinheta típica do programa em si, a estratégia de Questlove só faz evidenciar a natureza cíclica de movimentos artísticos e seu apelo co-geracional. É intrigante observar, por exemplo, como o SNL foi, ao longo de suas primeiras duas décadas, um programa que recebeu tanto nomes essenciais desde sua primeira transmissão (com Billy Preston como convidado) quanto estilos e artistas com menor inclinação para as paradas de sucesso até então. Gil Scott-Heron, Patti Smith, Devo, Sun Ra e Frank Zappa se revezavam com compositores como Paul Simon e os Rolling Stones, evidenciando a diversidade ditada por uma ideologia com pitadas de underground, ao mesmo tempo em que deixa claro o interesse em atingir (e desafiar) grandes multidões. Neste último aspecto, é fundamental destacar que, até aquele momento (como bem citado por Mick Jagger em sua entrevista para o longa) grande parte do entretenimento televisivo se amparava em playbacks, ao passo que a iniciativa de Lorne Michaels investia pesado na execução musical ao vivo – se colocando vulnerável a situações que traíam a disposição de audiências em serem expostas à música menos comercial. O registro da banda de Captain Beefhart, no qual uma platéia atônita nem sequer aplaude, é revelador neste sentido.

Não seria a última vez que o programa seria vítima de (ou agraciado por) sua própria imprevisibilidade. São muitos os momentos dignos de atenção e memória aqueles proporcionados pelo SNL ao longo dos últimos 50 anos, embora alguns cobrem destaque graças à sua importância histórica (e sejam merecedores dos debates que originaram desde então): a aparição da banda punk FEAR, ainda em 1981, deixou sua marca ao trazer um nível de caos induzido raramente (para não dizer nunca) visto na TV aberta americana, até pelo papel importante desempenhado pelo já ex-membro de elenco James Belushi em trazer a banda de Lee Ving ao ar. Já Debbie Harry, do Blondie, conta sobre os desafios em trazer, pela primeira vez, um grupo de rap aos estúdios, na forma do Funky Four + One. A lendária participação de Elvis Costello, junto aos Attractions, em 1977 (quando interromperam sua própria “Less Than Zero”, requerida pela gravadora, e irromperam em uma incendiária “Radio Radio”) originou a “lenda” de que o artista havia sido banido da emissora… apenas para retornar em 1989 e 1991 e chegar ao ponto de parodiar a própria intransigência ao lado dos Beastie Boys em 1999.

Claro que alguns imprevistos causaram reações mais “combativas”. A sempre lembrada (e até hoje digna de arrepios nos espectadores) atitude de Sinéad O’Connor em 1992 – onde a irlandesa rasgou, frente à câmera, uma foto do então Papa João Paulo II ao fim de uma versão de “War”, de Bob Marley – foi alvo de escândalos e enterrou os prospectos comerciais da cantora nos EUA. Quatro anos depois, foi a vez do Rage Against the Machine se posicionar de maneira explosiva no palco dos estúdios da NBC: escalados como a atração musical em um programa apresentado pelo candidato presidencial republicano para as eleições de 1996, Malcolm Forbes (também editor chefe da revista que leva seu sobrenome), Zack DeLaRocha, Tom Morello, Tim Commerford e Brad Wilk se sentiram censurados ao terem as bandeiras americanas de cabeça para baixo, suspensas sobre seus amplificadores como de costume, removidas de forma bastante incisiva pela equipe do programa. Uma performance até mais furiosa do que o normal antecedeu a vingança do baixista da banda, que enrolou uma das bandeiras e a atirou dentro do camarim que abrigava a família do candidato. Saldo final: a expulsão do quarteto dos estúdios, e a solidificação de sua reputação como uma força cultural anti-establishment aos olhos de boa parte da população estadunidense.

Nem todos os posicionamentos políticos tomados em rede nacional foram, porém, tão construtivos. O documentário dedica todo um segmento à gradual e estarrecedora derrocada de Kanye West, a medida que suas produções se tornaram cada vez mais ambiciosas, e o artista se mostrou cada vez mais problemático. O ápice se deu em uma tensa participação do rapper, que, ostentando um boné MAGA, fez alusões a uma eventualmente fracassada campanha para presidente nas eleições de 2020, antagonizou outros colegas de cena, e encerrou o programa em um longo e incoerente discurso que alienou boa parte do elenco e chegou às manchetes muito além da mídia especializada. Em uma espertíssima decisão criativa, a abordagem não-cronológica do documentário acerta ao dar sequência à enervante intervenção de Ye com gravações do primeiro episódio do SNL pós-9/11, onde um comovido Paul Simon entoou sua pungente “The Boxer” em um palco repleto de membros do esquadrão de bombeiros de NY, filmados ao lado do então controverso prefeito da cidade, Rudy Giuliani. Este, ao lado do inevitável segmento focado nos desafios da pandemia de COVID-19, é uma das mais tocantes passagens do filme, evitando abordagens pedantes em favor de exibir os muitos modos através do qual a equipe, e Lorne Michaels em si, contornaram os desafios do distanciamento social – destaque para a eletrizante performance de Jack White, responsável por reinaugurar as atrações musicais do programa em uma época onde todos sentiam falta da experiência de testemunhar apresentações musicais ao vivo.

E é exatamente este o grande trunfo de “Ladies and Gentleman…50 Years of SNL Music”. É inescapável, claro, tratar de Saturday Night Live sem abordar os esquetes que unem música e comédia; em alguns casos, a união das duas coisas acaba criando artistas que transitam entre os dois universos, tais como Eddie Murphy, Fred Armisen e o trio The Lonely Island, em suas muitas interações com os artistas e bandas convidados do programa. É claro que cinco décadas são tempo suficiente para que muitas apresentações possam ser tidas como merecedoras de destaque, e não é difícil pensar em performances que mereceriam mais atenção na produção: não existe sequer menção à embriagada e antológica participação dos Replacements, em janeiro de 1986, na qual o uso de linguajar explícito levou a banda a ser, de fato, banida pelo diretor principal (ainda que Paul Westerberg tenha aparecido como artista solo já na década de 1990). Tampouco se vê muito da icônica apresentação do Radiohead, em 2000, em pleno lançamento de “Kid A”, além de breves cortes de Thom Yorke e Jonny Greenwood em meio a montagens.

Longe de ser um demérito, tais faltas servem para elucidar ainda mais a relevância de uma atração televisiva capaz de se manter relevante até os dias atuais – tendo em vista as super-criativas aparições mais recentes de Billie Eilish, Olivia Rodrigo e Bad Bunny, a inacreditável função dupla de Timothee Chalamet como apresentador e atração musical já em 2025, na esteira de sua interpretação de Bob Dylan em “A Complete Unknown”, ou mesmo o grande evento comemorativo de 50 anos promovido recentemente pela NBC, que contou com performances de Cher, Eddie Vedder, e uma imprevisível reunião do Nirvana com Post Malone nos vocais. Muito se pode dizer sobre a unidimensionalidade de um programa que é mais representativo da música mainstream americana, especialmente em uma era onde o acesso à música é democratizado ao extremo. Longe de uma declaração de supremacia cultural (especialmente nos sombrios dias atuais), o trabalho de Questlove evidencia a dedicação de uma instituição televisiva a uma das mais vitais formas de arte que existem, ao mesmo tempo em que guia o espectador em uma jornada através de tendências passageiras e canções imortais, sublinhando alguns dos momentos mais importantes da música pop (ou nem tanto) do último meio século.

– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia mais textos dele aqui.

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