Cinema: “Trilha sonora para um golpe de estado” cria um intrincado panorama que mescla jazz, guerra fria e colonialismo

texto de Renan Guerra

Refletir o século XX a partir do jazz é um caminho riquíssimo e que sempre nos ajudou a repensar construções raciais e sociais dos Estados Unidos e, por conseguinte, dos países e artistas impactados por esse gênero transformador da música moderna. O documentário “Trilha sonora para um golpe de estado” (“Soundtrack to a Coup d’État”, 2024), do belga Johan Grimonprez, porém, coloca o jazz em um outro espaço: o de capital político e cultural em uma trama que une a ONU, a CIA, a Bélgica e, o personagem mais afetado de todos, o Congo, numa narrativa que envolve personagens como Louis Armstrong, Dizzy Gillespie e Maya Angelou até o de outros espectros, como Patrice Lumumba e Dwight Eisenhower. Indicado ao Oscar 2025 na categoria de Melhor Documentário e em cartaz nos cinemas brasileiros via Pandora Filmes, o longa-metragem é uma construção suntuosa que nos leva por um emaranhado político e sonoro cheio de impacto.

O filme se inicia em 1960 com a eleição de Patrice Lumumba, primeiro presidente democraticamente eleito do recém-independente Congo. Paralelamente, acompanhamos os meandros que envolvem um amplo jogo político para depô-lo. Países como a Bélgica (de quem o Congo era colônia) e os Estados Unidos se unem em uma cruzada que busca evitar uma crescente expansão pan-africanista da região, bem como “proteger” o Congo do fantasma do comunismo e, obviamente, proteger todos os projetos exploratórios dos recursos naturais do país perpetrados pela Europa e pelos Estados Unidos. Para isso, se inicia uma trama que envolve CIA, ONU e importantes agentes políticos da época; junto a isso é posta em prática uma bem planejada cortina de fumaça: uma turnê de Louis Armstrong pela África, com shows especiais no Congo. Tudo isso culmina no assassinato de Lumumba em 1961, gerando a revolta dos movimentos negros em diferentes países, especialmente nos EUA. Em protesto, os músicos Abbey Lincoln e Max Roach organizaram uma invasão ao Conselho de Segurança da ONU. Estes acontecimentos têm como pano de fundo a Guerra Fria em um momento de acontecimentos históricos, como o discurso de Fidel Castro na ONU e seu encontro com Malcom X em Nova York, ou mesmo a visita de Nikita Khrushchev, então primeiro secretário do Partido Comunista, aos Estados Unidos.

Esse resumo do parágrafo anterior é uma espécie de delimitação da espinha dorsal do filme, porém vale avisar algum desavisado: nada acima é considerado spoiler, estamos aqui falando de um documentário histórico, tudo aí está nos livros (e na Wikipédia). E mesmo se alguém considerar spoiler, nada desse texto se compara a experiência audiovisual que é assistir a “Trilha sonora para um golpe de estado”. Não espere um filme documental básico, com a sequência de narração off-imagens de arquivo-entrevista, no qual o didatismo impera. Grimonprez propõe um outro tipo de imersão: em seu filme, as canções de jazz dialogam com as imagens e ajudam a criar o ritmo narrativo, nos levando por um mar de informações, cabendo ao espectador ir montando esse quebra-cabeça e conectando personagens; para além disso, o roteiro não se furta em quebrar as perspectivas temporais e entrevê em breves incursões os impactos dessa história na atualidade, criando conexões e links que apenas expandem as possibilidades externas à obra.

Tudo isso se sustenta em dois aspectos primorosos: pesquisa e montagem. Para sua base textual/narrativa, o documentário usa o livro “My Country, Africa: Autobiography of the Black Pasionaria”, de Andrée Blouin, ativista revolucionária considerada durante os anos 1960 a mulher mais “perigosa” da África; o livro “Congo Inc.:Bismarck’s Testament”, do congolês In Koli Jean Bofane; “To Katanga and Back”, do diplomata irlandês Conor Cruise O’Brien; e as memórias em áudio do soviético Nikita Khrushchev. Para ilustrar e complementar estes textos e falas, o documentário se utiliza de um amplo acervo de imagens, entrevistas e apresentações musicais, que vão desde arquivos televisivos e jornalísticos, filmes caseiros, campanhas publicitárias até outros experimentos audiovisuais. Tudo isso ganha vida com uma montagem absurda, em que uma apresentação de Max Roach e Abbey Lincoln, por exemplo, pode ser o fio condutor para debates no Conselho de Segurança da ONU. A edição de “Trilha sonora para um golpe de estado” possibilita um diálogo entre som e imagem, entre jazz e política, assumindo uma ousada liberdade, como que bebendo da fonte do free jazz: canções são cortadas, remontadas, imagens ressonorizadas e apresentações musicais silenciadas.

Só esse trabalho de edição já seria por si só um indicativo de que este é um filme imperdível para quem ama cinema, porém o filme de Johan Grimonprez se amplifica em diferentes frentes, pois seria fácil se perder em tantas informações e acabar construindo um filme grandiloquente, porém anódino, mas o sucesso deste documentário se encontra realmente em sua capacidade de navegar por inúmeros fatos e personagens e ainda assim ser consistente em seu fio narrativo. A história de Patrice Mulumba, a chaga do colonialismo sobre o Congo e a discussão sobre o papel colonizador e exploratório da Europa e dos Estados Unidos sobre os países africanos: tudo é bem estabelecido e desenhado, construindo um panorama desse imbróglio e de como diferentes interesses se encontram, deixando bem claro como todas essas ações diplomáticas sempre têm suas razões e seus mistérios.

Johan Grimonprez cria um documentário grandioso, em forma e tese, e isso salta da tela para o espectador. É impossível sair indiferente de uma sessão de “Trilha sonora para um golpe de estado”, um filme que nos enche de questionamentos, de dúvidas e de incertezas. Trata-se de um filme essencial para quem minimiza a arte enquanto capital político, para quem busca pensar o mundo por perspectivas decoloniais e para quem entende a arte como espaço para questionar as nossas próprias crenças. É obra que nos relembra o horror e os dissabores de existir em nosso tempo, mas que também reforça a potência que é, em algum momento, existirmos no mesmo espaço-tempo que tantas figuras artísticas e políticas tão fortes que habitaram o nosso imaginário no século XX. Enfim, esta resenha pode ser vista como um texto de superlativos, mas acreditamos que você entenderá o porquê após assistir este filme.

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.

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