entrevista de Leonardo Vinhas
“Estética soul com atitude punk”, “poetas oprimidos do escabroso cabaré indie”, “uma banda em busca da beleza por mais de 30 anos”. Essas são algumas definições que já foram aplicadas à banda britânica Tindersticks, na ativa desde 1992, mas que virá ao Brasil pela primeira vez apenas agora em 2025, para um único show no Auditório Simón Bolívar, no Memorial da América Latina (São Paulo), no dia 16 de abril (ingressos aqui).
São definições justas, mas ainda imprecisas. O som do Tindersticks, embora costume ser apontado como “indie” ou mesmo “rock”, traz uma exploração dos possíveis formatos para uma canção que só pode ser chamado de “arte”, visto que cada composição nasce de um escrutínio de todas as possibilidades que aquela fagulha criativa pode revelar.
Essas ideias são buriladas há décadas por Stuart A. Staples, vocalista e principal compositor da banda. Mas desde o começo ele conta com a parceria do guitarrista Neil Fraser e do tecladista David Leonard Boulter, que participam ativamente do processo de composição. A eles se somam o baixista Dan McKinna (que entrou na formação em 2007) e o baterista Earl Harvin (desde 2010). Ainda que Staples esteja à frente da banda, é inegável a colaboração que todos os integrantes trazem à sonoridade única dos Tindersticks.
Produtores e músicos de apoio são trazidos para a receita com o mesmo caráter participativo, e o resultado é que cada lançamento de disco é, realmente, uma entidade única, que se destaca em sua própria identidade. O próprio Staples, porém, reconhece nesta entrevista que os primeiros álbuns, ainda com a formação original (que trazia o multiinstrumentista Dickon Hinchliffe e baterista Al Macaulay), e os últimos são os melhores da banda.
“Soft Tissue”, lançado em 2024 e pretexto para a estreia em solo brasileiro, é também um dos melhores lançamentos da banda (e do ano de 2024). Ele recupera a influência soul que se fez presente em alguns dos melhores discos dos britânicos, mas retendo o caráter experimental das trilhas sonoras que a banda compõe (a maioria delas para filmes da cineasta Claire Denis). O resultado é um álbum belo, que convida à atenção exclusiva para a sua audição e, principalmente, convida a um estado de espírito mais elevado e belo. Porque esse é o tipo de coisa que a música do Tindersticks faz por você.
Em conversa por videochamada, Staples falou sobre a gênese desse disco, os efeitos ainda vigentes dos anos pandêmicos e, principalmente, sobre a alegria de fazer música com parceiros que compartilham do mesmo desejo criativo. Papo excelente.
Você está falando de Paris, né? Você não morava na Grécia?
Passo o máximo de tempo possível na Grécia, mas por causa do trabalho, não posso passar tanto tempo por lá quanto gostaria (risos). Mas espero estar lá assim que voltar de São Paulo.
É inevitável perguntar sobre a turnê sul-americana, e queria saber como é para você ver que, mesmo com mais de 30 anos de carreira, sua música ainda pode levar vocês a lugares onde vocês nunca estiveram antes.
É bem animador. Nós não temos muitas oportunidades de tocar em um país novo, conhecer uma cultura diferente e tocar nossa música, então estamos bem animados com isso.
Tem uma banda underground brasileira, OAEOZ, que sempre disse que suas maiores influências são Tindersticks e Red House Painters.
(ri) Estou lisonjeado, o que posso dizer? (hesita) Obviamente é uma coisa bem bacana de se ouvir como elogio, então… ótimo! (risos)
E vai dar para bancarem os turistas em São Paulo?
Ah, eu não sei, tem tanto tempo de voo nos deslocamentos, e ainda não vimos a programação dos horários. Mas estou realmente surpreso com as distâncias envolvidas. O primeiro show é na Argentina (12 de abril, depois a banda se apresenta no Chile em 14 de abril antes de chegar a São Paulo, 16 de abril), e o tempo que vamos levar da América do Norte até lá é enorme (O Tindersticks encerra a tour de nove datas na América do Norte dia 10 de abril em Chicago)! Eu não esperava que fosse tanto! (risos) Ainda não temos o itinerário, portanto, mas espero que tenhamos um pouco de tempo. Vou ficar bem desapontado se não tivermos um tempinho para sacar um pouco do feeling da cidade.
Os shows aqui serão em um auditório, e a escolha do lugar foi bem recebida pelos fãs aqui, por acreditarem que esse seria o ambiente mais adequado para vê-los ao vivo. Mas teatros são realmente o tipo de lugar no qual vocês gostam de tocar?
Acho que chegamos a um ponto onde, se vamos fazer um show… (gagueja) Eu não quero que isso soe mais do que realmente é, mas nossa equipe trabalha o dia todo para fazer com que as coisas soem da melhor forma possível, é muito trabalho duro. Queremos tocar nossa música nas melhores condições possíveis, então somos muito cuidadosos quanto aos lugares onde vamos tocar. Por isso, estou esperando que o lugar onde iremos tocar (Auditório Simón Bolívar) seja adequado. Não gosto tanto de lugares onde as pessoas nos veem sentadas, mas se elas conseguem ficar à vontade e relaxadas em um teatro, acho que vai ficar tudo bem.
Vamos falar um pouco sobre “Soft Tissue”. Os discos de vocês sempre mostram uma boa variação temática e sonora entre si, mas este último álbum está radicalmente diferente de seu antecessor, “Distractions” (2021). Como a mudança foi grande, gostaria de saber se já havia era intenção consciente de se afastar do álbum anterior.
Acho que a história dos últimos três álbuns é meio isso, sabe? O disco antes de “Distractions”, “No Treasure but Hope” (2019), era muito naturalista. Compusemos ao redor do piano, ensaiamos muitíssimo, e ficamos muito pouco tempo no estúdio, inclusive gravamos ao vivo. Adoro as canções, mas ao fim senti falta de alguma coisa, que depois vi que era uma abordagem experimental, e isso me deixou realmente faminto para experimentar mais. Nesse sentido, a pandemia ajudou (risos), e “Distractions” foi uma guinada radical para nós. Com esse álbum, o que eu quis fazer foi ter esse escrutínio das canções que “No Treasure but Hope” teve, mas dar uma abordagem experimental a elas, para ver o que eu conseguia encontrar dentro delas para tornar o álbum sonicamente interessante para nós (risos). Então acho que este último álbum é meio que uma combinação dos dois anteriores, que são bastante diferentes um do outro. As canções são muito fortes, mas elas se arriscam o suficiente ao ponto de, musicalmente, tocarem em certas coisas nas quais nunca havíamos tocado antes.
Ele tem uma influência forte de soul. Essa influência já é presente há anos na música de vocês, mas me parece que, de alguma forma, ele traz uma leitura ainda mais particular das escolas de soul britânica e norte-americana. Você concorda?
A soul music vem dos Estados Unidos e os britânicos, especialmente nos anos 1970, tiveram sua própria leitura disso. Mas, ainda assim, era uma leitura. Sabe, quando eu tinha uns 11 ou 12 anos, tudo que eu ouvia era soul music. Eu tenho uma irmã que é cinco ou seis anos mais velha que eu, e ela só colocava isso para tocar em casa, ela era completamente fissurada no Northern Soul (movimento cultural que teve grande força na Inglaterra durante a primeira metade da década de 1970 – Staples nasceu em 1965), com toda a coisa dos “all-nighters” (festas que varavam a noite) e dos salões de dança. Era a cultura dela. A única música que tocava em casa era essa. Mas quando cheguei aos 13 ou 14 anos, veio o punk rock, e essa era a mínha música, sabe? (risos) Mas acho que a primeira música que ouvi de verdade, com a qual me conectei, foi mesmo o Northern Soul, e acho que isso nunca vai me abandonar. Alguém como Kevin Rowland, dos Dexy’s Midnight Runners, acho que vem da mesma cultura que eu. Ele é um pouco mais velho, mas essa mistura da atitude punk com a estética soul é muito importante nos primeiros trabalhos dos Dexy’s Midnight Runners, e acho que conosco acontece algo similar. Acho que são coisas que crescem tanto dentro de você que fica impossível deixá-las para trás (risos), foi algo que me ajudou a entender a linguagem musical quando eu era muito jovem.
Esses últimos três álbuns têm muito mais colaborações suas com Dan McKinna do que com os demais integrantes. É natural essa “alternância” entre parceiros, mas ainda assim, gostaria de saber o que tem estabelecido essa conexão criativa entre você e ele.
Acho que fazemos coisas muito diferentes: Dan é um músico muito natural, e eu, para ter uma ideia, preciso pegar um violão e tentar descobrir como a canção funciona. Como Dan entende, de certa forma, o que está passando pela minha cabeça, ele consegue não só me ajudar nessa descoberta, como também a interpretar essas ideias. Isso cria um equilíbrio muito natural para o processo de composição. E vice-versa: no disco, tem uma música chamada “Falling, The Light”, que creio ser uma das minhas favoritas no álbum, que surgiu com Dan tocando piano. Eu contribuí apontando “olha, essa parte pode ser o refrão, essa aqui pode ser outra coisa”. As coisas podem acontecer de forma inesperada com ele. E todo mundo na banda consegue contribuir de formas diferentes, cada um tem seus pontos fortes. O David [Boulter, tecladista] traz pontos de vista inesperados, que permitem que exploremos outros instrumentos, “Falling, The Light” tem muito disso. Mas o coração da canção foi composto por eu e Dan, e esse é um caminho muito natural que temos, de pegar pequenas ideias, pequenas e excitantes, e deixá-las encontrarem seu caminho nas canções.
E só por curiosidade: você ainda mantém contato com os ex-integrantes do Tindersticks?
Com alguns, sim. Mas eu sinto falta de todos! (risos).
Pois é, a banda não teve muitas mudanças de formação, se comparada com outros grupos, mas parecia haver uma camaradagem especial entre os integrantes da formação original.
Tinha mesmo, foi uma época muito especial em nossas vidas. Olhando pra trás, quando nós começamos, estávamos em nosso próprio mundo e tivemos cinco anos de liberdade verdadeira, de criatividade. Depois veio aquela coisa da realidade batendo à porta, sabe? A banda se torna seu emprego, o dinheiro que você ganha é o que está pagando o aluguel… Com a primeira formação, fizemos seis álbuns em 12 anos, excursionamos, e chegou a um ponto em que o desejo coletivo basicamente se esgotou, de certa forma. Acho que estar em uma banda tem tudo a ver com desejo coletivo, e se você não tem isso, meio que não tem nada. Naquela época (2006), eu achei que a banda tinha acabado, e eu fiz dois discos solo (“Lucky Dog Recordings 03-04” e “Leaving Songs”, respectivamente de 2005 e 2006) para ver como eu me sentia quanto a fazer música sozinho. Aí David e Neil [Fraser, guitarrista] vieram e disseram que deveríamos tentar fazer umas músicas e ver como nos sentíamos. E eu fui de cabeça aberta, tipo, “Ok, vamos ver o que rola”, e a coisa meio que cresceu a partir daí. Bastou uma semana, e a coisa começou a crescer. Acredito que os últimos álbuns que fizemos com a formação original, e os primeiros com essa formação, talvez não estejam no mesmo nível dos primeiros álbuns que fizemos, ou daqueles que entregamos nos últimos dez anos. Mas essa formação da banda é uma coisa em crescimento, até hoje, e nesse momento em particular, estamos em um lugar muito especial, muito particular. Foi desse lugar que “Soft Tissue” nasceu, e estamos buscando as mesmas coisas, querendo as mesmas coisas, e entendendo um ao outro. Acho que estamos apreciando um ao outro e vivenciando uma energia que nos empurra adiante.

Já faz anos que você escreve trilhas sonoras para filmes, e também dirigiu e compôs a música de curta “Minute Bodies: The Intimate World of F. Percy Smith” (2016). Nunca lhe deu vontade de escrever um roteiro para um longa, depois de tanto envolvimento com o cinema?
(Hesita) É uma coisa que me chega em ondas, sabe? (risos) Às vezes, tem períodos em que penso muito sobre isso, mas nesse momento atual, eu não iria querer isso. Nós acabamos de terminar uma turnê de 40 shows na Europa. No passado, chegaríamos ao fim de uma turnê dessas, e diríamos um ao outro, “ok, te vejo qualquer dia desses”. Mas nesse momento em que estamos, terminamos a turnê e estamos mais animados a sentar e conversar sobre o que vamos fazer em seguida, sabe? (risos) Tem essa… energia, e quando essa energia está aqui, eu fico bem feliz de compor. Me sinto bem demais com esse momento em que a banda está interessada no que vai acontecer a seguir, e isso é tudo em que penso num momento assim.
Tem uma última pergunta que tenho feito a alguns entrevistados, e não gostaria de deixar de fazê-la a você. Todos sabemos quão pesada foi a pandemia, tanto financeira quanto emocionalmente, para a maioria das pessoas, e para os artistas de um modo particular. Muitos, inclusive, ainda não se recuperaram totalmente dessa mudança tão drástica, e o mundo parece ter piorado desde então. Você sente que, para você e para a banda, ainda há esses efeitos colaterais nocivos, ou vocês realmente deixaram as dores daquele período para trás?
Ah, não, acho que estamos todos carregamos muitas cicatrizes dessa época, ainda que tenhamos dado continuidade às nossas vidas cotidianas. Acho que, quando houver um maior distanciamento, vamos conseguir enxergar isso como um grande ponto de virada. Não creio que o efeito que essa coisa teve em nós possa ser subestimado, seja em nível social ou individual, seja para bandas ou para qualquer pessoa criativa. Com “Distractions”, não tivemos tempo de nos juntar em uma sala e explorarmos a música juntos. Quer dizer, tivemos, mas por um curto período, quando as coisas estavam meio que se abrindo. Este último álbum muito provavelmente tem a ver com o fato de termos sido privados por tanto tempo de ficarmos juntos, e é bem provável que seja por isso que fizemos um disco com o qual ficamos animados e que gostamos muito de ficar noite após noite tocando as músicas. Então (ri), talvez nesse momento esse longo período de privação tenha tido um resultado bom, mas tem sido uma época muito difícil. Não é como se nossa banda estivesse imune aos problemas financeiros, mas tem também o lado criativo, e a própria vida em si – você tem que pagar suas contas, afinal. É uma coisa grande demais ainda hoje, enorme mesmo. Muitas pessoas abandonaram o negócio da música porque perderam o “momentum”, porque o “momentum” é uma parte importantíssima da criatividade, e se você o perde, é algo dificílimo de se recuperar.
Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e autor do livro “O Evangelho Segundo Odair: Censura, Igreja e O Filho de José e Maria“.
Contando os dias para o show!