texto de Leandro Luz
A cor ocre toma conta da tela. Paisagens alaranjadas situam o sertão goiano habitado por homens toscos. Antes de nos aproximarmos desses homens, no entanto, tomamos primeiro consciência da terra, da mancha de calor no horizonte, do ruído escandaloso dos carros velhos trotando pela estrada, até nos depararmos com os carros em si, surrados, brutos como os seus proprietários. Em “Oeste Outra Vez” (2024), o diretor Erico Rassi nos apresenta um universo repleto de tristeza, rancor e melancolia, mas também nos coloca em contato com um tipo de humor estranho que revela emoções tão complexas quanto podem ser as emoções humanas.
Uma chave para a entrada no longa-metragem vencedor do 52º Festival de Gramado e que está presente na programação da Mostra Vertentes da 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes pode ser a recorrência da qual o seu título informa. Outra vez estamos diante de uma obra interessada na amargura de homens abandonados à sua própria incapacidade de lidar com o mundo. O tropo da violência como única forma de comunicação externa, frequentemente utilizado pelos westerns na história do cinema, retorna com força na obra do cineasta goiano.
Já em 2016 Rassi havia lançado “Comeback”, filme sobre um matador aposentado e amargurado (Nelson Xavier) que não tem outra escolha senão voltar à ativa, uma espécie de combate ao próprio vazio existencial. Ambas as obras resguardam muitas semelhanças, ainda que, de um filme para o outro, o realizador tenha conseguido trabalhar com mais assertividade alguns de seus principais temas, assim como desenvolver consideravelmente o seu estilo como diretor.
“Oeste Outra Vez” traz Toto (Ângelo Antônio) como protagonista, um cara comum que acaba de levar um chifre da esposa (Tuanny Araújo), que o abandona para ficar com Durval (Babu Santana). O enfrentamento do homem traído com o amante se dá logo na primeira (e melhor) sequência do filme, na qual uma câmera sempre imprevisível, mas extremamente rigorosa captura a velocidade dos carros, a maneira sutil como as três personagens se entreolham, a porradaria desengonçada, o sangue no para-brisa. Entre uma troca de socos desenfreada e outra, notamos a mulher – última e única aparição feminina dos 97 minutos de filme – sair com calma da picape de Durval e caminhar lenta e pomposamente pela estrada: um momento mágico, filmado com precisão, que irá determinar tudo o que veremos adiante na trama, um périplo de autocomiseração pouco interessado em arroubos de redenção.
Rapidamente entra em cena o personagem que melhor carrega esse elo entre “Comeback” e “Oeste Outra Vez”: Jerominho (Rodger Rogério), um suposto matador contratado por Toto para se vingar de Durval. A sua caracterização é bem curiosa e efetiva, pois o chapéu carcomido, a camisa de botão bege e a jaqueta verde-musgo envelhecida fazem dele tanto um perfeito velho pistoleiro quanto um bebum frequentador de qualquer botequim dos rincões desse nosso Brasil. E é justamente nessa fronteira que está a graça do roteiro e das nuances da performance de Rogério. Logo na primeira tentativa de emboscada, Jerominho erra o tiro e Durval sai ileso, ávido por vingança.
Nessa rede de intrigas, com Toto e Jerominho em fuga, o filme ganha contornos de roadmovie, mas sem as típicas grandes transformações ou autodescobertas dos filmes de estrada. Na realidade brasileira masculina visionada por Rassi e sua equipe de colaboradores, o pessimismo dá o tom, algo que é reforçado pelo trabalho de fotografia de André Xará Carvalheira, com cores e texturas áridas que se colocam em sintonia com as locações escolhidas – tanto as externas quanto as internas. A minúcia da composição da direção de arte de Carol Tanajura também colabora com esse clima decrépito de um “fim de mundo” estéril, improdutivo, o qual apenas é atenuado pela força cooperativa que também se estabelece entre as personagens. A violência, o ressentimento e a melancolia dão espaço para a timidez, a união e a catarse.
“Você está chateado comigo?”, pergunta Jerominho para Toto. “Estou um pouco, sim, senhor”, o outro responde. Os personagens de Ângelo Antônio e Rodger Rogério refletem a tragédia de duas vidas inteiras condensadas em uma possível última aventura. O patético jogo de sinuca do início do filme dá lugar a uma catarse não exatamente redentora, talvez pacificadora. A sequência final ao som de “Tudo Passará”, na voz ímpar de Nelson Ned, nos é apresentada por meio de uma montagem paralela e progressivamente mais frenética entre a dupla protagonista com o seu jogo abstrato de sinuca e os homens anônimos que bebem, cantam e se abraçam no interior do bar. Há um mistério que ronda a nossa capacidade humana de sobreviver apesar dos nossos grandes fracassos.
“Sofrer de amor, pra mim, é morrer / Eu sou um sonhador, e você?”. A música “Fracassos”, composta e cantada por Fagner não está no filme, mas poderia. Assim como muitas canções de Reginaldo Rossi, Nelson Rodrigues e Amado Batista. Se falar de amor é brega, “Oeste Outra Vez” enxerga a vida pelo prisma do desalento. Fala de amor e, sobretudo, dos dejetos do amor. Entre o mijo, o sangue, as bitucas de cigarro e a música sofrida que explode através da jukebox, cabe a esses homens buscarem alguma saída, ainda que seja interna, superando um sentimento que invariavelmente voltará metamorfoseado de outros rostos, de diferentes amores. Como no plano da janela de um carro enquadrada dentro de outro frame da janela de uma casa, as perspectivas desses homens somam-se umas às outras, provocando um acúmulo desolador que, assim como a esperança na música de Nelson Ned, ao menos ensina a gritar.
“Oeste Outra Vez” tem estreia marcada nos cinemas brasileiros para o dia 27 de março de 2025.
Mais sobre a Mostre de Cinema de Tiradentes
– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.