textos de Marcelo Costa
“Eu Fui Traficante de Keith Richards”, de Tony Sanchez (Editora Sapopemba, 2024)
Spanish Tony (Sanchez) “trabalhou” para Keith Richards, “contratado”, por 8 anos, entre 1971 e 1979, mas começou a conviver com os Rolling Stones ainda no final da década de 1960. Em sua (deliciosa) autobiografia, “Vida” (2010), Keith diz que Tony, o espanhol, “era durão” e que ele “salvou minha vida uma ou duas vezes” (entre muitas outras citações), mas o mais importante é que Keith leu “Up and Down with the Rolling Stones” (título original de “Eu Fui Traficante de Keith Richards”, cuja primeira edição foi lançada originalmente em 1979 – e que chega ao Brasil agora com tradução de Letícia Lopes Ferreira) e, apesar de cortar relações com o ex-amigo (e, inclusive, ameaça-lo caso ele levasse o livro em frente), deu seu aval: “Sim, tudo que está no livro aconteceu”, confirmou o guitarrista dos Stones em uma entrevista. E do que se trata “tudo”? Bem, o cotidiano de sexo, drogas e rock and roll de uma das maiores bandas de todos os tempos. Acredite, não é pouco. Mesmo. “Eu Fui Traficante de Keith Richards” (ainda que Tony passe o livro todo dizendo que nunca traficou, apenas facilitou com que as drogas mais diversas encontrassem seus client… ops, amigos, entre eles os Stones, o “mala” do John Lennon, Marianne Faithfull e muitos outros) não é apenas um dos livros mais reveladores sobre o cotidiano junkie e criativo dos Rolling Stones, mas sobre todo o mise-en-scene que gira ao redor de grandes artistas – e é facilmente perceptível que Tony pode ter contado muitas das histórias (repletas de detalhes) que preenchem o livro, mas a escrita é de um jornalista profissional, um ghost writer que entende não apenas de pesquisa como também de narrativa (o texto é muito bom!). Assim, de uma posição privilegiada, Tony observa a derrocada de Brian Jones, a gentileza de Paul McCartney e a construção de verdadeiras obras-primas do rock enquanto abastece Keith com drogas (ou o leva para trocar todo o sangue viciado de seu corpo). Chega a surpreender (e, em muitos momentos, assustar) como o guitarrista tenha conseguido (sobreviver e) ser criativo nos anos 1970 vivendo todo o tempo completamente chapado, ainda que seja um período em que a banda seja dominada por um Mick Jagger muito menos drogado que o parceiro. Divertido muitas vezes, depressivo em tantas outras e muito educativo (basta ler para querer distância de drogas pesadas), “Eu Fui Traficante de Keith Richards” é um dos melhores livros já escritos sobre os Stones, em particular, e sobre os bastidores do rock, no geral. Leia tendo consciência da abstinência que se seguirá de (ler sobre viciados em) heroína quando acabar…
“Nação Tomada Pelo Medo”, de Thom Yorke e Stanley Donwood (Darkside Books, 2024)
Em 1994, o designer gráfico Stanley Donwood começou a colaborar com o Radiohead, mas, principalmente, com seu amigo de escola de artes Thom Yorke (parceria que se estenderia a projetos como Atoms for Peace e The Smile). Ou seja, ele já estava lá assinando as artes de capas e singles quando o Radiohead deu ao mundo “The Bends”(1995) e “Ok Computer”(1997), e acompanhou “de perto” o amigo e a banda serem catapultados à fama mundial, transformando-os numa “droga de vaga sagrada”. O retrato dessa época foi desenhado de maneira intocável no documentário (lançado em DVD no Brasil) “Meeting People is Easy” (1998), que é didático em encapsular a claustrofobia da fama. Como alguém observou certa vez, uma celebridade é alguém que trabalha duro a vida toda para se tornar conhecido e, então, usa óculos escuros para evitar ser reconhecido. No caso do Radiohead, o resultado dessa epopeia fantasmagórica nós todos conhecemos: dois álbuns (óculos escuros) anti-pop de grandeza espetacular, “Kid A” (2000) e “Amnesiac” (2001) que expõe de maneira exemplar não apenas as cicatrizes da fama, mas, também, sintomas estendidos: a desordem mental e emocional causadas nos integrantes (em geral, e em Thom Yorke, autor das letras e cérebro da banda, em particular) pela super-exposição encontraram ecos em outros medos sociais, algo que talvez jovens não entendam tão bem hoje, mas que na época pareciam… plausíveis, uma sensação de “no future” ainda mais forte do que a experimentada pelos Sex Pistols e pela Inglaterra em 1977: a virada do milênio trazia consigo não apenas o derretimento desenfreado das geleiras nos polos (tema pontuado por Yorke no livro e nos discos) e o desmatamento acelerado da Floresta Amazônica como também “previsões” de caos tecnológico, econômico e aéreo, entre tantos outros. Para Thom Yorke, que já estava “doente” de fama, a virada do milênio e seus simbolismos o afundaram ainda mais na depressão, algo que “Nação Tomada Pelo Medo”, livro lançado no exterior em 2021, e com edição nacional em 2024 com tradução de João Paulo Cuenca, deixa exposto em carne viva para os leitores. Reunindo conversas entre Yorke e Donwood, rascunhos de letras, poemas inéditos, letras originais estendidas, divagações, listas aparentemente desconexas e sem sentido (principalmente para quem não conhece os dois anti-discos), “Nação Tomada Pelo Medo” é tanto um mergulho nos pesadelos mais assustadores desta dupla de lunáticos quanto uma visita a um manicômio particular povoado por destruição, ratos, promessas de assassinato e vislumbres de naufrágios. Não espere momentos de beleza clássica aqui, mas sim de beleza artística… tal qual “Black Mirror” (não pense em “San Junipero”, mas sim em “White Bear” e “The National Anthem” – não a toa, uma canção de “Kid A”). Um livro tenebroso, genial e essencial.
“Good Pop, Bad Pop: Um Inventário”, de Jarvis Cocker (Editora Terreno Estranho, 2024)
Indo direto ao ponto: “Good Pop, Bad Pop: Um Inventário” é daqueles livros que merecem a etiqueta de “obrigatório”. Agora que o elefante foi retirado da sala (havia um receio do resenhista em terminar esse texto sem “dizer” o quanto esse livro é foda), vamos desbravar a “história”: Jarvis é o cérebro do Pulp, banda inglesa classuda que batalhou todo os anos 1980 e metade dos 1990 no underground até colocar um álbum no topo das paradas britânicas (“Different Class”, de 1996). “Good Pop, Bad Pop: Um Inventário”, livro lançado pela destemida Editora Terreno Estranho (com tradução de Daniel Benevides), porém, tem apenas um propósito: fazer com que o leitor seja cúmplice de Jarvis numa tarefa repleta de surpresas deliciosas, que é decidir o que das quinquilharias que ele acumulou num sotão durante 20 anos ele deve guardar ou desapegar. O que Jarvis propõe (e, inclusive, está no âmago da banda que ele próprio criou!) é que o que a sociedade descarta pode ser tão ou mais interessante do que o que ela idolatra. Parafraseando outro, raspas e restos interessavam muito a um jovem Jarvis, que batia ponto nos brechos e lojas de caridade de Sheffield tanto para criar um visual próprio para sua futura banda (que seria criada oficialmente em 1978 e, em 1981, ganharia uma session no programa de John Peel, na BBC, em Londres) quanto para adquirir cultura (comprando livros e filmes e discos por centavos) e tomar chá de graça (eram tempos difícei$). “Good Pop, Bad Pop: Um Inventário”, então, enfileira objetos (um sabonete velho, uma sacola promocional de Margaret Thatcher, um caderno de esboços do que um adolescente Jarvis queria pra sua banda que ainda não existia) que servem a uma narrativa que busca contar a história de vida de Jarvis e os primeiros anos do Pulp, mas acaba, também, encapsulando um período marcante da história britânica, em que as TVs eram alugadas para as famílias (que colocavam moedas num dispositivo para ter acesso a um tempo determinado de programação – o dinheiro seria recolhido por um funcionário da empresa na casa do ‘inquilino’ mensalmente) e que ainda existia auxílio desemprego (projeto do governo que manteve Jarvis na lida por anos até ser encerrado por Thatcher). Há momentos brilhantes, como quando Jarvis vai gravar no estúdio de Stevie Albini, que fica horrorizado com o fato de Jarvis gostar de música (good) pop (que, na Inglaterra dos anos 1970 e 1980, era algo bem diferente do que viria a se tornar dos anos 1990 pra frente), ou quando ele é convidado pela BBC para entrevistar Leonard Cohen ao vivo, ou, ainda, quando ele “rouba” no jogo de “guardar ou desapegar” do sotão escolhendo algo que não estava no depósito, uma coletânea dupla em vinil do Velvet Undeground que mostrou a ele todo o potencial da Arte. Há mais, mas o espaço aqui acabou, o que deixa a dica: compre esse livro. Ele é brilhante em demonstrar como pode existir muita coisa legal por trás de coisas aparentemente banais provando que até as pessoas comuns podem ser geniais.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.