Ao vivo: Information Society em Bangu, um milagre a ser celebrado por todos, no palco e na plateia

texto e imagens de Marco Antonio Barbosa

Karl Marx escreveu em 1852 que “os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes (…): a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. Mas quando a primeira vez já era farsesca, como se apresentaria a segunda? Algo parecido deve ter passado pela cabeça de Kurt Harland, vocalista do Information Society, quando a banda apresentou o megahit “Running” na noite de domingo (15/12), na Arena Bangu (RJ). Foi logo a segunda música do show.

Qualquer brasileiro na faixa dos 45-55 que conheça essa música – e muitos, muitos brasileiros conhecem – também conhece o infame corinho “VAI-TO-MAR-NO-CU” puxado pela plateia, rimando com os versos terminados em “you” (assista). Mesmos os mais jovens devem conhecer a tradição, que já tem 35 anos; a gravação é de 1985, mas estourou aqui em 1989.

Não sei se Harland leu Marx. Ainda assim, em concordância com o velho barbudo, o cantor elevou a farsa ao quadrado. Cada vez que a massa mandava o coro obsceno, o vocalista fazia uma careta e tapava os ouvidos com os indicadores. Mas na segunda repetição do refrão – sem desfazer a careta – trocou a letra por sonoros “Vai tomar no cu”. A massa simplesmente pirou. Na boa: um dos grandes momentos da temporada de shows internacionais de 2024, um ano transbordante de grandes momentos.

O simbolismo histórico de assistir ao Information Society em Bangu em 2024 pode ser difícil de entender para os não-cariocas.. Retrocedamos então. Situado a cerca de 40 quilômetros do centro da capital, o bairro da zona oeste do Rio de Janeiro é nacionalmente famoso por seu clima tórrido. No plano musical, a fama da localidade se deve ao Cassino Bangu, clube criado em 1907 e que, a partir da década de 1970, tornou-se um dos epicentros da cena suburbana de black music no Rio. Os bailões do Cassino, inicialmente com bandas ao vivo e depois à base de “música mecânica”, foram uma das grandes escolas para os DJs que, misturando techno, r’n’b, hip hop, electro e Miami bass, criaram as fundações do funk carioca nos anos 80.

Talvez valha a pena explicar também, ao leitorado mais juvenil, a proporção do fenômeno chamado Information Society no Brasil. Depois de emplacar várias músicas em trilhas sonoras internacionais de novelas da Globo, o InSoc se tornou, entre 1989 e 1992, uma das bandas gringas mais bombadas no país, com rotação frenética nas rádios (até nas AMs!), programas de auditório e na então engatinhante MTV. No auge da fama, chegaram a tocar ao vivo até no Amazonas. A rigor, entre os tantos clones de New Order / Depeche Mode disponíveis no mercado, o Information Society nem chegava a ser dos mais inspirados. O diferencial era a clara influência do electro, pavimentando a identificação com o povão que frequentava os bailes funk oitentistas. (“Running” já tocava nos bailes bem antes do grupo estourar.) Daí para o mainstream, foi um pulo.

Por isso, a excursão ao subúrbio. Em seu recente giro pelo Brasil, o InSoc passou pela Fundição Progresso (no Centro do Rio), Ribeirão Preto, Goiânia, São Paulo, Belo Horizonte, Brasília. Mas o lugar ideal para experimentar essa viagem no tempo só poderia ser mesmo a Arena Bangu – que de arena tem nada, é só um palco ao ar livre cercado por algumas tendas vendendo comidas e bebidas, no estacionamento de um shopping center. Quem foi aos outros shows da turnê pode ter conhecido a banda na MTV ou nos discos de novela. A patota reunida em Bangu era o público roots do InSoc, que ajudou a projetar a banda para o cenário pop, assistiu à ascensão súbita e ao sumiço idem. E, em 2024, recebeu os caras como se ainda fosse 1990.

À espera pelo início do show, algumas peculiaridades precisam ser observadas pelos neófitos. Como de costume nas domingueiras, a festa começa cedo (portões abertos às 17h), pois a noite é longa (e dia seguinte tem trabalho). A impressão é que todo mundo se conhece; grupos grandes chegam “uniformizados”, trajando camisetas personalizadas homenageando seus bailes favoritos. Há um vasto espaço com mesas e cadeiras, outra tradição dos clubes suburbanos. E a própria pista fica tomada por tamboretes com baldinhos de gelo e latas verdinhas. Muitos dos cinquentões arriscavam passos sincronizados ao som do DJ Fernando Flashback, que desencavou o melhor e o não-tão-melhor-assim do pop dançante do fim dos anos 80/começo dos 90. De Snap!, Milli Vanilli (!) e Jon Secada, todo mundo se lembra. Confesso que precisei apelar ao Shazam para identificar “Tell Me, Tell Me”, do Moskwa TV, e “Don’t Cry Tonight”, do Savage, entre outros menos cotados.

Notturnia

A noitada dançante é organizada como um menu degustação. Depois dos amuse-bouches servidos pelos discotecários, vem a entrada, com o show do Notturnia. O requisitado conjunto de baile esquentou a galera por 1h20. O vasto repertório (a playlist deles no Spotify tem mais de 200 músicas) vai de “Maria Magdalena”, de Sandra (essa eu não ouvia desde os meus 13 anos) a New Order (uma versão roqueira para “Blue Monday”). A vocalista Neíra se desdobra com habilidade para emular Madonna, Lisa Stansfield e Cher. E ela tem bom humor – ciente das carecas e dos tons grisalhos nas cabeças dançantes, provoca: “Vamos distribuir Dorflex pra todo mundo depois!”. O espírito é o mesmo das matinês setentistas, quando os DJs ainda eram coadjuvantes e o som dos bailes era mais eclético (e menos brasileiro).

Depois do agito do Notturnia, o prato seguinte, oferecido pelo Kon Kan, pareceu insípido e requentado. Em sua encarnação original (1988-1993), o projeto synthpop comandado por Barry Harris tocou bem por aqui. Só que nunca passou de um sub-Pet Shop Boys, vitaminado pelo uso maroto de samples. Harris ainda exibe boa forma física e vocal. O show segue o esquema me-engana-que-eu-gosto, com bases pré-gravadas para o vocalista e a parceira Kimberley Wetmore (que, com o joelho contundido, cantou sentada) soltarem a voz em cima. O que faltou mesmo foi repertório. Após o temporal de hits do show anterior, a galera esfriou consideravelmente, só voltando a animar nos sucessos “Harry Houdini” e “I Beg Your Pardon”. E ainda teve um bis, requisitado por exatas zero pessoas.

Kon Kan

Enfim, chegou a vez do prato principal. Kurt Harland, Jim Cassidy (baixo, teclados) e Paul Robb (teclados) retomaram as atividades de forma regular em 2009 e desde então já vieram ao Brasil várias vezes. (A última passagem, em 2023, fora anunciada como “a turnê de despedida”). A intimidade entre a banda e o público local é nítida, traduzida na rabugice teatral de Harland e na performance galhofeira de Cassidy; Robb praticamente não se mexe.

Impecável o show não foi, ao menos nos aspectos técnicos. Problemas com o som e trocas de figurino abriram pausas alongadas entre as músicas. Harland parecia enfezado com a equipe, mas não dava pra saber o que era teatrinho e o que era encrenca séria. Entre as canções, provocações hilárias ao público em português macarrônico. “Hey, you, with the red hair”, aponta o cantor para uma fã que deve ter sido avistada no show da Fundição Progresso, dois dias antes. “Não dois shows. Pagamento mais!”. Ao fim de cada música, faz mesuras exageradas em agradecimento… para logo em seguida fingir que olha a hora em um relógio imaginário no pulso. “Vamos terminar isso logo!”, berra. A massa gargalha.

Information Society

Depois da apoteose precoce com “Running” e de uma versão enérgica para “Peace & Love Inc.”, o set dosou sucessos e números menos famosos. Na sequência de “Walking Away”, Harland suspira: “Agora somos obrigados por contrato a tocar uma música do segundo disco” – e atacam “Think”, canção insuportavelmente ubíqua em boates e rádios lá pelos idos de 1991. Após tocarem “Run Away”, o vocalista comenta: “Como vocês sabem, lançamos três discos nos últimos dez anos… ah, uma pessoa ali sabe.” A empolgação se mantém razoável em “Great Big Disco World” e nos surpreendentes covers de “Don’t You Want Me” (Human League) e “Dominion/Mother Russia” (Sisters of Mercy) – as três com participação da cantora Marisa Winter.

A emoção é evidente para todos, artistas e fãs, ao fim da domingueira, mas Harland não dá o braço a torcer. “Estão vendo este dedo?”, pergunta ele, com o indicador esticado. “É o ‘dedo da última música’”. Não poderia ser outra além de “What’s on Your Mind (Pure Energy)”, o hit que iniciou o caso de amor entre o InSoc e o Brasil. (Vale registrar que faltou pelo menos um sucesso, “How Long”.) O bis único, com a balada “Repetition”, poderia soar anticlimático; não foi o caso, contrariando a máxima de mestre Marcos Bragatto (“Encerramento de show tem que ser pra cima”).

Antes do show começar, o telão informava em letras garrafais: “WARNING: THIS IS NOT ART”. Todos os presentes, no palco, bastidores e na plateia, sabiam (sabem) que o Information Society não passa de um truque derivativo, um cozidão de influências mais ou menos óbvias que, por um milagre, chegou longe demais. Tudo bem, estávamos todos ali, no palco e na plateia, para celebrar aquele milagre. Durante a longa volta para casa, ecoou na mente a frase dita por Harland depois que o grupo tocou “Walking Away”: “Essa música é do nosso primeiro disco, gravado quando nós tínhamos, sei lá, 16 anos. E como todos sabem, tudo o que se faz aos 16 anos é inesquecível”. Naquela quente noite de domingo em Bangu, milhares de pessoas concordaram.

O Information Society faz show no próxima sábado (21) no Vibra, em São Paulo

– Marco Antonio Barbosa é jornalista (medium.com/telhado-de-vidro) e músico (http://borealis.art.br). 

2 thoughts on “Ao vivo: Information Society em Bangu, um milagre a ser celebrado por todos, no palco e na plateia

  1. Show de reportagem; eu estava lá tudo muito lindo e bem organizado.
    A galera dos cinquenta são da pesada, show como esses ficará na memória de todos nós.
    Espero que a organização ” Sympla”.
    Consiga trazer mais eventos como esse dos anos 80,90 pra arena Bangu, pois com certeza estarei eu e minha esposa curtindo o melhor da nossa época.

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