texto de Davi Caro
“Nossa história seria carregada de referências ao Tarô, permitindo uma exploração hierática, alusiva e bem deliberadamente não-americana de um ícone americano. Uma história de loucos e excluídos. Uma história não de um mundo, mas do interior de uma consciência – a consciência do Batman, bem como nossa própria.”
Assim (d)escreveu o escritor Grant Morrison em seu livro “Superdeuses” (“Supergods”, 2011). No volume de quase 300 páginas, no qual o autor escocês tenta elucidar a presença dos super heróis junto ao imaginário popular ao longo das décadas ao mesmo tempo em que detalha sua própria participação nesta mesma longa história, o trecho no qual se dedica à examinar uma de suas obras mais importantes e celebradas é surpreendentemente curto, sucinto e verdadeiro. O legado deixado por sua primeira grande obra-prima, porém, vai muito além destas poucas palavras: lançado pela DC Comics originalmente em 1989, “Asilo Arkham: Uma Séria Casa em Um Sério Mundo” (“Arkham Asylum: A Serious House on Serious Earth”), colaboração de Morrison com o artista Dave McKean, se sustenta como o que, em retrospecto, pode ser observado como um momento de mudança junto ao status quo dos quadrinhos, e das publicações dedicadas aos heróis mascarados – sendo responsável por dar seguimento à ruptura iniciada com as grandes publicações que a antecederam ao mesmo tempo em que abria caminho para uma nova, e muito menos sutil, revolução.
Em uma chuvosa noite de primeiro de Abril, o Batman recebe uma convocação no mínimo perturbadora: os internos do notório Asilo Arkham (muitos deles postos ali pelo próprio Cavaleiro das Trevas) tomaram conta do manicômio, fazendo os médicos da instituição de reféns e, liderados pelo Coringa, realizando várias exigências. Entre elas, uma chama a atenção – eles demandam que o próprio Batman compareça ao Asilo. O que poderia se mostrar a receita perfeita para uma típica história do herói encapuzado se transforma em um verdadeiro pesadelo, conforme o vingador se depara com muitos de seus principais inimigos, e é forçado a batalhar para manter a própria integridade física e mental conforme é confrontado com novas, e desconstruídas, percepções de seus antagonistas. O Coringa, por exemplo, é descrito por uma das especialistas da instituição como alguém que escapa aos conceitos de sanidade ou insanidade, estando muito além desta dualidade; em se tratando de dualidade, inclusive, o gângster Harvey “Duas-Caras” Dent se mostra o mais transformado de todos os algozes do Morcego, condicionado a abandonar a moeda, através da qual realiza suas decisões, em favor de um baralho de cartas de Tarô, assim multiplicando sua gama de escolhas – ou as impossibilitando completamente.
Neste cenário, Batman precisa cruzar o inferno material e psicológico do manicômio e navegar um de seus maiores medos: o de que, por debaixo da máscara, ele próprio não seja tão diferente daqueles que aprisionou. O leitor também é exposto, em conjunção com as tribulações enfrentadas pelo alter ego de Bruce Wayne, à trágica história de insanidade que se abateu sobre Amadeus Arkham, o terapeuta responsável pela fundação da instituição que leva o nome de sua família: trazendo citações diretas do diário do médico, são apresentados detalhes sobre sua perturbadora infância e suas macabras experiências enquanto adulto, incluindo o destino de sua esposa e filha e, por consequência, sua própria queda em direção à loucura. Em seus relatos, se escondem antigos segredos e pistas que podem ajudar o herói encapuzado a sobreviver a um de seus mais íntimos e agonizantes desafios.
A primeira coisa a chamar a atenção em “Asilo Arkham” não poderia ser outra que não o magnífico trabalho de ilustração de Dave McKean. Suas estratégias pouco convencionais de utilizar artes abstratas e pinturas elaboradas junto a fotografias (ao invés de criar arte verossímil a fotos, tal qual o também brilhante artista Alex Ross tornou sua marca registrada) é fundamental na tangibilidade e na imersão de uma história tão surreal e não convencional – em que pese a convencionalidade aparente da trama. A caracterização dos personagens, sobretudo do protagonista da obra, também se destacaria mesmo em uma trajetória de tantos anos e diferentes percepções artísticas aplicadas ao mesmo universo. O Homem Morcego, em determinados momentos, assume uma presença quase espectral, o que contradiz a humanidade que o vigilante luta para reter. Simultaneamente, a riqueza de detalhes conferida à visão de McKean de antagonistas proeminentes como o Coringa, ou coadjuvantes como o Crocodilo, o Cara-de-Barro, ou Maxie Zeus, que, mesmo em breves participações, enriquecem e aprofundam o universo desenhado pelo artista. O resultado final é uma performance gráfica poucas vezes vista até então, e dificilmente igualada desde o lançamento da HQ.
A belíssima arte de McKean, porém, alcança sua plenitude quando colocada em conjunção com o fascinante roteiro de Grant Morrison. O escritor, que nunca fez questão de esconder sua fascinação pelos personagens que escreve (e desconstrói) vai fundo em sua exploração da intrincada psiquê de todas as figuras abordadas aqui. Seja construindo sutis paralelos entre as vivências de Arkham e do próprio Batman e a importância que ambas tiveram na construção de suas sinas, seja na forma ultrajante com a qual o Cavaleiro das Trevas encara a hipersexualizada e depravada natureza de seu principal inimigo – a cena na qual o Coringa apalpa o Batman é antológica – ou mesmo em suas breves, porém substanciais citações de diferentes confins da cultura pop, Morrison deixa sua ambição visionária jorrar em meio às páginas, costurando uma narrativa que levanta diferentes e ambíguas questões, e concretiza uma experiência única ao deixar as respostas à cargo de seu leitor. Em sua conclusão, o escocês deixa o caminho aberto para seu majestoso futuro dentro do universo dos quadrinhos, abrindo as portas para o longevo (e controverso) conjunto de sua obra.
Por mais desafiador e distinto que o novo trabalho fosse, a resposta excedeu as expectativas de todos: “Asilo Arkham” se tornaria a graphic novel mais vendida da história da DC, pegando carona no sucesso alcançado pelo “Batman” de Tim Burton, lançado no mesmo ano. A história também ganhou destaque por seu formato especial (chamado, nos Estados Unidos, de “prestige format”), com acabamento especial e encadernamento diferenciado típicos de material destinado a lojas de quadrinhos especializadas, em contraste com as HQs comercializadas em bancas de jornal. Tal formato foi preservado quando a editora Abril publicou “Asilo Arkham” no Brasil, em 1991, e repetido com êxito na republicação pela Panini, em 2004, para o aniversário de 15 anos – no exterior, a história ganhou capa dura e extras como esboços originais de McKean e o roteiro original de Morrison. A versão nacional, no entanto, continha algumas escolhas equivocadas em relação à impressão dos diálogos do Coringa, representados na cor vermelha, que os tornava difíceis de ler. Isto seria corrigido na edição definitiva, em 2019, e na última edição de luxo, em 2021, já sob o selo DC Black Label (a etiqueta então adotada para distinguir os quadrinhos lançados pela editora e destinados ao público adulto).
Além de inspirar diretamente a bem sucedida série de jogos de videogame de mesmo nome iniciada em 2011, “Asilo Arkham” foi fundamental para a construção de um novo público em meio aos incontáveis leitores dedicados à nona arte: Grant Morrison foi, junto a Neil Gaiman, Peter Milligan e Jamie Delano, entre outros, um dos principais nomes da dita “Invasão Britânica” dos quadrinhos (precedida pelo grande Alan Moore ainda nos anos 80), e – como seus compatriotas e colegas – se tornou um dos muitos talentos responsáveis pela popularização do selo Vertigo, iniciado em 1993 pela editora americana Karen Berger. Morrison trabalharia em vários outros títulos da editora, tendo reinventado com sucesso o personagem lado-B Homem Animal mesmo antes de “Asilo Arkham”, e também estenderia seus talentos à rival Marvel Comics na virada do milênio, revitalizando os X-Men em uma das mais emblemáticas encarnações da equipe de mutantes. Seu antológico “Grandes Astros: Superman”, lançado em 2004 com arte de Frank Quitely, promete inclusive ser uma das principais inspirações por trás do vindouro reboot cinematográfico do personagem pelas mãos de James Gunn. Já McKean também firmaria seu nome em meio aos grandes ícones de sua época: seu trabalho com Neil Gaiman tomou forma, primeiro, através das capas de “Sandman”, e depois evoluiria com a realização da impressionante minissérie “Orquídea Negra” (de 1991). Entre livros de fotografia e outras colaborações com Gaiman, o artista também trabalharia junto com músicos e bandas – tendo, inclusive, criado capas para Counting Crows, Alice Cooper e Tori Amos, para citar alguns.
Três décadas e meia ainda parecem ser pouco tempo para tomar dimensão da magnitude e brilho de “Asilo Arkham: Uma Séria Casa em Um Sério Mundo”. Muitas são as outras histórias do Batman cuja influência é palpável em adaptações do personagem para outros formatos – “O Cavaleiro das Trevas” e “A Piada Mortal”, de Frank Miller e do já citado Alan Moore, respectivamente, são apenas duas das mais citadas – mas o trabalho de Morrison e McKean é certamente mais do que merecedor de elencar tal ilustre lista. Seus méritos, na verdade, a destacam ainda mais: ao realçar a surrealidade e a dubiedade obscura por trás de uma narrativa teoricamente tão típica e corriqueira, os dois autores transcendem a mídia à qual sua obra é presa, e fazem dos conflitos de seu protagonista os dilemas que tomam conta de suas próprias imaginações, bem como de seus leitores. Mais do que uma história, “Asilo Arkham” é um conjunto de enigmas que demandam respostas, e para os quais o maior desafio continua sendo fazer as perguntas certas – não importa o quão perturbadoras elas sejam.
Leia também: “A Piada Mortal” é a história da origem definitiva do Coringa
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.