entrevista de João Paulo Barreto
Quando os personagens de “Retrato de um Certo Oriente” (2024), novo filme de Marcelo Gomes, baseado no livro “Relato de um Certo Oriente” (1989), estreia do escritor Milton Hatoum, se encontram prestes a se confinar em um barco que cruzará o oceano Atlântico saindo do Líbano em direção ao Brasil, o filme nos traz alguns depoimentos de pessoas que estão fugindo dos conflitos naquele período imediatamente após a Segunda Guerra Mundial. São pessoas que, em seus variados idiomas, falam de anseios e desejos em alcançar uma vida melhor para seus filhos, uma vida diferente da que eles tiveram. Pessoas que falam que aguardam a volta de entes queridos, que deixaram o país na esperança de uma melhora, mas que esse horizonte não se concretizou.
Em outro momento, vemos um palestino falar sobre sua expulsão de seu país e de sua tentativa frustrada de uma vida melhor no Líbano. As falas se entrecruzam vindo de vários idiomas diferentes, como a mulher que fala em francês de como se recorda das chamas oriundas dos bombardeios nazistas; a polonesa que lamenta ter perdido sua família, sendo aquele o mais triste momento de sua vida e que sua existência, agora, será longe de seu país natal ou o italiano que, escapando das ruínas deixadas por Mussolini, enxerga sua ida ao Brasil como o último bastião de esperança. São passagens como essas que entregam para o espectador a principal reflexão relacionada à incomunicabilidade e à intolerância que a obra traz.
Diretor de “Joaquim” (2017) e de “Cinema, Aspirinas e Urubus” (2005), Marcelo Gomes diz, nesta entrevista ao Scream & Yell, que conversou muito com o autor do livro, Milton Hatoum,: “Viajamos para Manaus e para Belém juntos. O Milton é uma pessoa incrível, encantadora, maravilhosa. E ele dizia para mim algo que me impressionou muito. Ele dizia que Manaus, no final dos anos 1940 e início dos anos 1950, parecia uma babel de línguas. Existiam pessoas de todos os lugares do mundo e pessoas de várias regiões da Amazônia que falavam outras línguas”.
Dentre as pessoas presentes na história estão os irmãos Emilie e Emir, libaneses que embarcam naquele mesmo navio em direção ao Pará. Fugindo de um conflito iminente no Líbano, os dois entram no navio que representa aquele encontro de diversas pessoas que buscam pelo básico em suas vidas. Naquela reunião de pessoas oriundas de diversas línguas, de diversos países, uma confluência se forma, a mesma confluência que será vista e vivida por eles já em solo amazônico. “Todos esses personagens foram expulsos das suas casas por questões raciais e políticas e estão à deriva no mundo, sejam lá os libaneses sejam lá os indígenas ribeirinhos da Amazônia, que são expulsos de suas terras”, diz Marcelo.
Na conversa abaixo, Marcelo Gomes fala sobre o processo de adaptação da obra, as mudanças em relação ao texto original e as reflexões voltadas para tolerância e fé. Confira!
A ideia de unir as culturas brasileiras e libanesa se faz presente, e não somente essas duas, mas durante o filme, encontramos pessoas de diversas nacionalidades. “Retrato de um Certo Oriente” cria essa sintonia, cria esse uníssono entre diversos povos. E em certos momentos, essa sintonia é trazida para tempo atuais, como quando vemos um personagem palestino lamentar o conflito pelo qual seu povo passa. Quando você leu o livro do Milton Hatoum e pensou em adaptá-lo para o cinema, essa ideia de criar tal uníssono já existia ou foi algo desenvolvido durante a escrita do roteiro e das filmagens?
Tive muitas conversas com Milton (Hatoum). Viajamos para Manaus e para Belém juntos. O Milton é uma pessoa incrível, encantadora, maravilhosa. E ele me contou algo que me impressionou muito: Manaus, no final dos anos 1940 e início dos anos 1950, parecia uma babel de línguas. Existiam pessoas de todos os lugares do mundo e pessoas de várias regiões da Amazônia que falavam outras línguas. Era uma grande Babel. E quando ele me contou isso, eu fiquei imaginando como construir essa babel de línguas. O livro se passa todo em uma casa. E eu decidi transformar, de uma forma ou de outra, a casa em um barco. Nessa viagem, os dramas que acontecem dentro da casa foram colocados dentro de um barco e nele busquei construir essa babel de línguas que começa ali e vai até a Amazônia. Para isso, decidi convidar atores libaneses para fazerem personagens libaneses e atores de uma etnia tucano do alto do Amazonas para fazer aqueles personagens indígenas do filme. Ou seja, eu trouxe pessoas dos lugares que elas vivem para elas construírem, para elas trazerem essa verdade. Uma verdade que vem com a língua delas, com o jeito delas serem, com as fisicalidades, o jeito delas observarem o lugar. Então, essa foi uma ideia fundamental para mim. Trazer essa babel de línguas que é realmente verdadeira. E era maravilhoso. Porque o que acontece no filme, esse encontro de culturas, já aconteceu no ensaio. E várias cenas do ensaio, eu levei para o filme. Agora, estudando a história do Líbano, você descobre que todos esses conflitos que existem no Oriente Médio começam nos anos 1940. E esses conflitos estão muito presentes. E a questão indígena, da terra indígena, acontece desde que os portugueses invadiram o Brasil. Então, o que eu quis, na realidade, porque o filme se passa no final dos anos 1940, era refletir uma situação atual. Porque o artista, de uma forma ou de outra, é tocado pelos grandes acontecimentos do mundo atual. E eu gosto sempre de colocar esses acontecimentos dentro dos meus filmes de época. É sempre assim.
O longa traz uma reflexão bem forte, também, sobre o êxodo causado pelas guerras e sobre os choques entre diferentes religiões, inclusive.
Sim. Todos esses personagens foram expulsos das suas casas por questões raciais e políticas e estão à deriva no mundo, sejam lá os libaneses sejam lá os indígenas ribeirinhos da Amazônia, que são expulsos de suas terras. Achei que ali tinha um elemento muito importante para a gente refletir sobre o mundo agora. O que o mundo vive nesse momento? O mundo vive um momento de ódio, de intransigência, de preconceito religioso. maioria das guerras são sobre isso. Ninguém me tira da cabeça que não são sobre preconceitos religiosos. São sobre poder, dominação e dinheiro. Então, acho que ali era o momento de fazer essa reflexão. Ali naquele porto, onde tem aquelas pessoas indo embora por conta da guerra. Ali no barco, onde você vê os europeus fugindo da miséria da Segunda Guerra, era o momento perfeito para apresentar aquilo. Quando a gente vive uma situação em que a Europa, que foi sempre uma região de pessoas que migrou muito para vários lugares do mundo, é reativa a qualquer tipo de imigração que acontece lá. E quando chega na Amazônia, a mesma coisa, a mesma questão da terra. Então, achei que ali seria o momento ideal para falar disso. No livro não tem isso. Mas tomei a liberdade poética de construir esse momento. que culmina naquela cena que, para mim, é o momento da utopia do filme, onde está o Omar, o personagem mulçumano rezando do lado da aldeia, e do outro lado da aldeia indígena está Emilie rezando para o seu deus, e, entre os dois estão os indígenas rezando para os seus deuses. E naquela arena, todo mundo se respeita. Todo mundo tem espaço para rezar pelo seu deus. Não tem nenhum tipo de conflito. Então, talvez a população originária da Amazônia tenha que ensinar isso ao mundo. Ensinar essa aceitabilidade das pessoas, não importa em que deus elas acreditem e de que cultura elas são. Porque quando os libaneses chegam na aldeia, ninguém pergunta a eles de onde eles são e em que deus eles acreditam. Talvez os povos originários estejam aí para nos dar essa lição para o mundo inteiro.
Acompanhando sua carreira já há um tempo, é perceptível em seus vários personagens uma busca por algo que os tirem da inércia. Seus filmes trazem uma reflexão sobre um ser humano solitário, sobre um ser humano em busca de uma conexão. No Juvenal, de “O Homem das Multidões”, no Ranulpho, de “Cinema , Aspirinas e Urubus”, e até mesmo em Joaquim, eu vejo isso. Estou viajando muito aqui?
Você tem total razão. Uma vez, uma crítica falou que o meu cinema é um cinema de personagem que estão em busca de uma tal felicidade que eles acham que vão encontrar se a vida mudar. Se eles forem a procura de uma aventura para mudar a vida deles. Eles estão todos assim. Desde o meu primeiro filme (“Cinema, Aspirinas e Urubus”, 2005), o Ranulpho vai em busca de uma aventura. Em busca de dias melhores. Às vezes, esses dias melhores não virão, mas eles estão na busca. Gosto de fazer cinema sobre personagens que não ficam inertes na vida. Eles vão à procura de algo. Eles são autores do próprio destino. Acho que esse é o tipo de cinema que me interessa, o tipo de personagens que eu gosto de construir nos meus filmes. Eles estão sempre indo em busca de alguma coisa. Eles sempre vão à procura de algo melhor. E nessa busca, sempre é uma viagem de autocompreensão deles mesmos. De autoconhecimento deles mesmos. Até “Paloma” (2022), que é o meu último filme, a personagem quer casar, quer ter uma vida melhor, mas, na verdade, ela constrói uma jornada de autoconhecimento. Ela vai se conhecer a partir daquela decisão que ela toma de casar-se na igreja. Sim, estão todos aí. Todos os personagens estão nessa seara.
Quando você mudou o texto literário na escrita do roteiro e adaptou a história para um navio, percebi que as elipses temporais passaram a surgir de forma muito orgânica no filme, denotando, assim, o tempo que eles passam naquele navio. Uma elipse que eu achei bem pontual e me atraiu muito foi a ideia do idioma português ser aprendido por Emilie de forma gradativa, nos fazendo entender essa passagem do tempo. O desafio de levar a narrativa para o navio também seguiu para você como um desafio de trazer essas elipses para o espectador?
Nossa, muito, muito, né? Primeiro que filmar em navio é muito difícil. Imaginar como você vai fazer a decupagem. Segundo, e o bacana do que você falou, é que você entende que houve uma elipse de tempo pelo comportamento daquelas pessoas, pela forma como elas estão no mundo. E a Emilie principalmente, porque ela vai mudando, ela vai sendo um ser mutável, ela é uma pessoa completamente diferente da que deixou aquele monastério no Líbano. A cada passo do filme, ela vai mudando. Ela muda na forma de caminhar, ela muda nas roupas, ela sai quase uma menina do orfanato e vira uma mulher nessa viagem. Enquanto o irmão dela, não. O irmão dela, que é o Emil, fica preso ao passado. Ela que dá a ideia de que o tempo está passando. E quando ela chega ao porto de Manaus, ela é uma mulher completamente diferente. E é até ela quem toma a decisão de ir para Manaus porque lá tem emprego. Na verdade, ela está à procura do grande amor da vida dela, que está indo para Manaus. Então, ela vira uma mulher dona do seu destino. Essas elipses são dadas de novo pela modificação da personalidade da personagem principal.
A opção de filmar em preto e branco traz na fotografia de Pierre de Kerchove imagens que saltam aos olhos. Queria lhe perguntar sobre essas opções estéticas do filme, bem como sobre o formato de tela que pontuou em mim essa sensação de confinamento tanto no navio quanto na floresta amazônica.
O filme é em preto e branco porque a Emile me disse que tinha de ser em preto e branco. Meus personagens são quem me dizem como a história tem que ser contada. A Emile tem medo daquela floresta. É uma floresta sombria. Assustadora. Ela vem de outra paisagem, de outra geografia. Então, aquilo é assustador para ela. Então, nada melhor do que aquela primeira vez em que ela se depara muito próximo à floresta. Ela está no barco e é à noite. E aquela floresta é sombria, né? Então, por que não transformar aquela floresta? Ao invés de ser aquele exotismo superficial de cinquenta tons de verde, dá uma densidade emocional dos cinquenta tons de cinza. Por isso que a gente decidiu fazer em preto e branco. E porque as fotografias que remetem ao passado também são em preto e branco. E o formato da tela é o formato da tela do cinema em preto e branco dos anos 1940, anos 1950 e eu faço uma grande homenagem ao cinema e à fotografia nesse filme. O filme começa com a fotografia e termina com a fotografia. Fotografias são fundamentais para a trama, e por isso mesmo que eu transformei “Relato de um Certo Oriente” em “Retrato de um Certo Oriente”. E, além disso, faço grandes homenagens ao “Hiroshima, Mon Amour” (1959), que é uma história de dois personagens de culturas diferentes em tempos de guerra. Amor em tempos de guerra, também. “O Encouraçado Potemkin” (1925) está ali naquelas redes. O Mario Peixoto, com “Limite” (1931), está ali naquele cais. Foi um momento em que decidimos fazer várias homenagens àquele cinema que sempre nos influenciou e pelo qual somos apaixonados. E aí o Pierre trouxe umas lentes especiais tipo as usadas no início da fotografia, em 1850, 1900. Ele colocou essas lentes que distorcem o fundo, mas não distorcem o rosto da personagem. E tudo isso acho que traz verdade. Uma verdade de época. Essa é a ideia.
E como foi o diálogo com Milton para apresentar as mudanças que o filme traz em relação ao livro?
Comecei o roteiro trabalhando com a Maria Camargo, que entende muito a obra do Milton. Às vezes até mais do que ele. A Maria adaptou o “Dois Irmãos”, trabalhou no “Órfãos do Eldorado”, no “Rio do Desejo”. Ela foi muito importante para me dar ânimo para ir pouco a pouco me afastando do livro. E depois eu trabalhei com o Gustavo Campos na segunda fase e, já mais distante do livro, construindo uma narrativa a partir dos meus desejos. Eu acho que, como o Ismail Xavier diz, ao escritor o que é do escritor. Ao diretor o que é do diretor. Acho que nessa adaptação eu não queria nem um pouco ser fiel. Eu queria ser estimulado por aquela leitura e construir uma transmutação daquela história para a tela do cinema. É muito louco. Você quando faz uma música inspirado em um quadro, ninguém te exige fidelidade. Quando você faz uma pintura inspirada em uma peça de teatro, também ninguém te exige fidelidade. Mas com literatura e cinema, as pessoas ficam dizendo: “Ah, mas eu pensei o personagem com outra fisicalidade.” “Ah, porque para mim o personagem…” Existem os donos do livro. E o Milton falou para mim: “Marcelo, tenha total liberdade para fazer o que você quiser. O livro já está aí.” Me imbui dessa liberdade. Porque tenho que fazer um filme que dialogue com o meu cinema. Isso é fundamental antes de tudo. Nunca mandei o roteiro para o Milton, acho que talvez preocupado em acabar minha amizade com ele, porque ele é tão meu amigo. Mas ele sempre foi muito generoso. Nunca mostrei o material filmado. Nunca mostrei nada. Um dia, o Milton estava no programa, eu acho, do Pedro Bial, com o Sergio Machado falando sobre “Rio do Desejo”. E o Pedro Bial ligou para a gente pedindo umas imagens do nosso filme que estava prestes a ficar pronto. E o Bial falou: “Mas Milton, tem outro filme vindo aí, né?” E o Milton disse: (imitando o tom de voz do Milton Hatoum) “É, mas desse eu não vi nada. O rapaz não me mostrou o roteiro, não estou sabendo de nada” (risos). No outro dia, a minha mãe, a pernambucana, ligou pra mim: “Meu filho, tem um rapaz que eu vi na televisão que está com raiva de você porque você não mostrou o filme para ele. Vá mostrar o filme para esse rapaz!” Aí eu liguei para o Milton e falei: “Olha, Milton, minha mãe falou que está na hora de mostrar esse filme para você.” Então, eu fiz uma cabine no Cine Sesc, em SP, mostrei o filme para ele e ele ficou encantado. Maravilhado. Mandou um texto incrível para mim. Participa de todas as conversas e debates e entrevistas comigo. Ele ficou realmente encantado com o filme. E ele ficou muito feliz porque eu reinventei em outra linguagem o “Relato de um Certo Oriente”. Eu digo que o filme é um “Retrato de um Relato de Um Certo Oriente”.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde, de Salvador.
O que me incomoda bastante é que é um filme que já abocanhou bons recursos, mas ainda assim, foi para o edital da Petrobrás arrecadar mais dinheiro que produtoras menores mais necessitadas, não tiveram acesso. Uma pena essa desigualdade.