texto de Gabriel Pinheiro
O dia é 18 de novembro. Tara Selter escuta ruídos no andar de cima. Há alguém na casa além dela. Na verdade, é apenas o seu marido, acordando para mais um dia como outro qualquer. Os ruídos de uma casa que desperta. Mas esse, na verdade, não é um dia qualquer. Ao menos não para Tara. Esse é o 121º dia 18 de novembro seguido que a mulher vive. O marido não sabe que ela está ali, escondida no quarto de hóspedes. No primeiro dia 18 de novembro — 121 dias antes daquele — ela estava em Paris, participando de uma feira de antiguidades. “Sobre o cálculo do volume” é uma ambiciosa septologia da dinamarquesa Solvej Balle, cujos dois primeiros livros acabam de ser publicados pela Todavia Livros, com tradução de Guilherme da Silva Braga.
Uma fenda no tempo prende uma mulher ininterruptamente no mesmo dia. Tara se vê obrigada a viver e reviver o mesmo 18 de novembro — um dia em que nada de substancialmente especial aconteceu. Uma fatia de pão caiu no chão no buffet de café da manhã do hotel. A visita a um amigo vendedor de antiguidades. A compra de uma moeda antiga, um presente para o marido. Não há nada que pareça explicar para Tara o porquê desse estranho acontecimento.
Enquanto ela segue consciente da repetição, o mundo ao redor a ignora. O marido, os amigos, os pais, a irmã, o vizinho. Todos vivem o 18 de novembro como se fosse a primeira vez — e, aparentemente, cada acontecimento daquele dia se repete, idêntico à primeira vez. A mesma fatia de pão caindo no mesmo café da manhã do hotel de Paris no mesmo horário. Mas há o fator Tara, que interfere no andamento das coisas. Se no primeiro dia 18 ela estava no hotel em Paris, no 121º ela está dentro de casa — ainda que o marido ignore completamente sua presença ali.
Num primeiro olhar “Sobre o cálculo do volume” traz ares de ficção científica. Tara se vê numa espécie de prisão temporal. Na mão habilidosa Solvej Balle, se transforma num exercício de escrita poderoso, que brinca com a repetição e a rotina, na história de uma mulher comum. O olhar reflexivo de Balle encontra um certa poesia escondida nessa anormalidade vivida pela protagonista. “Thomas não sabe, mas eu escuto e encontro caminhos no dia dele, e à noite me visto para as estrelas”.
Pouco a pouco vamos percebendo tanto as simetrias entre estes dias, quanto suas estranhas diferenças. Se alguns objetos da personagem permanecem com ela dia após dia, outros desaparecem sem explicação. Se a conta bancária parece retomar seu saldo inicial de um dia para o outro, produtos comprados e consumidos pela mulher no mercadinho da vizinhança não retornam, dia após dia repetido, esvaziando as prateleiras do estabelecimento.
“Sobre o cálculo do volume” joga com a nossa percepção de tempo e espaço de uma maneira viciante, mesmo quando nada parece acontecer no registro de um dia escrito por Tara — ela compila nesses dois volumes um período que cobre mais de mil dias 18 de novembro vividos, ainda que nem todos estejam registrados em texto. Quanto mais mergulhamos, mais enredados nos vemos em sua trama: um projeto ambicioso, habilidoso e singular. Mal posso esperar pelos próximos 18 de novembro de Tara Selter.
– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.