Com excelentes atuações e ótimo roteiro, a série “Pinguim” é um espetáculo digno do prestígio de seu material de origem

texto de Davi Caro

Por mais comentada e debatida que a escalação de Robert Pattinson como o protagonista do (excelente) “The Batman” (2022) possa ter sido, talvez nenhum elemento do elenco tenha se sobressaído tanto quanto um irreconhecível Colin Farell. Na pele do gângster e lacaio Oswald “Oz” Cobb – popularmente conhecido como o vilão Pinguim – o ator imprimiu, sob a batuta de Matt Reeves, um trabalho de atuação que realçava sua versatilidade e traduzia com perfeição a repulsa disfarçada de classe por trás de um dos maiores antagonistas do Homem-Morcego. Ainda que trabalhando bem em seu papel de coadjuvante, o catastrófico fim do longa deixava uma brecha aberta para o surgimento de sua figura asquerosa como um dos principais chefes do crime em Gotham City, a partir da morte do todo poderoso Carmine Falcone (então vivido por John Turturro).

“Pinguim” (“The Penguin”, 2024) expande o universo criado pelo filme alçando a performance de Farell ao centro, com Reeves (ao lado da showrunner Lauren LeFranc) retornando como produtor e consultor e uma porção de novos nomes sendo agregados ao elenco. Apesar de indissociável da produção que a antecedeu, a série – cujos oito episódios agora estão disponíveis via Max – costura com precisão uma narrativa que faz jus à nova apresentação do Batman de Pattinson ao mesmo tempo em que cria um enredo amarrado, com personagens surpreendentes em sua tridimensionalidade e potencial dramático, e aponta sem exageros os caminhos para o futuro do universo recém-estabelecido sendo fiel em sua ambientação e condução.

Em uma Gotham ainda sob recuperação da desastrosa enchente provocada pelo Edward “Charada” Nashton (interpretado por Paul Dano), Oz vê oportunidades de crescer na hierarquia criminal da grande e fragilizada metrópole. Um desastroso encontro com o inconsequente Alberto Falcone (Michael Zagen), filho de seu falecido chefe (aqui vivido por um pontual Mark Strong) cria um grande impasse para o aspirante a chefão, o colocando em rota de colisão com o jovem Victor “Vic” Aguilar (Rhenzy Feliz) e, eventualmente, sob as suspeitas de todo o clã Falcone. A família, por sua vez, se encontra em polvorosa com o retorno da herdeira Sofia (Cristin Milioti), recém saída do manicômio Arkham e em busca de um acerto de contas com o trágico legado deixado por seu pai – além de certa animosidade pregressa contra Oz. Promovendo Vic ao cargo de seu assistente, Cobb junta suas forças ao estabelecer contato com os grandes rivais do império de Carmine, os Maroni (capitaneados por Salvatore, trazido às telas por Clancy Brown) ao mesmo tempo em que busca proteger a mãe, Francis (Deidre O’Connell) que sofre de demência, e é reverenciada pelo filho ao mesmo tempo em que lida com seus próprios traumas.

É importante primeiro tirar o óbvio do caminho: Colin Farell é magnético em seu retorno à pele do Pinguim, ao mesmo tempo receptivo e ameaçador, capaz de conquistar a simpatia do espectador através de seu carisma apenas para surpreender com rompantes de psicopatia poucos momentos depois – esbanjando naturalidade sob camadas de maquiagem e próteses corporais que tornam praticamente impossível reconhecer o ator. Além disso, o roteiro preza por intercalar momentos de aparente ascensão e dilemas que apenas aprofundam a perturbada psiquê de Oz, seja para com seus capangas, ou em relação àqueles que um dia teve como seus superiores, e chegando até sua mãe enferma, com quem possui uma relação de dependência emocional que beira, por vários momentos, o perturbador. A química que Farell tem com os colegas de elenco, aliás, é de espantar, embora todos tenham seus momentos de brilho: seja com o ingênuo, mas esperançoso Vic de Rhenzy Feliz, cuja introdução e história de origem resultam em uma atuação digna de empatia e cheia de sentimento, ou com a estelar contribuição de Deidre O’Connell como Francis Cobb, alternando entre passagens de máxima fragilidade e uma sólida, mesmo que cada vez mais rara, lucidez.

A grande surpresa aqui, no entanto, é cortesia de Cristin Milioti: em sua performance como Sofia Falcone, a atriz entrega uma das melhores atuações do ano, e rouba a cena desde seus primeiros momentos sob a lente das câmeras. A aparente falta de escrúpulos de alguém injustamente tido pela sociedade como uma assassina serial é traída pelos enraizados traumas a ela perpetrados pelo próprio clã, e uma face mais humana e vulnerável é encarnada com graça e maestria por uma das mais versáteis atrizes de sua geração. O próprio desenvolvimento de Sofia (que, em determinado momento, abandona o sobrenome do pai em prol daquele de sua falecida mãe, “Gigante”) é abordado com um viés distinto daquela que talvez seja a mais reverenciada (e referenciável) aparição da personagem – a clássica HQ “O Longo Dia das Bruxas”, de Jeph Loeb e Tim Sale (1996) – apesar de impecável em sua realização, e capaz de acenar, mesmo que discretamente, para futuras linhas narrativas a serem abordadas neste universo. Aliás, importante ressaltar que, assim como o filme que sucede, “Pinguim” não faz parte do vindouro novo projeto de narrativas compartilhadas da DC encabeçado por James Gunn, sendo uma história que acontece em uma realidade alternativa (ou um dos muitos “Elseworlds”, para usar a terminologia preferida pela editora).

Ainda assim, a série procura referenciar o universo no qual se passa apenas pontual e substancialmente – como no bem ajustado final – através de um maior aprofundamento nos mais obscuros e dilapidados cantos de Gotham City, ao ponto de funcionar como um enredo (em grande maioria) completamente à parte dos desafios enfrentados pelo alter-ego de Bruce Wayne. Ou seja: não espere grandes aparições de outros antagonistas do Batman. Ao invés disso, acaba sendo mais proveitoso – e recompensador – se deixar levar por uma série que se sustenta por si só, através da força de um bom elenco e de personagens escritos com destreza e rica atenção aos detalhes. E mesmo assim, não deixa de ser invigorante testemunhar uma produção deste calibre conforme novos ventos sopram no território das adaptações de HQs para outras mídias. Em um mundo onde tanto se fala a respeito de saturação de filmes e séries que transportam os quadrinhos para outras mídias, “Pinguim” é um espetáculo à parte, digno de todo o prestígio do qual seu material de origem (ao contrário de muitas outras adaptações recentes) é merecedor.

– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.

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