Entrevista – Walter Salles: “‘Ainda Estou Aqui’ fala da reconstrução da memória de uma família (e da memória de um país)”

entrevista de João Paulo Barreto

Em “Ainda Estou Aqui” (2024), Walter Salles constrói um mundo solar, iluminado, que dolorosamente se torna sombrio e repleto de trevas. Das areias brancas da praia do Rio de Janeiro, banhadas por águas refrescantes e receptivas pelo escaldante sol carioca, a obra adentra em sombras que começam com as cortinas da casa do então ex-deputado Rubens Paiva (Selton Mello) sendo cerradas ainda com o sol lá fora. A mensagem é bem clara. O mundo desabou.

As trevas começaram anos antes daquele janeiro de 1971, mas foi só ali, quando o governo militar assassinou Rubens Paiva, que a realidade dura de um país tomado pela tirania atingiu aquela família para tirar sangue. Da limpeza floral daquela casa com gosto de salitre, para os fétidos corredores dos locais de tortura e morte, o caminho é tortuoso e o choque é grande. Quando vemos a família de Eunice Paiva (Fernanda Torres) ser destroçada pela ditadura, os sorrisos e o carisma daquelas pessoas começam a desaparecer de modo não fugaz, mas lento.

A imagem materializada do momento em que as trevas alcançam os Paiva bate pesado no espectador. É quando as cortinas da casa são fechadas de modo abrupto pelos militares a paisana, e todo o aspecto de brilho solar e otimismo com o futuro se perdem de imediato. Os planos simples de ir em família assistir a um filme no cinema são suspensos, uma rotina de sorrisos e brincadeiras em um lar saudável, cessa. “Essa parte do filme tem a ver com o trabalho de um pintor dinamarquês chamado Vilhelm Hammershoi, que, para mim, talvez seja um dos pintores que tenha mais bem trabalhado a questão da falta e da ausência”, revela Walter Salles em conversa com o Scream & Yell.

A relação entre os espaços a partir daquela nova perspectiva em transmitir uma sensação de sufocamento para a audiência, juntamente com a direção de arte que muda em 180 graus para exibir não mais a calorosa casa para, sim, os ciclos do inferno do quartel, se faz valer de maneira palpável através da câmera de Salles e pelo olhar do diretor de fotografia Adrian Teijido. É uma sensação de sufocamento agonizante e impotência que se faz presente. “Uma ditadura afeta tudo, a começar pela linguagem. A palavra não pode ser mais usada livremente. A partir dali a narrativa se torna subjetiva”, observa Salles.

Baseado no livro homônimo escrito por Marcelo Rubens Paiva e lançado em 2015, “Ainda Estou Aqui” apresenta a maneira resiliente como aquela família orfã de pai passou ter em Eunice seu bastião. E como essa luta da personagem de Fernanda Torres espelha a vida de muitas outras viúvas que a putrefata ditadura gerou.

O cineasta Walter Salles – cujo currículo engloba os elogiados Terra Estrangeira”, “Central do Brasil”, “Diários de Motocicleta” e “Na Estrada” – conversou com o Scream & Yell e falou sobre a construção dessas sensações e reflexões que o peso de seu filme lança no colo do espectador, trazendo, também, uma análise acerca de um Brasil que recentemente passou por uma tóxica ascensão de uma extrema-direita oportunista que prefere jogar a sujeira dos militares para debaixo do tapete. Abaixo, leia a entrevista na íntegra.

“Ainda Estou Aqui” inicia de modo solar e, de supetão, mergulha em sombras. O choque é grande. Dentro desse aspecto que visava transmitir essa sensação de sufocamento (ao menos foi essa a minha sensação), como funcionou o seu diálogo como cineasta junto ao diretor de fotografia Adrian Teijido?
Para mim, essa sempre foi a história de uma família que, no momento turbulento da nossa história, foi roubada de um futuro possível. Da mesma forma como o país foi roubado de um futuro possível. Essa oposição entre a luminosidade inicial do filme e o “chiaroescuro” que acontece depois do desaparecimento de Rubens, após a invasão da casa por policiais militares à paisana, foi, portanto, parte do conceito inicial de toda a narrativa. O estar no mundo da família Paiva no início do filme é pleno de possibilidades: na casa do Leblon, havia o encontro de pessoas de gerações diferentes, discutindo política, ouvindo música. Os momentos em super 8 do início do filme revelam a geografia humana, mas, também, a geografia física de uma cidade, o Rio de janeiro. Tanto a imagem quanto o som transmitem uma sensação de que, mesmo sob aquela ditadura militar, era possível sonhar com um outro país. A partir do momento em que Rubens é levado abruptamente para dar um depoimento no quartel militar, o filme como um todo é sujeito à subtração de elementos tanto visuais quantos sonoros. Quando as cortinas são fechadas, há uma ausência da luz natural. Ao mesmo tempo, os sons exteriores são abafados, a música cessa. Uma ditadura afeta tudo, a começar pela linguagem. A palavra não pode ser mais usada livremente. A partir dali a narrativa se torna subjetiva. Um personagem tenta entender o que o outro sente sem palavras. O filme se torna uma narrativa de não ditos. Em outras palavras, para falar da ausência de Rubens, para retratá-la, era preciso sentir que a casa havia mudado. Era necessário projetá-la na sombra. Subtrair a luz, subtrair os sons externos, retendo, inclusive, a interpretação dos atores. A câmera deixa de ser fluida. Há um alongamento de cada plano, e, também, uma outra compreensão do espaço. As lentes se tornam mais abertas, os planos mais estáticos. Essa parte do filme tem a ver com o trabalho de um pintor dinamarquês chamado Vilhelm Hammershoi, que, para mim, talvez seja um dos pintores que tenha mais bem trabalhado a questão da falta e da ausência. Na conversa com o diretor de fotografia Adrian Tejido e com Lula Cerri, o incrível operador de câmera com quem trabalhamos, as pinturas de Hammershoi foram um ponto de partida. Compartilhei com eles um livro com o trabalho dele e construímos essa parte toda do filme a partir desse raciocino.

Um dos personagens de “Ainda Estou Aqui”, um militar que ajuda Eunice Paiva com informações mínimas que lhe trazem alguma informação sobre o paradeiro de Rubens, afirma não concordar com aquilo. Recentemente, o filme de Lúcia Murat, “O Mensageiro”, criou toda uma narrativa em torno dessa ideia de “estar apenas cumprindo ordens”. Ao inserir de forma tão breve um personagem com a mesma premissa em seu filme, qual reflexão sobre esse comportamento você buscava trazer ao público?
O personagem ao qual você se refere tem uma presença marcante no livro de Marcelo Rubens Paiva. Talvez seja o único fio de humanidade com o a qual Eunice conseguiu se relacionar durante os 13 dias que ficou presa, sem qualquer justificativa e sem qualquer possibilidade de ser defendida de forma legal. Esses jovens militares conhecidos como “catarinas” vinham, na sua maior parte, de Santa Catarina para não terem laços afetivos na cidade do Rio de Janeiro. Eles tiveram, em algum momento, um papel importante na relação da prisão com o mundo exterior. No caso do filme de Lucia Murat, que é uma cineasta que eu admiro profundamente, o catarina se torna o mensageiro com mundo externo. No nosso filme, o jovem catarina não vai tão longe, embora ele tenha, na realidade, chegado a trazer alimentos para Eunice, algo que ele trazia sem autorização de seus superiores. Não era o caso de se desenvolver essa relação além do que fizemos, mas ele é uma presença importante no filme para mostrar que, mesmo naquele submundo, nem todos concordaram com os absurdos que estavam sendo cometidos por lá.

Rubens Paiva é um dos desaparecidos desse período nefasto da nossa história. O filme traz em suas elipses a luta de Eunice Paiva pelo reconhecimento do governo brasileiro em relação ao assassinato de seu marido. Recordo-me que o ex-presidente da gestão anterior à atual, notório apoiador da ditadura, chegou a falar com ironia sobre o desaparecimento do pai do presidente da OAB. Esse preâmbulo é para lhe perguntar a importância do seu filme nessa conscientização do brasileiro para com a indignação necessária contra pessoas que pedem a volta do período ditatorial.
A medida em que Marcelo foi arquitetando o livro, ele foi abraçando o ponto de Eunice. Marcelo abriu a possibilidade de falar da ditadura a partir do microcosmo da família. A partir do quarto dos filhos, da sala de jantar, do armário do pai. Eunice instaurou uma outra forma de resistência, que se soma a outras que são extremante importantes. O filme oferece um reflexo possível do Brasil nos anos 1970. Acompanha a reinvenção dessa mulher e a forma de resistência que ela abraçou durante quarenta anos. O que podemos esperar é que o filme abra a possibilidade de entender melhor quem nós fomos em dado momento da nossa história e, com isso, entender melhor as opções que temos no presente e, quem sabe, no futuro.

A sessão em Salvador de “Ainda Estou Aqui”, no Cine Glauber Rocha, quando o filme ficou em cartaz em setembro, teve um peso bem impactante em mim, principalmente pelo fato de que o cinema, ali na Praça Castro Alves, funciona como um espaço de resistência que rima bastante com a reflexão que seu filme traz. Queria saber sua opinião acerca dessa importância das salas de rua em um país que passou por um período recente no qual a Cultura foi tão negligenciada.
Em primeiro lugar, foi uma imensa honra estrear em Salvador em um cinema de rua tão simbólico e que traz o nome de um dos maiores cineastas da história: Glauber Rocha. O nosso filme fala de reconstrução da memória de uma família, assim como fala da reconstrução da memória de um país, e de uma forma resistência proposta por Eunice Paiva e pela família Paiva. O cinema no qual o filme estreou no Brasil, em Salvador, é um símbolo da luta pela memória coletiva no Brasil, da mesma forma com que é um símbolo daquilo que o cinema brasileiro tem de mais criativo a invocar.

– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde, de Salvador. 

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