texto por Leonardo Vinhas
fotos por Fernando Yokota
Sete músicas de um álbum não lançado, seis das quais inéditas, em um setlist de 22 canções. Não é todo público, ainda mais nos tempos atuais, que brinda um artista com atenção a tantas canções novas, principalmente se considerarmos que o auge comercial do referido artista aconteceu há 20 anos. Pois esse parece ser o tipo de coisa da qual o Franz Ferdinand é capaz, como ficou evidente na noite de 14 de novembro no Tokio Marine Hall, em São Paulo.
Com a casa lotada, a turma de Alex Kapranos subiu ao palco pontualmente às 22h já com o jogo ganho, e soube administrar o resultado sem apelar pra retranca. Esses escoceses não são conhecidos por introspecção ou placidez, ainda assim é notável como sua apresentação ao vivo é quase toda “lá em cima”: quando as duas (ou, em momentos, três) guitarras não estão falando alto, é o baixão inspirado pela fase funkeada do Gang of Four que domina. É um show pensado para fazer dançar, pular e cantar junto – uma pena que boa parte do público prefira “aproveitá-lo” levantando os celulares, mas isso é problema da audiência, não da banda.
É interessante notar que, ao partir pro ataque, o Franz Ferdinand consegue resolver no palco coisas que não ficam bem resolvidas em estúdio. A cacofonia de “Michael”, por exemplo, desaparece, sem que isso tire a velocidade deliciosa desse “quase hit” do primeiro álbum da banda. Já “Stand on The Horizon” ganha um brilho que a versão de estúdio nunca mostrou. E ainda que tenham seu carisma em estúdio, os hits “Do You Want To” e “Ulysses” soam muito mais frescos e empolgantes ao vivo.
A banda é coesa e soa injusto destacar uma atuação em particular. Mas igualmente injusto seria não falar da atuação da baterista Audrey Tait: na banda desde 2021, ela faz mais que recriar os tempos quebrados e as frases atípicas do batera original, Paul Thomson. Ela pode ser a mais jovem integrante tanto em tempo de banda como de idade (37, enquanto Kapranos, o mais velho, tem 52), mas impõe variação e personalidade a cada faixa, e o show não se sustentaria sem seu brilhantismo. Com isso, dá até pra perdoar os pequenos vacilos em “Walk Away” (justo nessa!), no qual ela se perdeu em algumas pausas.
Aliás, já que estamos falando da engenharia sonora do Franz Ferdinand, há algo que, se já ficava perceptível nos discos, fica escancarado ao vivo: os escoceses não são herdeiros da tradição cancioneira e cronista do rock britânico, tal qual iniciada pelos Beatles e pelos Kinks. Os Franz Ferdinand estão muito mais para os meninos das escolas de arte, eruditos e bem treinados tecnicamente, que decidem montar suas bandas. Há muito de Sparks (com quem gravaram um álbum inteiro juntos, o ótimo “FFS”, de 2014), um pouco do Who (a banda que melhor misturou os mundos da classe trabalhadora com o upper class britânico) e, claro, muitíssimo de pós-punk, especialmente PiL, Wire e os já citados Gang of Four. O diferencial é que Kapranos sabe costurar os aspectos mais, digamos, “incomuns” dessas referências dentro de uma estética pop – pelo menos, na maioria das vezes.
Sim, porque o último álbum, “Always Ascending” (2018), foi uma tremenda bola fora, sem inspiração e sem atrativos. A banda provavelmente sabe disso, já que nenhuma faixa desse disco foi incluída no repertório da turnê. E mesmo os álbuns anteriores, “Tonight: Franz Ferdinand” (2009) e “Right Thoughts, Right Words, Right Action” (2013) são bem mais irregulares que os dois primeiros. A julgar pelas faixas apresentadas, o vindouro álbum “The Human Fear” virá para equalizar esse placar.
“Audacious”, o primeiro single, e única já revelada em sua versão de estúdio, promete ser daquelas que vai se tornar presença garantida nos shows, e “Night and Day”, a mais influenciada por Sparks do pacote, apareceu logo no começo do show e foi tratada como uma velha conhecida em seu glamour de “discô” branca e roqueira. “The Birds” é sombria, pesada, e cheia de espaços para Audrey Tait brilhar. Já “The Doctor” e “Bar Lonely” são pop ligeirinho de boa cepa, enquanto “Hooked”, com seu teclado entre o épico e o retrô, deve se revelar ainda melhor em novas audições. Só “Build It Up” não diz muito a que veio.
Em meio a tudo isso, Alex Kapranos conduz tudo como o frontman esquisito. Suas dancinhas e suas interações fazem lembrar daquele tio gente boa, mas meio esquisito, de quem você nunca sabe bem o que esperar, e que pode até te constranger, mas nunca por mal. É uma espécie de mistura entre aristocrata britânico e um Tio Sukita do bem, disfarçado de rock star. Não existem muitos do tipo por aí, então há de se ponderar que vê-lo em ação é, de certa forma, um privilégio.
O show termina com uma “This Fire” estendida e acelerada além do necessário, mas àquela altura ninguém se importava com isso. Com celulares em punho, berros de “burn this city / burn this city” e um feriado prolongado pela frente, não havia muita disposição, vontade ou mesmo razão para reclamar de qualquer coisa.
É interessante perceber como, em 2024, o Franz Ferdinand consegue se situar num espaço híbrido: não são nostálgicos, não são “enfants terribles” nem ousados, embora tenham um pouco disso tudo em sua apresentação. Talvez sejam os veteranos excêntricos em um midstream internacional que podem até não fazer revolução sonora alguma, mas jamais vão se contentar com a mediocridade ou com a inércia. De verdade, já está de ótimo tamanho.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br