texto por Leonardo Vinhas
fotos por Fernando Yokota
Pra quem acha que “show com laptop” não é show, recomenda-se uma apresentação ao vivo do Sleaford Mods. E para quem acha que punk não representa mais nada em 2024 ou que música sem guitarras não é punk, vale a mesma recomendação. Na verdade, ao vivo os Sleaford Mods conseguem fazer exatamente aquilo que o rock’n’roll já se propôs a fazer: mexer com estruturas musicais consolidadas, dar vontade de dançar, provocar tesão pela vida e irritar conservadores.
Jason Williamson e Simon Parfrement fundaram os Sleaford Mods em 2007. Este último abandonou o barco em 2012, tendo sido (muitíssimo bem) substituído por Andrew Fearn. Apesar desses quase 20 anos de atividade, sua vinda ao Brasil teve sabor de novidade, não só porque foi a primeira vez que eles pisaram em solo brasileiro, mas principalmente porque eles começaram a ficar mais falados por aqui há poucos anos, graças aos fãs famosos, como Damon Albarn e Iggy Pop (que diz que eles são sua banda favorita, e “não têm uma música ruim”) e a colaborações com gente como Amyl Taylor, Perry Farrell e Billy Nomates.
Cabe uma ressalva a esse “mais falados”: a banda está longe de ser um hype. O Carioca Club sequer havia aberto seu bar lateral, e mesmo assim dava para circular pela casa sem atropelos. A teoria deste repórter, totalmente empírica, é a de que, em um fim de ano coalhado de oferta de shows internacionais, não foram muitos os que se animaram a ver um duo britânico que “não toca instrumentos”, conforme o bordão de comentários de redes sociais.
É curiosíssimo que, em 2024, ainda nos deparemos com esse tipo de conversa. Na verdade, quando o show começa, com “UK GRIM” soando lindamente pelo PA, algumas coisas ficam claras: a primeira é o poder rítmico das composições do duo, a segunda é o quanto esse ritmo jamais prejudica a melodia, a terceira é o peso bruto dos graves, e a quarta (mas não menos importante) é a presença de palco de Jason Williamson.
Do alto de seus 54 anos, Williamson está em algum lugar entre Joe Talbot (Idles) e Henry Rollins: é um frontman endemoniado e furioso, cuspindo (literalmente) letras que são diatribes raivosas que passam do desemprego à cultura de celebridades sem muita cerimônia. E se você não sabe inglês, não tem problema, porque a postura, as entonações e o gestual do homem fazem a mensagem chegar.
Enquanto isso, Andrew Fearn (53 anos) dá play no laptop e sai saltitando pelo palco como se estivesse louco de bala (provavelmente não estava). O que sai de cada play são construções muitíssimo bem construídas, pauladas que combinam a força do punk, do hip hop e de toda a cena eletrônica alternativa em um amálgama conciso e veloz de quase tudo que foi contracultural nos últimos 40 anos e que, em algum momento, foi cooptado pelo sistema.
De alguma maneira, Williamson e Fearn conseguiram recuperar o lado incômodo e sexy desses estilos, e se não os devolvem à contracultura, pelo menos conseguem quebrar a pasmaceira sustentada por clichês que domina a superfície do rock, do hip hop e da eletrônica atual. Ao vivo, esse feito fica ainda mais claro: estão ali no palco dois caras com mais de meio século de vida, sem qualquer disfarce ou clichê visual que mascare sua idade, sendo mais joviais e inovadores que muita gente que se apropria de signos de juventude como elemento mercadológico.
Os Sleaford Mods representam muita coisa nos tempos em que “representatividade” virou um guarda-chuva gigante e semi-esvaziado de sentido. Williamson é um pai de família casado, Fearn é abertamente gay, e questões de gênero, idade ou classe não são tratadas com as frases de efeito curtas e pouco abertas ao diálogo que dominam boa parte da retórica dos artistas “representativos”. A fúria é palpável, a sagacidade corre solta, e tudo está ali porque os dois assim decidiram, e não porque a lógica do algoritmo manda.
Sim, era um laptop em cima de uma mesa de bar, um microfone e dois ventiladores – “o rider tapa na cara da sociedade”, como disse uma amiga produtora de shows. Mas era muito mais que isso. Claro que você pode assistir um “show com laptop” absolutamente inócuo e sem graça. Ou então um que seja espetáculo de dança disfarçado de apresentação musical. O que faz os Sleaford Mods serem os punks que 2024 precisa é que, por baixo do formato escolhido, existe música, criatividade, fúria, e uma rejeição legítima ao status quo coalhado de diluição de ideias e repetição de fórmulas. Se isso incomoda alguém, muito possivelmente é porque essa pessoa acredita que a única função da música é ser pano de fundo ou dar conforto emocional.
Em um mundo que comercializa dopamina e meias-verdades disfarçadas de “conforto” (ou empoderamento), é uma delícia ser afrontado por uma banda tão divertidamente desconfortável.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br