Três filmes da 48ª Mostra SP: “A Cozinha”, “Mambembe”, “Dahomey”

textos de Leandro Luz

“A Cozinha / La Cocina”, de Alonso Ruizpalacios (2024)
O diretor mexicano Alonso Ruizpalacios alterna entre o drama social e o humor absurdo para conceber o seu quarto longa-metragem. Situado no decorrer de um único dia, ambientado em um restaurante no coração de Manhattan, em Nova York, “A Cozinha” acompanha a rotina dos cozinheiros, das atendentes e dos demais funcionários após a notícia de que uma boa quantia sumiu do caixa do dia anterior. O resultado é um clima de tensão e uma dura investigação que rola solta durante os longos 139 minutos do filme. Fora isso, outras três subtramas ajudam a intensificar o calor do caldeirão: enquanto as pessoas de origem latina se tornam o alvo preferencial do gerente e do dono do estabelecimento, um homem precisa lidar com um desafeto e duas mulheres lutam para superar obstáculos específicos; a primeira tenta passar com louvor pelo teste do primeiro dia como cozinheira, a segunda precisa realizar um aborto, à contragosto do parceiro. Na tentativa de retratar a luta de classes e os pequenos poderes em seu microcosmo, Ruizpalacios escolhe fotografar em preto e branco, adotando uma tonalidade e uma textura que denunciam a influência de “Roma” (2018), de seu conterrâneo Alfonso Cuarón, e às vezes parece mimetizar a série “The Bear” (2022-) sem a mesma habilidade de Christopher Storer e cia. Arrogante, bagunçado e histriônico, o filme incomoda ainda mais por apontar, em seu início, para uma riqueza dramática que posteriormente só se esvazia, dando lugar à perfumaria barata, com uma decupagem pseudo elaborada, recheada de longos planos com movimentos de execução complexa, e monólogos intermináveis de um dos protagonistas mais chatos dos últimos tempos – não por culpa de Raúl Briones Carmona, que faz o possível para combater a caricatura de seu personagem. Se nos primeiros 10 ou 15 minutos de filme tínhamos uma boa protagonista em potencial – Estela, interpretada com sutileza e sagacidade por Anna Diaz -, que nos conduz por esse breve momento, muito rapidamente ela é escanteada pelo personagem de Carmona, que na dobradinha com a garçonete vivida por Rooney Mara (inexplicável esse casting, por melhor atriz que ela seja) toma o filme para si até culminar na óbvia e ridícula sequência explosiva do terceiro ato, com direito à cozinha inundada, chef esperneando com a bunda de fora e comidas sendo arremessadas a torto e a direito. A conclusão chega com lições de moral apontadas para o capitalista, mas é o trabalhador que sofre as consequências de todo jeito – a vida do restaurante, no final das contas, segue firme e forte, e a máquina de moer gente continua a todo vapor. É triste constatar, mas quanto mais o tempo passa, mais pretensioso e irritante “A Cozinha” se cristaliza na memória.


“Mambembe”, de Fabio Meira (2024)
O novo trabalho de Fabio Meira, diretor de “As Duas Irenes” (2017) e “Tia Virgínia” (2023), é a prova de que o Cinema se constitui tanto dos filmes que foram feitos quanto daqueles que jamais viram a luz do dia, dos projetos bem sucedidos e dos que naufragaram a despeito da vontade de seus realizadores. “Mambembe” (2024) é um belo documentário que mistura o encantamento do circo com a peregrinação de um jovem autor em busca de seu primeiro filme. Meira, que inicialmente faria desta história uma ficção (o seu primeiro projeto de longa-metragem, engavetado tantas vezes), foi obrigado, por “n” circunstâncias, sobretudo financeiras, a planejar, replanejar, filmar e refilmar durante anos a fio – quinze, para ser mais preciso – este que acabou se tornando, no lugar de uma obra ficcional tradicional, um documentário performático. O que vemos e ouvimos na sala de cinema são as imagens e os sons que começaram a ser escritos e capturados em 2009 por um diretor e uma equipe que investigavam a pluralidade dos circos tradicionais do Nordeste e do Norte do Brasil. O método era viajar estrada afora conhecendo pessoas, entrevistando personagens em potencial e tentando descobrir na arte circense e na vida itinerante dessas famílias que tipo de filme poderia nascer. Foi apenas na retomada do projeto que Meira decidiu explorar ao máximo as suas inseguranças por meio dos materiais de arquivo que tinha nas mãos e optou por fabricar uma narração, de teor bastante pessoal, para ser o fio condutor de sua narrativa. A narração é inteligente porque consegue conciliar os fantasmas do passado com as ideias do presente. Quando tenta resgatar a sua característica ficcional inicial, servindo como uma espécie de auto-homenagem, o filme funciona bem menos do que quando abraça a encruzilhada típica de documentários híbridos. Na trama original – de certo modo mantida na versão final do filme, ainda que de maneira fragmentada – Ruy, interpretado por Murilo Grossi, é um topógrafo que viaja pelo Brasil e que se envolve com três mulheres circenses: Índia Morena, dona de um circo, artista aguerrida e respeitada pelos seus; Madona, uma dançarina trans apaixonada pela efemeridade da estrada; e Jéssica, uma jovem que, dentre outras funções, performa um número com bambolês; das três, apenas Jéssica ganha uma intérprete profissional (Dandara Guerra), as demais são interpretadas por elas mesmas, com toda a fragilidade e toda a beleza que essa escolha traz. No fim das contas, “Mambembe” se beneficiou dessa longa e árdua trajetória que o fez chegar até aqui no formato apresentado, guardando na sua parte documental os seus maiores e mais emocionantes trunfos.


“Dahomey”, de Mati Diop (2024)
Mati Diop mais uma vez persegue o milagre para investigar e combater o passado (presente) colonial que circunda todos nós. Assim como em seu longa-metragem anterior, “Atlantique” (2019), este novo trabalho se desloca do realismo esperado de um documentário tradicional e instaura uma bruma pesada que perpassa toda a curta duração de “Dahomey” (2024). Surpreende o quanto Diop faz um filme direto, adotando uma estratégia muito bem definida: a sua câmera primeiro se concentra nos tesouros que estão prestes a deixar Paris e a retornar ao seu território de origem, o Reino de Daomé, hoje a atual República do Benim. Os artefatos (esculturas, paineis, objetos, enfim… obras de arte ligadas a povos antigos que foram saqueados pelos franceses) são filmados com obstinação. A abordagem quer dar conta do quão difícil é este trabalho e, consequentemente, quer garantir que entendamos a sua importância. Diop opta por descomplicar a ação e modular os questionamentos – o filme traz muito mais perguntas do que constatações a respeito de seu grande tema. O que significa esse gesto francês depois de tanto tempo ignorando as violências praticadas? O que significa, para as pessoas que vivem hoje no Benim, receber de volta o seu tesouro roubado? Há justiça possível diante de uma barbárie sistemática? Entre um questionamento e outro, o filme registra com minúcia os objetos sendo preparados para o transporte de um país a outro, observa com paciência as discussões sobre justiça e compensação empreendidas por alunos e professores universitários do Benim e – certamente a abordagem mais chamativa de todas -, constrói um discurso por meio de uma atribuição de consciência a um dos vinte e seis artefatos em questão, que poeticamente fala consigo mesmo e com o espectador, compartilhando as reminiscências oriundas de um determinado tempo e lugar. O design de som como um todo é bastante elaborado, conciliando o registro direto das ações – os sons dos humanos e das ferramentas que preparam as obras para o transporte, o zum-zum-zum do fórum que discute a política adotada por países europeus para remediar a selvageria praticada – com a guinada para o “faz-de-conta” – mais evidentemente representada pela voz grave que serve de veículo para os lampejos desse artefato que ganha vida. Diante de todos esses elementos interessantes, a experiência com o filme, no entanto, oscila entre a fascinação e o enfado, pois um dos seus problemas é a montagem, que tem dificuldades para amarrar todas essas perspectivas e ideias. Na realidade, talvez o grande problema do filme esteja no fato dele passear com pouca cautela entre os formatos do cinema e da videoinstalação para exibição em galeria, funcionando perfeitamente ora para um, ora para outro, mas nunca para ambos ao mesmo tempo.

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– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.

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